Política

O que são as saídas temporárias – e por que acabar com elas não acabará com a violência

Deputados aprovaram nesta quarta-feira 3 um projeto de lei que propõe extinguir o benefício

Busca da prisão para saciar a fome
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A Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta 3, um projeto de lei que propõe extinguir a saída temporária para todos os detentos, independente do regime de cumprimento de pena. Agora, o texto volta para o Senado.

A proposta recém-votada se junta a outras tantas que tratam da saída temporária. Ao todo, 47 foram unificadas para discutir o tema na Câmara, sob um PL mais antigo, o 6579/13, apresentado pela senadora Ana Amélia (PP).

Segundo Ana Amélia, o suposto aumento da criminalidade durante esses períodos justificariam o endurecimento na lei. “O preso que reincide já deu provas suficientes de que não está preparado para gozar desse benefício, pois, quando posto em liberdade, tornou a cometer crime”, alega.

Faltam, contudo, dados que sustentem a afirmação da senadora.

“Esses dados ou não existem ou não são qualificados”, afirma João Marcos Buch, juiz de Execução Penal e corregedor do Sistema Prisional da comarca de Joinville, em Santa Catarina. “A sensação é muito mais fruto de uma comoção social ou de uma ideia, sobretudo, cunhada a partir de caso emblemáticos”, completa Glauter Del Nero, advogado criminalista e professor na pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Mackenzie.

Outro argumento frequente entre os críticos das saídas temporárias seria a facilitação de fugas. O índice de não retorno à instituição prisional, contudo, tem diminuído significativamente ao longo dos últimos 10 anos, chegando a menos de 5% atualmente, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça.

“Ele [o detento] precisa ter um endereço, ele precisa ter uma residência familiar para informar à Justiça. Outro requisito é que ele não vai poder frequentar bares e casas noturnas”, explica a advogada Fernanda Moura, membro da Comissão de Políticas Criminal e Penitenciária da OAB/RJ. O benefício também pode ser revogado caso qualquer um dos requisitos e obrigações sejam descumpridos.

Prevista em lei desde os anos 80, a saída temporária busca promover a reinserção gradual do convívio social, fortalecendo laços comunitários e desenvolvendo o senso de responsabilidade do apenado. A ressocialização, vale lembrar, é objetivo primordial do direito penal no Brasil.

O benefício é concedido apenas a condenados que já cumprem pena no regime semiaberto. Além disso, o detento beneficiado precisa ter cumprido parte significativa da pena e preencher requisitos como bom comportamento. A medida também prevê a possibilidade de detentos frequentarem curso supletivo profissionalizante, segundo grau ou faculdade.

O juiz Buch, o caráter temporário e progressivo de cumprimento de pena é estudado por especialistas há séculos, sendo efetivo na redução da violência a longo prazo. “Se percebeu que não adiantava deixar uma pessoa trancafiada e determinado dia soltá-la para o mundo.”

“Esse sistema é pensado justamente para garantir que, ao final, a pessoa seja ressocializada em sociedade porque uma hora ela vai voltar ao convívio e é importante que ela volte a ser inserida, que ela seja absorvida pela sociedadel”, conclui a advogada Fernanda Moura.

O tamanho da crise

Entre 2013 e 2022 a população carcerária no Brasil cresceu 70%. Atualmente são 919 mil pessoas em situação de cárcere, sendo 867 mil homens e 49 mil mulheres. O País hoje ocupa o terceiro lugar no ranking das nações que mais encarceram no mundo.

O sistema prisional vive uma das piores crises de sua história e, por falta de infraestrutura, não consegue atender à demanda crescente por novas vagas. Atualmente, o déficit de vagas supera os 400 mil. A taxa de ocupação dos presídios é de 197%, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen.

O juiz Buch lembra que, historicamente, as prisões cumprem também um como um espaço de contenção dos indesejáveis – é que, no Brasil, a esmagadora maioria dos detentos brasileiros são homens negros, jovens e pobres.

“O Brasil é um país escravocrata de identidade racista, então a prisão é pensada também para a neutralização o negro e a manutenção do negro como escravo. Nesse contexto, a prisão jamais vai funcionar”, completa.

A perspectiva de um futuro mais promissor ainda é distante. Entre 2000 e 2017, a taxa de aprisionamento aumentou 157% no Brasil. Em 2000, existiam 137 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes. Em junho de 2017, a proporção subiu para 352 pessoas presas.

Apesar dos altos números de detenções, os casos de violência e a sensação de insegurança ainda são frequentes. Isso pode ser compreendido pelo fato da pena não atingir os objetivos propostos pela lei.

“O que a lei prevê não é o que existe na prática. Por exemplo, no regime fechado, precisaria de uma cela individualizada, mas o que existe é uma super lotação. As regras previstas na Lei de Execução não são cumpridas na prática”, lamenta a advogada Fernanda Moura.

A cela onde o ex-detento Odálio Júnior passou cerca de dois anos, no CDP de Osasco, por exemplo, deveria comportar 12 presos. A realidade, porém, era outra. “O mais vazio que ficou foi 42 e já chegou a 67, 68, se eu me lembro.” Os presos, segundo ele, dividem até mesmo o espaço no chão entre si. “É dois por cama, o que chama valete, um para lá e um para cá, e o resto no chão. Forra o chão inteiro de colchão e vai se encaixando mesmo, como se fosse um quebra cabeça”.

Entre todos os estabelecimentos prisionais, apenas 56% estão equipados com salas de aula, 11% têm sala de informática e 41% possui biblioteca. Apenas 10,25% dos presos participam de atividades educacionais.

No que tange atividades laborais, 17% dos presídios oferece sala de produção, 8% têm sala de estocagem e 22% têm oficinas de trabalho. 13,2% dos detentos trabalham durante o cárcere.

Sem as medidas necessárias para recuperação, facções criminosas se fortalecem. “Uma pessoa que não tinha tanto contato com crime e muitas vezes sai efetivamente um membro do crime organizado”, pontua o criminalista Glauter Del Nero. “O que estamos fazendo é tentar apagar um incêndio jogando gasolina. Estamos tentando resolver um problema, sem observar a causa desse problema, o motivo pelo qual as pessoas estão cometendo crimes. Essa é a grande pergunta.”

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