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O golpismo vem do berço

As Forças Armadas se consideram tutoras da República e abominam a Constituição de 1988, diz o historiador Francisco Teixeira

Teixeira, professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, conhece a corporação por dentro - Imagem: Acervo pessoal e Isac Nóbrega/PR
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O que no início parecia conivência virou cumplicidade. Passadas quase duas semanas da invasão do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, as digitais de integrantes das Forças Armadas aparecem por todos os lados. O governador afastado do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, afirmou ter sido impedido por militares de desmontar o acampamento bolsonarista instalado na porta do QG do Exército. Segundo relato do jornal The Washington Post, o comandante da corporação, Júlio César de Arruda, cometeu um ato de insubordinação ao impedir o ministro da Justiça, Flávio Dino, de prender meliantes envolvidos na invasão, enquanto inúmeros detidos em flagrante confessaram à Polícia Federal terem recebido proteção de soldados. Surpresa? Não para Francisco Teixeira, professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Nesta entrevista, o pesquisador descreve o modus operandi golpista dos fardados e de como a ideologia da tutela militar está impregnada nos batalhões.

CartaCapital: Como o senhor classifica o envolvimento de militares nos atos golpistas de 8 de janeiro?

Francisco Teixeira:  É preciso colocar numa perspectiva histórica e podemos fazer isso numa longa duração desde o momento em que as Forças Armadas, e quando falo Forças Armadas é dominantemente o Exército, assumiu a ideia de que tinha uma tutela sobre a República. O fato de a República ter sido proclamada quase sob a forma de um golpe de Estado contra o imperador fez com que os militares se imaginassem tutores da República, proclamada com pouca adesão popular, ação quase palaciana. A partir do movimento tenentista nos anos 1920, em particular, os militares reforçaram a visão de herdeiros de um Poder Moderador decaído. Querem continuar a exercer esse direito de intervir na vida republicana. Ora, os militares não são poder, são funcionários públicos. E devem sujeitar-se à lei, e a lei maior é a Constituição.

“Os militares não são poder, são funcionários públicos. Devem seguir as leis”

CC: Qual o paralelo entre essa história, a tentativa de golpe atual e a participação do Exército?

FT: O Exército e as Forças Armadas em geral se retiraram da política em 1985, no fim da ditadura civil-militar. Mas nunca aceitaram o projeto da Nova República. Essa é a verdade. A República projetada por Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, quando fazem a abertura, era muito menor em termos de direitos, de garantias, de liberdades, do que a Nova República, que acabou por se tornar, muito mais aberta e muito mais democrática, graças à pressão dos movimentos sociais, como as Diretas Já. Os militares nunca engoliram a Constituição de 1988 e fizeram uma pressão enorme que se traduziu na redação do artigo 142. Esse artigo é muito mal compreendido e perigoso ao estabelecer alguma coisa muito diferente do que seria a função precípua das Forças Armadas: a defesa das fronteiras e da soberania nacional. O artigo 142 lhes dava o poder de defender a ordem interna republicana. Um erro, pois esta é missão do Supremo Tribunal Federal, do próprio Congresso, do Ministério Público. Uma prova desse desamor dos militares pela República se vê claramente na trajetória do general Augusto Heleno. Em 1977, houve uma tentativa de golpe do ministro da Guerra, Sílvio Frota, contra Geisel. Ele acusa Geisel de acolher comunistas no governo. O auxiliar direto de Frota era o capitão Augusto Heleno. No primeiro governo Fernando Henrique, foram feitas leis complementares que regulavam e modificavam o uso do artigo. Nenhum comandante militar pode, com base no artigo 142, tentar uma intervenção militar inconstitucional. No governo Bolsonaro, Augusto Heleno assume o GSI e o transforma num foco de resistência antidemocrática, um laboratório golpista.

Chamam de Proclamação da República, mas não passou de golpe militar, um entre tantos – Imagem: Washington Costa/ME e Marcelo Camargo/ABR

CC: O ministro da Defesa, José ­Múcio, tem sido muito criticado pela complacência. Ele tem perfil para desmantelar o golpismo nas Forças Armadas?

FT: Lula acertou em escolher um civil para o Ministério da Defesa. Foi a primeira vitória. Mas o nome escolhido não é, embora seja especialista em administração pública, expert em assuntos militares. Isso o coloca à mercê dos militares. Num determinado momento, para criar uma figura de linguagem, ele quase agiu não como ministro de Estado, mas como embaixador dos militares junto ao governo Lula. Não foi positivo. Múcio deveria ter estabelecido com clareza as cadeias de comando e o exercido. Ele até agora não entendeu, pois, mesmo depois do dia 8, propõe-se a promover almoços entre os chefes militares e ministros para apresentar uns aos outros. Não é preciso que se conheçam os militares nem conhecer a sua opinião. São funcionários públicos, nunca foram eleitos para nada e nunca foi dado a eles mandato para definir os destinos da República.

