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O luto como uma forma de reexistir

Médica psiquiatra e escritora, Natália Timerman constrói uma narrativa sobre si para falar da morte

“Como é ser filha de alguém que não está?”, pergunta ela – Imagem: Renato Parada
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É a uma frase de Annie Ernaux, ganhadora do Nobel, que a escritora paulistana Natália Timerman recorre para se dirigir aos leitores de As Pequenas Chances: “História familiar e história coletiva são uma única coisa”. A epígrafe, ao mesmo tempo que indica sua motivação, parece servir de anteparo às críticas que, não raro, rondam as narrativas assentadas no eu.

No livro, Natália, médica psiquiatra, psicanalista e escritora, narra a si e a parte de sua família. Do encontro fugaz, em um aeroporto, com dr. Felipe, médico de cuidados paliativos, ela puxará o fio da memória que nos conduzirá ao dia da morte de seu pai, por câncer.

“Como é ser filha de alguém que já não está?”, pergunta-se, no ato da escrita. Esse fio, como anuncia a epígrafe, tecerá uma trama íntima para, a partir dela, construir algo que diga respeito a uma experiência coletiva.

Ao mesmo tempo que se filia à tradição de narrativas sobre o luto, As Pequenas Chances lança mão de um dispositivo tornado comum na última década: o da autoficção.

Por ser Natália uma mulher nascida na classe média alta paulistana, em uma família que cultiva os livros, a música, os filmes, os restaurantes e as viagens, parte da realidade que emerge das páginas da obra é a realidade social dessa classe. Parte dela, no entanto, por dizer respeito às coisas e sentidos do luto, é comum a quem quer que seja.

As Pequenas Chances. Natália Timerman. Todavia (208 págs., 69,90 reais). Compre na Amazon.

“A morte é abstrata, mas dói em detalhes concretos, e essas duas instâncias, a concreta e a abstrata, nunca se encontram”, escreve. Um dos achados do livro é que ao menos ali, com as palavras a reordenar o tempo, essas duas instâncias se interpõem. E assim, de trecho em trecho, o luto da autora acaba por espelhar o luto vivido ou intuído de cada um.

Mas Natália vai além desse relato que sua experiência como psicanalista certamente ajudou a tornar agudo. A certa altura, ela diz que, no luto, buscam-se novas versões do passado “como se fosse um jeito de a história continuar”, e passa então a empreender a busca da história familiar que até então ignorara.

Em um artifício narrativo que só se revelará por completo no epílogo, Natália viaja de São Paulo para a Romênia, onde seu filho vai participar de uma olimpíada de matemática. Nessa travessia, compreenderá o movimento migratório dos judeus do Pale rumo ao Brasil.

Embora essa terceira parte do livro seja menos bem resolvida do que as outras duas, é nela que se materializa uma das belezas do luto que Natália não descreve, mas transmite: quando um pai e uma mãe deixam de existir, outra existência se inicia para os filhos que ficam. •

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O luto como uma forma de reexistir’

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