Justiça
O irracional da morte
O legado de inovações na segurança paulista, positivo para policiais e civis, corre sérios riscos


Numa incursão nas estreitas vielas de uma favela em Santos, de pouco mais de 1 metro de largura, policiais militares perseguiam um alvo incerto ziguezagueando entre os casebres, quando, subitamente, o soldado Samuel Cosme se deparou com a morte. O assassino disparou à queima-roupa contra o rosto do policial numa triste cena registrada pela câmera corporal do soldado. Lamentavelmente, casos como este aumentaram em São Paulo no último ano. Em 2023, o número de policiais mortos subiu 50%, foram nove valorosos profissionais assassinados em serviço. Por que morreram?
Uma resposta primária e pouco inteligente poderia ser de que os nossos bravos policiais, no estrito cumprimento da missão, se defrontaram com criminosos que não hesitaram em atirar covardemente. Esta resposta é, no entanto, uma tautologia improdutiva que coloca ênfase apenas no papel do criminoso. Desse modo, como as incursões são “sempre” necessárias e como sempre haverá criminosos covardes e impiedosos, logo policiais morrerão. Ossos do ofício.
Este raciocínio, levado a cabo por muitas autoridades da área, esconde responsabilidades e desvia o foco das atenções para o campo emocional da luta entre o Bem e o Mal, interditando o uso da racionalidade a favor de uma política de segurança pública efetiva que proteja, inclusive, a vida e a saúde psicológica dos policiais.
Caberia, em primeiro lugar, perguntar se todas essas incursões são realmente necessárias e contribuem para fazer diminuir o número de crimes ou para aumentar a sensação de segurança da população, objetivo de qualquer política de segurança pública. Claro que, se as operações policiais são orientadas por um trabalho prévio de inteligência para atingir objetivos específicos, como a prisão de criminosos que ocupem papéis estratégicos nas redes criminais, a desarticulação de paióis, ou ainda o cumprimento de mandados judiciais, a ação é necessária. Se, por outro lado, as incursões são voltadas para a prisão aleatória de criminosos que, porventura, estejam nas quebradas portando armas ou drogas, será que os benefícios superam os custos e riscos esperados?
Em territórios urbanos complexos, em que há a presença de grupos criminosos fortemente armados, tais ações envolvem alto custo para o Estado, em termos do uso de recursos, inclusive de horas de trabalho dos profissionais da segurança pública (que poderiam estar alocados no policiamento e na contenção de crimes na cidade). Outra consequência, além dos riscos para os policiais e civis, é o aumento da insegurança na comunidade e sentimento de animosidade contra a polícia (e vice-versa), o que extingue qualquer chance de sucesso de uma política de segurança efetiva, que necessita da união de esforços entre esses atores.
De fato, enquanto o entra e sai aleatório da polícia fortemente armada nas comunidades – geralmente deixando um rastro de mortes – é irracional, a sua presença permanente para defender os direitos de cidadania nas quebradas é requerida e desejada por toda a sociedade e pela comunidade, em particular, como bem nos lembra o exemplo das UPPs no Rio de Janeiro.
Matar ou morrer no exercício da profissão deveria ser uma possibilidade remota, exceção da exceção
Não obstante, se a incursão é necessária, como nas condições explicadas anteriormente, o planejamento tático deveria ser cuidadoso, de modo a evitar mortes de policiais e civis. Como bem salientou o tenente-coronel Dave Grossman em seu livro On Killing: The Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society, utilizado por todas as forças de segurança norte-americanas, policiais obrigados a lidar continuamente com episódios que resultam em mortes têm maiores chances de desenvolver problemas emocionais severos e ideações suicidas.
Quando olhamos os países de tradição anglo-saxônica, em que as políticas públicas são orientadas pelas evidências científicas, vemos o quanto nos falta avançar. Alguns poucos exemplos. A Nova Zelândia teve 33 policiais mortos em serviço desde 1890. No Canadá, em média, quatro policiais foram mortos nos últimos dez anos. Mesmo nos EUA, um país com alta prevalência de armas, na última década, em média, cem policiais foram mortos anualmente.
Políticos inescrupulosos muitas vezes usam as mortes de policiais e de civis para exaltar o bravo trabalho desses “heróis”. Ninguém faz, porém, concurso público para herói. Matar ou morrer no exercício da profissão deveria ser uma possibilidade apenas remota, exceção da exceção. Nas modernas sociedades democráticas, os policiais cumprem uma função extremamente nobre e precisam ser valorizados. E a melhor forma de valorizar esses profissionais é lhes garantir condições dignas de trabalho, sem expô-los a riscos físicos e mentais desnecessários, em ações planejadas com base na racionalidade e nas evidências científicas e não na ideologia da guerra e da brutalidade.
Nesse ponto, os acontecimentos no campo da segurança pública paulista têm preocupado. Em 2023, como apontado, o número de policiais mortos no estado aumentou 50%, ao passo que o número de civis mortos por intervenção policial aumentou 19,7%, revertendo uma trajetória de queda acentuada, que registrou o menor nível histórico de mortes de civis, em 2022.
Desde 1997, São Paulo tem sido palco de boas inovações baseadas em evidências científicas, como a implantação do modelo japonês de polícia comunitária, que fez reduzir radicalmente a criminalidade no Jardim Ângela, a criação do Infocrim no começo dos anos 2000, que permitiu maior eficiência do policiamento no estado e, mais recentemente, o excepcional projeto Olho Vivo, de câmeras corporais nos policiais, com várias avaliações de impacto extremamente positivas. A julgar pelas palavras e ações do governador e do secretário de Segurança, todo esse legado, que contribuiu para a queda de homicídios desde 1999, está em risco. Esperamos, contudo, que a racionalidade pela preservação da vida prevaleça. O povo paulista agradece. •
*Pesquisador do Ipea, professor do PPGSP da UVV, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Atlas da Violência.
Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O irracional da morte’
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