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O soneto da emenda

O passo a passo de como recursos liberados por Hugo Motta foram desviados pela gestão do pai do deputado em Patos

O soneto da emenda
O soneto da emenda
Dinastia. Wanderley Filho e o herdeiro Motta dominam a política no sertão paraibano – Imagem: Redes Sociais
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O sertão da Paraíba é um lugar tórrido. Os 103 mil habitantes da cidade de Patos encaram uma temperatura média acima de 25 graus o ano todo, inclusive no inverno. Tem gente por lá a fritar na chapa da lei, mas, graças às costas quentes, segue a vida numa boa. A secretária municipal de Controle Interno é ré por fraude de licitação, enquanto o secretário de Infraestrutura está a caminho de ser também, acusado de superfaturar o contrato surgido de uma concorrência tida como farsesca pelo Ministério Público Federal. O chefe da dupla, e responsável pela nomeação e permanência de ambos nos cargos, é o prefeito Nabor Wanderley Filho, de 59 anos. Que vem a ser pai do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, de 39.

A família manda em Patos há 20 anos, com exceção de um mandato conturbado que começou com um oposicionista em 2017 e terminou com um aliado em 2020. Wanderley Filho comandou a cidade por duas vezes seguidas entre 2005 e 2012, fez a avó de Motta sua sucessora, reconquistou o poder na eleição de 2020 e reelegeu-se em 2024. Em sua primeira gestão, o rebento tornou-se deputado federal, o mais jovem da história da Câmara. Pai e filho têm uma coisa em comum. Acumularam patrimônio após entrarem na política. O prefeito não declarou bens na campanha de 2004, mas informou ter 94 mil reais na disputa de 2008. No ano passado, seu patrimônio oficial era de 1,2 milhão. Já o parlamentar tinha 141 mil ao concorrer em 2010 e 1,1 milhão em 2022.

Dinheiro providenciado por Motta em Brasília para o pai prefeito explica a enrascada dos dois secretários municipais – e é motivo de desassossego para o progenitor e para o próprio deputado, embora ambos se finjam de mortos. Em dezembro de 2020, vésperas de Wanderley Filho assumir a prefeitura, o congressista separou no orçamento federal 4,7 milhões de reais para recuperar a maior obra viária de Patos, a Avenida Alça Sudeste, concebida no passado pelo pai e inaugurada pela avó, Francisca Motta, hoje deputada estadual. Quatro anos depois da emenda parlamentar de Motta, a Polícia Federal foi às ruas apurar falcatruas com os recursos. Resumo da ópera da Operação Outside­: quatro denúncias criminais e três cíveis apresentadas pelo Ministério Público Federal à Justiça em 2025 e obtidas por ­CartaCapital. São acusações por fraude de licitação, superfaturamento de contrato, corrupção e improbidade, entre outras.

Prodígio? A jovem advogada Mayra Dias teve uma ascensão meteórica na prefeitura comandada pelo pai de Motta – Imagem: Redes Sociais

Em 4 de janeiro de 2021, início de sua terceira administração, Wanderley Filho nomeou uma advogada de apenas 24 anos como gerente de Licitações e Convênios de Patos. Mayra Mikaelle Dias Fernandes era do setor privado. Um de seus clientes havia sido a empreiteira Cesarino Construções, cujo nome fantasia é Engeplan. O dono da empresa, André Luiz de Souza Cesarino, de 39 anos, tinha ficado uma fera com um blog que reproduzira as palavras de um promotor de Justiça, segundo as quais a Engeplan vencia licitações, mas não tirava nada do papel nem tinha sede, era fantasma. E processou o blogueiro por dano moral. Mayra Dias foi preposta de Cesarino na ação, encerrada em 2020.

A advogada e o antigo cliente uniram-se novamente na gestão de Wanderley Filho. A Engeplan venceu a concorrência conduzida pela então gerente que escolheu a empreiteira das obras de recuperação da Alça Sudeste e de uma rua importante para o tráfego local. Investimento que, recorde-se, seria feito com repasse de emenda de Motta. O procurador da República Tiago Misael de Jesus Martins, que há tempos investiga irregularidades no sertão paraibano, diz em uma das denúncias criminais que a advogada confeccionou o edital de modo a eliminar rivais da ­Engeplan, uma descoberta da Controladoria-Geral da União. Ela, inclusive, inseriu um requisito técnico (piso tátil para asfalto) por solicitação de Cesarino. “Eu que pedi”, comentou ele, em 22 de setembro de 2021, em mensagem escrita a um funcionário.

O celular do empresário foi apreendido pela PF em setembro de 2024, na primeira fase da Operação Outside. No mês seguinte, Wanderley Filho reelegeu-se e, às vésperas de começar o novo mandato, promoveu a gerente. Fez dela a secretária de Controle Interno, o equivalente municipal da CGU. A missão da secretaria é cuidar da lisura dos atos e dos gastos municipais. A concorrência vencida pela Engeplan­ para recuperar a Alça Sudeste tinha um orçamento estimado de 5 milhões de reais. Foram feitos dois lances. Uma construtora, a Gurgel, ofereceu desconto de 3% e a Engeplan, de 15%. “E a ordem de ser assim veio de cima”, afirmou Cesarino, por mensagem de celular, a um interlocutor, a propósito da sua oferta. Uma “imposição de origem não esclarecida”, anota a denúncia do MPF sobre o deságio vencedor.