“Havia um plano generalizado e nacional de levar o Brasil ao caos. Não podia ter sido causado por três ou quatro comerciantes do interior de Minas Gerais ou São Paulo”

CC: Durante um café da manhã com jornalistas, o presidente Lula fez duras críticas às Forças Armadas e aos responsáveis pela segurança do Palácio do Planalto. Fez bem?

FT: Temos dois pontos. O primeiro é o reconhecimento cabal, dito sem nenhuma opacidade pelo presidente, de que ele não confiava nos militares responsáveis pela segurança. Que eles não cumpriram a sua função. É um elemento absolutamente inédito nas declarações de Lula até então. Mostra que ele não aceitou o diagnóstico produzido pelo ministro da Defesa e pelo ministro do GSI, de que haveria uma diminuição gradual e pacífica dos movimentos bolsonaristas. A segunda coisa fundamental é o rompimento de uma tradição histórica da República, em que as intervenções para garantir a ordem eram feitas por militares. O que Lula fez ao nomear Ricardo Capelli, um civil, para fazer a intervenção na segurança do Distrito Federal mostrou que não precisamos de militares, “vocês não têm nada a fazer aqui”. Esse é um rompimento fundamental. Essa posição, se mantida, ataca fortemente a ideologia da tutela militar sobre a República.

General Heleno: uma vez conspirador, sempre conspirador. Múcio: ministro ou despachante dos interesses militares? – Imagem: Benedito Calixto/Pinacoteca do Estado de SP

CC: Segundo Ricardo Cappelli, havia entre os terroristas profissionais com conhecimento das plantas dos prédios públicos, outro indício de ação planejada, com participação de militares. Como barrar o golpismo?

FT: O governo Lula precisa de inteligência estratégica. Aceitou um diagnóstico produzido por setores militares, encaminhado pelo general Gonçalves Dias, segundo o qual estava tudo em paz e não era preciso ter grandes preocupações. A isso ajudou o belíssimo espetáculo da posse, que foi muito tensa, a gente esperava alguma coisa ali, mas que não aconteceu nada, e que uma semana depois viria a explodir. Na verdade, eles escolheram onde e quando iriam atacar e a forma de agir. Quando as instituições se prepararam para enfrentar uma insurreição fascistoide no dia da posse, não aconteceu. Ocorreu uma semana depois. Eles têm autonomia e inteligência estratégicas, conseguem fazer com muita capacidade de previsão. Houve planejamento central. Mais: no dia seguinte continuaram a explodir torres de energia e tentativas de invasão de refinarias, de parar dutos. Isso é muito grave, mostra um plano generalizado e nacional de levar o Brasil ao caos. Isso não podia ter sido causado por três ou quatro comerciantes do interior de Minas Gerais ou São Paulo que foram defender uma visão de mundo reacionária. Isso tem um comando estratégico. Onde está? A inteligência do Exército, a Abin e, principalmente, o Gabinete de Segurança Institucional não perceberam? Tinha de ocorrer uma intervenção federal civil mesmo. A decretação de uma Garantia da Lei e da Ordem para colocar generais no controle do cenário político e canais da capital poderia resultar na prisão de Lula. Dino entendeu a situação, o que não ocorreu imediatamente no caso de Múcio e do chefe do GSI. Isso criou um impasse entre o Ministério da Justiça e o comando do Exército, que desobedeceu às determinações de Dino e colocou blindados na rua para proteger os invasores, deu fuga, em repetição ao que havia acontecido do Palácio do Planalto, quando o comandante da guarda presidencial, em vez de defender o prédio, acabou por proteger os invasores. Isso tem de ser esclarecido.

CC: Qual o futuro do bolsonarismo e dos extremistas?

FT: O bolsonarismo não é uma expressão da vontade de um dirigente. Tem origens diversas e um fundo conservador típico da sociedade brasileira, ainda marcado pelo escravismo e pela diferença social e racial. Somaram-se a isso a tradição integralista dos anos 1930 e essa visão expressa no lema “Deus, pátria, família”. Há ainda um forte componente nazista, força muito poderosa no Brasil. Aqui existiu o segundo maior partido nazista fora da Alemanha. E o bolsonarismo soma tudo ao fundamentalismo religioso, esse salvacionismo que manipula com muito cinismo. Por fim, toma também práticas bonapartistas, autoritárias, típicas do trumpismo com o qual se identifica muito. Temos a confluência de várias correntes políticas numa verdadeira colcha de retalhos que faz a natureza do próprio bolsonarismo. Isso responde a várias camadas sociais que se sentem enfraquecidas, ameaçadas, de forma real ou imaginária, no seu status social. Enquanto não dermos respostas a esses medos radicalizados, não podemos dizer que o bolsonarismo está derrotado. A extrema-direita conseguiu hegemonizar o conjunto da direita brasileira. É uma corrente política de longa vida, pois os setores de direita alijados do poder vão querer retornar e vão querer refazer essa aliança. Não precisa ser em torno de Bolsonaro. Se Bolsonaro se mostrar um personagem muito tóxico, não há a menor dúvida de que essa confluência entre a direita tradicional, conservadora e excludente, e o fascismo vão escolher outros líderes. Teremos bolsonarismo com ou sem Bolsonaro. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O golpismo vem do berço”

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