Política

cadastre-se e leia

O mundo (pior) do Madero

Jornadas excessivas, assédio, condições precárias… Como é trabalhar na rede de fast-food

O mundo (pior) do Madero
O mundo (pior) do Madero
Propaganda enganosa. Durski, entusiasmado bolsonarista, arrumou um modo de controlar os empregados – Imagem: Redes Sociais
Apoie Siga-nos no

A rede de restaurantes Madero tem 275 unidades espalhadas pelo Brasil e seu crescimento se apoia em uma estrutura que vai na contramão do mercado. Enquanto o setor aposta nas franquias, o grupo comandado por Júnior Durski, entusiasmado bolsonarista, abdicou desse modelo de expansão em 2009. A terceirização e a contratação sem vínculos trabalhistas também são evitadas e a empresa faz questão de empregar todos os funcionários, da produção nas fazendas aos garçons e seguranças.

Fundada em 2005 no centro histórico de Curitiba, a companhia tinha 110 unidades quando decidiu, em 2017, lustrar a imagem. A mudança do slogan marcou a transição. Saiu o pretensioso “O Madero faz o melhor hambúrguer do mundo”, entrou o inverossímil “O hambúrguer do Madero faz o mundo melhor”. Adaptação aparentemente pequena, mas direcionada ao surrado marketing do compromisso com a ética e a sustentabilidade. A promessa de ser uma empresa de valores sólidos estende-se ao relacionamento com os funcionários. No site da rede, a aba do “trabalhe conosco” descreve “colaboradores felizes” empenhados em “entregar comida da melhor qualidade”. Mais: “Valorizamos o potencial e as habilidades de todos e temos o compromisso com a inclusão e a diversidade de forma colaborativa para impactar vidas positivamente todos os dias”, lê-se em outro trecho.

Quando se analisa a quantidade de processos trabalhistas contra a rede, percebe-se que o Madero não tem sido capaz de oferecer “um mundo melhor” nem mesmo para os empregados. O sistema de contratação estimula a exploração da mão de obra por meio de recursos que por vezes extrapolam a legalidade, apesar do caminhão de subsídios recebidos do setor público. A pedra angular é a arregimentação de jovens em pequenas cidades de diferentes estados e levados a alojamentos mantidos pelo conglomerado.

Professora e pesquisadora do Instituto Federal do Paraná, Kelem ­Ghellere Rosso escolheu o Madero como tema de sua tese de doutorado. Segundo ela, a opção de oferecer moradia aos trabalhadores cumpre uma dupla função de redução de custos e controle sobre os empregados. “A estratégia consiste em recrutar jovens com pré-requisitos abaixo do que o mercado solicita para um emprego formal. Em alguns casos precisa ter apenas o ensino básico e não ter experiência. Em suma, basta disponibilidade para morar em outro lugar fora de sua cidade de origem. Podemos imaginar que o custo de oferecer uma moradia para os trabalhadores seja alto, mas o próprio Júnior Durski disse que dessa forma economiza com vale-transporte, uma vez que cada um desses alojamentos pode abrigar até 15 trabalhadores”.

Empurrão. O Madero recebe vultosos benefícios fiscais do governo paranaense. Assim é fácil empreender – Imagem: Redes Sociais

Alex de Matos Ribeira trabalhou em um dos restaurantes contêineres do Madero em Porto Alegre e descreve uma a rotina desumana. “O restaurante tinha de estar de portas abertas todos os dias às 11h30 e fechava às 11 da noite, mas depois de fechar a gente tinha de fazer a limpeza geral, inclusive dos banheiros. Depois, ir para dentro do freezer e fazer a contagem do material e, às vezes, não tinha material de proteção. Parte desse trabalho não era contabilizado como hora trabalhada, eu saía de lá muito tarde e caminhava 3 quilômetros, em uma área perigosa, até chegar no alojamento. No outro dia, tinha de estar lá antes de abrir, não dá pra fazer nada. Vivia em função do Madero.”

Na moradia, recorda Ribeiro, pipocavam vários tipos de problemas. “Certa vez, um traficante foi ao alojamento cobrar uma dívida de um cliente. Foi uma situação muito perigosa, ficamos apreensivos.”

Ao sobrecarregar os funcionários, a empresa consegue uma economia nos salários de até metade dos custos dos concorrentes. “O Madero também consegue reduzir a rotatividade, um problema para o setor. Como se trata de um trabalho muito precarizado, que paga muito pouco, os funcionários em geral ficam pouco tempo e mudam de trabalho. Então existe um certo controle sobre a mobilidade”, afirma a pesquisadora.