Funcionários da prefeitura e um empreiteiro são acusados de superfaturamento, corrupção e improbidade

No dia do resultado da concorrência, em outubro de 2021, uma funcionária da Secretaria de Administração de Patos falou por mensagem de celular com Cesarino sobre a licitação. “O prefeito comentou (sic) tinha baixado 15%. Mas não disse a empresa”, contou Eulanda Ferreira da Silva. Esta prestou advocacia administrativa para a Engeplan, conforme o MPF, crime que custa de 3 a 12 meses de detenção. Com o contrato assinado, a funcionária atuou para resolver pendências do empresário com a Caixa Econômica Federal, por exemplo. A verba da emenda de Motta saiu de Brasília por meio de um convênio de Patos com o Ministério do Desenvolvimento Regional e quem repassa os recursos é a Caixa.

Em abril de 2022, Wanderley Filho nomeou Eulanda Silva como chefe da área de convênios da prefeitura. Demitiu-a exatos três anos depois, no mesmo dia que a PF realizou a segunda fase da Outside. Na papelada que levou a Justiça a autorizar a batida havia a informação de que a funcionária pública recebia propina da Engeplan. Suborno total de 9 mil reais, pagos em 18 vezes de 500 reais, tudo camuflado sob o código de “cheiro” em mensagens de celular trocadas entre ela e Cesarino. Eulanda Silva foi alvo de quatro denúncias do MPF, duas criminais e duas por improbidade. Em uma das criminais, é ré ao lado de Mayra Dias e do empreiteiro, por fraude de licitação, ilícito castigado com prisão de 4 a 8 anos e multa. Em outra, é acusada de corrupção passiva, cuja pena vai de 2 a 12 anos.

O contrato nascido da fraude licitatória foi firmado em 29 de outubro de 2021, no valor de 4,2 milhões, 500 mil a menos que o valor da emenda de Motta. Quatro meses depois, um aditivo elevou a quantia em 18%, para 5 milhões, o suficiente para anular o deságio de 15% da licitação. Entre o contrato original e o aditivo, Wanderley Filho trocou o secretário de Infraestrutura, responsável por assinar os atos relativos à obra da Alça Sudeste. Saiu José Marcone da Costa Santos, entrou José do Bomfim Araújo Júnior. O aditivo foi feito por ato unilateral de Bomfim, de acordo com o MPF, sem que a Engeplan pedisse.

Superfaturamento. O deságio da Alça Sudeste foi compensado – Imagem: Prefeitura de Patos/GOVPB

Não havia um requerimento formal, mas, desde a época da licitação, o dono da empreiteira comentava em mensagens escritas sobre obter aditivos. Um caso típico de “jogo de planilhas”, em que os cálculos fajutos embasam a vitória em uma concorrência e logo sofrem modificações. Houve uma segunda alteração contratual, para esticar em 180 dias o prazo de vigência. E uma terceira, de junho de 2022, a mexer de novo no valor: subiu o contrato em 961 mil reais, para 6 milhões ao todo. Quer dizer, a emenda de Motta não bastava mais para cobrir o investimento depois dos aditivos. Pior para os cofres de Patos, de onde sai uma parte (mínima) para a obra. Nos cálculos da CGU, o município gastou com o contrato ao menos 403 mil entre 2022 e 2023.

O papel de Bomfim nos aditivos ­custou-lhe uma acusação do MPF de fraude na execução de contrato, crime punido com 4 a 8 anos de prisão e multa. A fraude, nesse caso, é do tipo “superfaturamento”. Um acordo de 4,2 milhões saltou 42% em menos de um ano. Detalhe: um dia antes de o secretário ter autorizado o terceiro aditivo, ele próprio havia negado à ­Engeplan outro que a empresa solicitara por alegado aumento de custo. O argumento para rejeitá-lo era de que o acordo original tinha menos de um ano de vigência. O primeiro aditivo tinha ainda menos tempo de distância para o acerto original.

Bomfim foi acusado ainda de improbidade administrativa pelos mesmos fatos, ilícito que pode levar à perda da função pública e à inelegibilidade. Ele já teve planos de disputar eleições, concorrer a vereador em Patos pelo PSB em 2016. Desistiu. Os processos contra ele, Mayra Dias, Eulanda­ Silva e Cesarino correm aos cuidados do juiz Thiago Batista de Ataíde, da 14ª Vara Federal de Patos. Os acusados têm um mesmo advogado, José Corsino Peixoto Neto, ex-secretário de Administração de Patos em gestões anteriores de Wanderley Filho.

Mensagens revelam a influência do empresário André Cesarino, da Engeplan

Fatos das administrações anteriores do atual prefeito e de Francisca ­Motta levaram a três grandes operações da PF e do MPF a mirar Patos e o sertão da Paraíba de 2015 em diante: a Desumanidade, a Veiculação e a Recidiva. O batismo desta última explica-se pela repetição do ­modus operandi e dos personagens envolvidos. O enredo costuma ser assim: dinheiro de emenda parlamentar sai de Brasília para financiar obras empreendidas por firmas de fachada escolhidas em licitações fajutas. Em uma das investigações, a mãe de Motta, Ilana, foi presa. Ela era chefe de gabinete de Francisca na prefeitura. Francisca foi processada nesse caso, mas a Justiça extinguiu a ação por falta de provas. Em outro caso, Wanderley Filho foi condenado em primeira instância, mas conseguiu trancar o processo no Superior Tribunal de Justiça. Em outra dessas apurações, o deputado foi alvo de uma proposta de ­delação premiada da parte de um empresário, que o acusava de cobrar propina.

Na Operação Outside e nas denúncias de 2025 contra agentes públicos e privados de Patos, Motta repetiu que não tem nada a comentar por não ser acusado. A reportagem pediu esclarecimentos à prefeitura pelo e-mail da Secretaria de Comunicação, do telefone celular do secretário e do prefeito. Não houve resposta. •

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O soneto da emenda’

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