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O que fez a diferença nas enchentes da Bahia foi a solidariedade e não Bolsonaro

A falta de empatia do presidente com as vítimas provocou uma enxurrada de postagens nas redes sociais

O que fez a diferença nas enchentes da Bahia foi a solidariedade e não Bolsonaro
O que fez a diferença nas enchentes da Bahia foi a solidariedade e não Bolsonaro
Foto: Camila Souza/Governo da Bahia
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Alheio ao drama vivido por quase 800 mil cidadãos atingidos pela tragédia provocada pelas fortes chuvas no Sul da Bahia, Jair Bolsonaro não viu motivos para interromper as férias de fim de ano. Enquanto 30 mil vítimas estavam desabrigadas porque tiveram suas casas destruídas pelo temporal, e outras mais de 73 mil ficaram desalojadas, Bolsonaro exibia-se a bordo de um jet ski da Marinha no litoral de Santa Catarina e fazia manobras radicais num carro de Hot Wheels em show temático no Parque Beto Carrero. As chuvas provocaram enchentes e destruição em 168 municípios baianos, dos quais 157 estão em estado de emergência. Até a terça-feira 4, o saldo era de 26 mortos.

O presidente tratou com desdém a situação dos baianos. O máximo que fez foi terceirizar a responsabilidade, enviando quatro ministros à região: João Roma (Cidadania), Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Marcelo Queiroga (Saúde) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Eles visitaram o município de Itabuna, um dos mais atingidos pela tragédia, e sobrevoaram a área afetada. No dia 31 de dezembro, o Diário Oficial da União publicou uma Medida Provisória com crédito extraordinário de 700 milhões de reais em favor dos estados afetados pelas enchentes. Antes, Bolsonaro tinha liberado 200 milhões para recuperação de estradas, mas, desse montante, 80 milhões foram destinados à Bahia e o restante a outros estados que também sofrem com as fortes chuvas, como Minas Gerais, Goiás e Tocantins.

O governador baiano, Rui Costa (PT), criticou o valor liberado, afirmando não ser suficiente para recuperar os estragos. “Participei de uma reunião com diversos ministros. Em outro momento afirmei que o anunciado era pouco, diante da dimensão da tragédia. Esperávamos muito mais, entretanto, qualquer ajuda é bem-vinda”, destaca. Sobre uma possível perseguição política por ser do PT, Costa é incisivo: “Ao longo dos últimos anos, a Bahia foi muito pouco contemplada. Se isso estiver acontecendo, a discriminação não é contra o governador, mas sim contra os 15 milhões de baianos e baianas e, principalmente, contra os atingidos pelas chuvas”.

O EX-CAPITÃO FEZ POR MERECER A HASHTAG #BOLSONAROVAGABUNDO ENTRE OS ASSUNTOS MAIS COMENTADOS DO TWITTER

A falta de empatia de Bolsonaro com as vítimas da Bahia provocou uma enxurrada de postagens nas redes sociais, criticando a postura do presidente e colocando a hashtag #BolsonaroVagabundo entre os assuntos mais comentados do Twitter no dia 28 de dezembro. A falta de sensibilidade do mandatário também ficou visível nos dias que antecederam o feriado do Natal, período em que já ocorriam as chuvas. Em vídeo viralizado na internet, ele aparece em passeio de lancha no litoral paulista dançando o funk Proibidão Bolsonaro, do MC Reaça, a comparar feministas a cadelas.

“Estamos passando por um momento muito difícil. O presidente tem o direito de tirar férias, mas ele poderia ter vindo aqui se solidarizar com as vítimas. Seria uma demonstração de cuidado com as pessoas”,­ queixa-se Mário Alexandre, prefeito de Ilhéus, cidade onde o governo baiano instalou o comitê de crise. Na vizinha Itabuna, o cenário é de devastação. Cerca de 40% da cidade foi atingida, deixando casas, vilas e estradas totalmente destruídas e muito lixo acumulado. “Num primeiro momento, buscamos resguardar vidas, removendo pessoas para 16 abrigos, principalmente nas comunidades ribeirinhas e em áreas de baixada”, explica Augusto Castro, prefeito de Itabuna. “O cenário é de verdadeira catástrofe. Tudo é de cortar o coração, mas o que mais me comoveu foi perceber o desalento das pessoas­ que perderam, em algumas horas, tudo o que conseguiram em uma vida inteira de trabalho árduo”, lamenta Rui Costa, definindo as enchentes como “a maior tragédia ocorrida na Bahia”.

Além de se exibir com um jet ski da Marinha no litoral catarinense, o ex-capitão acelerou um carro de corrida em parque temático e dançou ao som de MC Reaça

O Norte de Minas também foi atingido pelas enchentes, deixando um saldo de seis mortos, milhares de desabrigados ou desalojados e 124 municípios em estado e emergência. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, o temporal é consequência da Zona de Convergência do Atlântico Sul, um fenômeno que formou uma faixa de nuvem que vai da Região Amazônica até o Oceano Atlântico. As chuvas até que são comuns nesta época do ano, na transição entre a primavera e o verão, mas foram bem mais intensas entre o fim do ano e início de 2022.

No começo de dezembro, quando as tempestades se intensificaram na Bahia, Bolsonaro chegou a visitar o Estado, mas criou mais problemas do que apontou soluções. Ele sobrevoou a área atingida e comparou a tragédia às medidas de distanciamento social adotadas por prefeitos e governadores para conter a Covid-19, numa tentativa de atingir o govenador Rui Costa. Em meio à tragédia, o Brasil rejeitou uma ajuda humanitária do governo da Argentina para atender as vítimas das enchentes. Alegou que a situação estava sob controle e enviou aos municípios atingidos médicos para atender os mais necessitados.

Da parte do governo estadual está sendo feito o cadastramento de pessoas que perderam suas casas e comerciantes afetados pelas enchentes. “Abrimos uma linha de crédito de até 150 mil reais, sem juros, para pequenos comerciantes e prestadores de serviços e estamos prestes a ampliar para a população atingida um programa de auxílio financeiro, criado durante os momentos mais graves da pandemia. Também está nos nossos planos, para aplicação imediata, um programa de construção de casas para pessoas que perderam as suas. Outro benefício foi a ampliação do programa de tarifa social por parte da empresa estatal de abastecimento de água”, explica Costa.

“A DISCRIMINAÇÃO NÃO É CONTRA O GOVERNADOR, MAS SIM CONTRA O POVO BAIANO E OS ATINGIDOS PELAS CHUVAS”, LEMBRA RUI COSTA

Mas o que fez a diferença mesmo em meio à tragédia na Bahia foi a solidariedade das pessoas. Enquanto Bolsonaro curtia seu Réveillon na orla de São Francisco do Sul, centenas de desabrigados se confraternizavam em uma escola pública em Itabuna, com direito a música e ceia, graças a doações e ao trabalho de voluntários. “Uma onda de solidariedade sucedeu a tragédia, evidenciando a empatia e a esperança, espalhando os bons ventos da reconstrução. As ajudas de várias pessoas, lugares e formas se somaram. O mais importante era contribuir com doações, no âmbito do cuidado ou ainda em atendimentos multidisciplinares, a exemplo de saúde e psicologia”, relata Célia Watanabe, educadora e moradora de Itabuna.

A Central Única das Favelas (Cufa) e a Frente Nacional Antirracista (FNA) vinham fazendo um trabalho social e de conscientização política na região antes mesmo das chuvas. Com a tragédia, os dois grupos coordenaram uma corrente de solidariedade em nível nacional e conseguiram angariar muitas doações. A meta é arrecadar 1 milhão de cestas básicas – até 4 de janeiro havia mais de 970 mil. “A chuva e a pandemia só fizeram escancarar uma desigualdade histórica. As pessoas que moravam na beira do rio, onde casas foram devastadas, estavam ali há décadas. É necessário dar o alimento, mas é importante levar dignidade às pessoas também. As vítimas, em sua maioria, são pretas. Temos de cuidar com empatia, porque esse sofrimento é histórico”, salienta Márcio Lima, presidente da Cufa na Bahia.

“A gente sabe da importância de ajudar os nossos irmãos que estão passando por dificuldade. Se tem uma família preta e periférica no Sul da Bahia sofrendo, a gente tem a responsabilidade de organizar essa campanha para tentar, de alguma forma, ajudar esses irmãos”, afirma Tamires Sampaio, coordenadora da FNA, explicando que a campanha Abrace a Bahia arrecadou em torno de 50 milhões de reais, recursos que são utilizados para a compra das cestas básicas, material de higiene, colchões e cobertores. Ela cita também a parceria que a FNA e a Cufa têm com empresas privadas de logística para levar as doações até as vítimas.

Quase 800 mil baianos foram atingidos pelas tempestades. A última cheia dessa magnitude na região ocorreu em 1967, há pouco mais de 50 anos

Apesar de a principal causadora das chuvas ser a Zona de Convergência do Atlântico Sul, as mudanças climáticas contribuem para o fenômeno, uma vez que são responsáveis por eventos extremos, como períodos prolongados de seca e tempestades atípicas. Ronaldo Gomes, geólogo-geotécnico e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, no Sul da Bahia, afirma que grandes enchentes são previsíveis por terem tempo de recorrência. A última na região nessa magnitude aconteceu em 1967, há pouco mais de 50 anos. “A hidrologia consegue, a partir de dados históricos, quantificar o tempo de recorrência de chuvas e, consequentemente, as vazões dessas chuvas. A ciência calcula isso e prevê o tempo para que aquele determinado evento volte a acontecer. Quanto maior a recorrência, maior a intensidade do evento.”

Se as enchentes são previsíveis, assim como a seca, por que o Poder Público não se prepara para tais fenômenos e protege a população dos seus efeitos? “De forma geral, os mapeamentos de riscos remetem ao problema, dizem onde o risco está e ele deve ser tratado para evitar tragédias. Se você sabe que um dia essa cheia vem, providências podem ser tomadas. Essa informação pode não chegar ao Poder Público, aí é um problema de comunicação. Mas se chega, você cai na velha história de saber sobre o evento e não tomar as providências necessárias”, responde Gomes.

Alessandro Santana, economista e reitor da Uesc, diz ser possível evitar a tragédia a partir da implantação de políticas públicas voltadas para a população mais vulnerável. Ele explica que, muitas vezes, pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade são retiradas de suas casas sem que sejam dadas condições para que elas se mantenham nas novas moradias. “É preciso acompanhamento econômico e social para que essas pessoas possam ter não apenas uma moradia mais segura em outra área, mas também condições de sobrevivência. Uma política pública eficiente é fundamental para resolver essas questões.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: DIETER GROSS/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO E FERNANDO VIVAS/GOVBA – MANU DIAS/GOVBA E FERNANDO VIVAS/GOVBA

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