O Madero é alvo de centenas de ações na Justiça do Trabalho

Juliana Moreira foi empregada do Madero entre 2018 e 2022, chegava a trabalhar mais de 12 horas por dia e diz ter sido demitida depois do nascimento do filho. “Quando voltei da licença-maternidade, fui dispensada. Há um grande preconceito contra mulheres no cargo de liderança. Mulheres que saem por licença-maternidade, quando voltam, são desligadas por não servirem mais para o restaurante. É muito desrespeitoso. Eles vivem fazendo uma propaganda sobre os valores da família, mas se dessem tanto valor para a família, eles não iriam sair demitindo quem virou mãe.” Durante a gravidez, diz, era obrigada a uma jornada exaustiva e até entrar nos ­freezers por longos períodos. “Uma vez cheguei a trabalhar com Covid. Como não tem gente o suficiente, todo mundo vai, mesmo doente.” O esforço era tão grande, lembra, que um dia desmaiou no trabalho e foi levada a um hospital. Ainda assim, o supervisor foi buscá-la no pronto-atendimento para que ela voltasse às funções. Juliana relata ainda casos de assédio sexual ignorados pelo grupo.

As longas jornadas e as situações degradantes não se encerram no ambiente de trabalho. Nas moradias, os funcionários são obrigados a cumprir uma escala de limpeza e manutenção, muitas vezes realizadas nos dias de folga. “Uma vez, eu estava responsável pela limpeza do banheiro do alojamento e o banheiro vivia dando problema, eu pedia várias vezes para que o encanamento fosse consertado, mas nada era feito. As pessoas iam tomar banho e depois eu tinha de arrumar algo muito mais complicado, pois o ralo entupia e quem tinha de arrumar era eu, avisei aos superiores e nada foi resolvido, era muito humilhante”, descreve um ex-funcionário que pediu anonimato. Certa vez, acrescenta, dormiu no sofá em frente à televisão do alojamento, por causa do cansaço, e dois colegas colocaram a genitália em sua boca e fizeram fotos, enviadas no grupo de trabalho. “Não aconteceu nada com eles, todo mundo sabe quem foi. Na verdade, eles foram até promovidos depois.”

O crescimento do Madero teve dois momentos decisivos. O primeiro, em 2015, quando foi montada a fábrica central em Ponta Grossa, no Paraná, com apoio do então governador Beto Richa. Um ano antes, a empresa passou a receber incentivos fiscais para a compra de gás natural e energia elétrica, além do alongamento do prazo de recolhimento de ICMS, graças ao Programa Paraná Competitivo. Não só. Em 2016, o grupo ganhou um terreno de quase 27 mil metros quadrados da prefeitura de Ponta Grossa, onde está instalada a cozinha central.

“Semi-aberto”. As condições dos alojamentos da rede deixam a desejar – Imagem: Redes Sociais

A partir de 2017, com a aprovação da reforma trabalhista do governo de Michel Temer, Durski compreendeu rapidamente as possibilidades à sua frente. “Ocorre que com a perspectiva da reforma constituiu-se a ideia de que o negociado prevalece sobre o legislado. A empresa pôde assim buscar ampliar o intervalo intrajornada. Mas, quando se amplia esse intervalo a três ou quatro horas, isso acaba por ferir a Constituição, pois supera os direitos fundamentais dos trabalhadores”, argumenta o professor Jorge Luiz Souto Maior. Esse tipo de jornada, diz, fratura o dia do empregado e o impede de ter uma vida digna. “O que sobra para quem passa quase 12 horas por dia voltado para o trabalho? Durante esse intervalo você continua, de certa forma, ainda atrelado ao serviço. A pessoa não pode estudar, ter um lazer ou contatos sociais. É uma situação extremamente danosa à condição humana.”

Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, destaca outro aspecto central da reforma trabalhista: o enfraquecimento dos sindicatos. “Para ­Friedrich Hayek, em seu livro Os ­Caminhos da ­Servidão, os sindicatos de classe são um empecilho para a liberdade do capital. Então, você precisa eliminá-los ou os transformar em um espaço de conciliação patronal.” A descrição condiz com a situação encontrada pela reportagem, que por semanas tentou contato com sindicatos que representam os trabalhadores de restaurantes no Paraná e São Paulo, os dois estados com maior número de unidades do grupo, sem obter resposta. Ao escolher jovens sem experiência, o Madero cerca-se de trabalhadores que nunca tiveram contato com nenhuma forma de proteção trabalhista, seja por parte dos sindicatos, seja do Estado.

Sobre as condições de trabalho em suas unidades, a rede de restaurantes “afirma seu compromisso com o bem-estar e o respeito aos direitos de todos os seus colaboradores, em conformidade com as leis trabalhistas vigentes” e “faculta a utilização de moradia aos colaboradores que necessitem para viabilizar a prestação dos serviços, sem qualquer obrigatoriedade”. O Madero é alvo de centenas de ações na Justiça do Trabalho. Há condenações por falta de pagamento de horas extras, jornadas abusivas e descumprimento de dezenas de regulações trabalhistas. •

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O mundo (pior) do Madero’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo