Política
O fiel da balança
O Rio de Janeiro é estratégico para a vitória de Lula no primeiro turno, mas o campo progressista não consegue se entender


O Rio de Janeiro sempre esteve no centro da vida política brasileira. Exceção feita aos períodos de ditadura, o estado historicamente foi palco de renhidas disputas locais ou nacionais que definiram os rumos políticos do País. Neste ano, mais que nunca, entender a disputa local não é tarefa para principiantes. Em meio à polarização entre Lula e Bolsonaro, a briga pelo governo estadual e pelo Senado provoca movimentações e atritos tanto à esquerda quanto à direita e mantém o quadro indefinido às vésperas do início oficial da campanha.
A tensão nas negociações é redobrada, pois o Rio, terceiro maior colégio eleitoral do País com 12,4 milhões de eleitores, será decisivo para uma eventual definição da eleição no primeiro turno. Pesquisa divulgada pelo Ipec, em julho, mostra uma disputa acirrada: 41% das intenções de voto para Lula e 34% para Bolsonaro.
A preocupação é maior na campanha de Lula, pois o estado – outrora eleitoralmente progressista que, entre outras, deu a Leonel Brizola, do PDT, a histórica vitória de 1982 – é hoje um reduto fortemente influenciado pelo bolsonarismo. O ex-presidente perdeu 7 pontos de vantagem sobre Bolsonaro no estado somente no último mês e terá de lidar com dificuldades, como levar sua campanha às regiões controladas pelas milícias, onde apenas na capital vivem 2 milhões de eleitores. Outra montanha a ser escalada por Lula é conquistar o voto evangélico no estado, onde estes são mais numerosos (31% da população) e mais fiéis a Bolsonaro. Nesse segmento, o ex-capitão vence o petista por 51% a 24%.
Dificuldades, segundo a avaliação de setores da direção do PT, que tendem a se agravar por conta do perfil de Marcelo Freixo, candidato do PSB ao Palácio Guanabara apoiado pelo PT. Lideranças como o vice-presidente do partido, Washington Quaquá, afirmam que Freixo traz dificuldades ao petista entre parte do eleitorado e no interior. “A prioridade é eleger Lula no primeiro turno. Insistir com o apoio a Freixo é ignorar a realidade de que a esquerda tem um teto de 30% de votação no estado, que só foi ultrapassado uma única vez por Benedita da Silva nas eleições para a prefeitura da capital em 1992”, diz o ex-prefeito de Maricá, acrescentando “ser urgente abrir novos palanques para Lula”. Para o dirigente petista, que tem forte influência na Executiva Estadual, isso significa até mesmo romper a aliança com Freixo e levar o apoio de Lula ao ex-prefeito de Niterói, Rodrigo Neves, candidato a governador pelo PDT, apoiado pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes.
O PT ameaça desembarcar da chapa de Freixo e apoiar Rodrigo Neves, do PDT
O estopim para a decisão de rachar a aliança no Rio é a insistência do PSB em manter a candidatura ao Senado do deputado federal Alessandro Molon, contrariando o acordo com o PT que previa a indicação do deputado estadual André Ceciliano ao Senado. Uma resolução assinada pelo presidente do PT no Rio, João Maurício, foi encaminhada à Executiva Nacional do partido. “Infelizmente, não é mais possível manter o apoio à candidatura de Freixo ao governo do estado”, afirma o documento, que, em referência a Carlos Siqueira, diz também que o PT foi “surpreendido pela defesa do presidente nacional do PSB de manutenção da candidatura divisionista e aventureira de Molon”. A ideia de abandonar o barco de Freixo e subir no de Neves encontra eco na direção nacional petista. “O apoio ao Rodrigo seria um gesto extremamente importante que poderia acelerar o voto útil em Lula e garantir a sua vitória no primeiro turno”, diz Jilmar Tatto, secretário nacional de Comunicação do PT.
Uma fonte próxima de Lula afirma que o comando nacional da campanha observa com atenção o quadro no Rio. O diagnóstico do ex-presidente é de que “é preciso ampliar a campanha no estado, mas que isso poderá ser feito com Freixo”. Em sua passagem pelo Rio para um comício em julho, Lula reafirmou o apoio ao candidato do PSB, mas, diz a fonte, o PT entende que a insistência de Molon gerou uma situação inesperada: “É difícil um duplo palanque no Rio. Lula apoia Freixo, mas reconhece a complexidade da situação levantada por uma parte importante do partido e respeitará o que for decidido”. O martelo será batido na sexta-feira 5, data-limite para a convenção do PT no Rio.
Freixo não esconde sua irritação com o que chama de “estranha matemática” dos dirigentes petistas no Rio: “Eu obtive 350 mil votos para deputado, estou em situação de empate técnico nas pesquisas com o atual governador e quatro vezes à frente do outro candidato. Mas é ele quem vai ampliar a candidatura de Lula?”, indaga. Para o candidato do PSB, a tese de que ele puxaria Lula para baixo entre conservadores e no interior “é uma narrativa inventada por Quaquá, que quer mesmo é reeleger Castro”. Freixo rechaça o estigma de “candidato da Zona Sul” imputado pelos críticos: “Nas últimas eleições, tive metade dos meus votos em outras regiões, sendo 30% na Zona Oeste. Basta ter boa-fé e olhar os mapas eleitorais”.
Vale tudo. Castro puxa o tapete de Romário e faz de tudo para retirar Crivella da disputa pelo Palácio da Guanabara – Imagem: Redes sociais e IURD
Especialista em Segurança Pública, o sociólogo Ignacio Cano, da Uerj, diz não acreditar que milicianos e grupos bolsonaristas possam impedir o pessebista de fazer campanha: “Embora o Freixo não possa pisar fisicamente em regiões controladas pela milícia, ele sempre teve um desempenho relativamente bom nas eleições para deputado em várias dessas áreas, até porque há muita gente nessas comunidades que não concorda com as milícias. Nessas regiões, existe o voto em Freixo justamente porque ele representa a antimilícia”, diz. Cano vê ainda menos perigo para a campanha presidencial: “Lula já é muito conhecido do eleitorado. Não precisa de apresentação nessas áreas e sua candidatura não vai sofrer por causa de eventuais ameaças ou restrições”.
Freixo, que oficializou o nome do ex-prefeito Cesar Maia, do PSDB, como vice em sua chapa, aponta esse e outros movimentos que vêm sendo feitos para ampliar sua candidatura e aumentar as chances de vitória em outubro: “Não é justo dizer que a maior aliança da esquerda é restrita. Nossa candidatura cresce, fizemos movimentos ao centro, trouxemos o PSDB. Estou há um ano tendo conversas com setores evangélicos e do empresariado”, diz, citando interlocutores como o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, o pastor Abner Ferreira e o coronel da reserva Alberto Pinheiro Neto, ex-comandante do Bope.
Para o cientista político e professor da PUC-Rio Ricardo Ismael, Freixo tem uma trajetória que o deixa em condições de disputar o governo com chances de vitória: “Ele tem o conhecimento de parte do público, principalmente na cidade do Rio, onde foi candidato à prefeitura”, diz. O grande problema, aponta o especialista, é o interior, onde Freixo e o PSB, com apenas uma prefeitura, têm pouca penetração: “A candidatura de Freixo é fortíssima na capital e isso irradia para a Região Metropolitana. Para chegar ao interior, ele precisa muito mais do Lula do que o Lula dele. O Freixo sempre procurou vincular-se a Lula, mas o interior é onde a estrutura partidária conta, assim como o apoio das prefeituras”.
Coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Nilza Valéria Zacarias avalia que falta uma aproximação real das campanhas progressistas para mostrar que há caminhos para o diálogo. “Evangélicos falam com evangélicos. Essa é a falha nas candidaturas do Freixo e do Lula. Não adianta colocar pessoas que não sejam evangélicas para fazer essa interlocução. Da mesma forma, não adianta dialogar com um evangélico que assume um discurso público idêntico ao dos pastores do campo de Bolsonaro.” Ela diz que essa relação tem de ser construída de forma estratégica: “Os candidatos não compreendem a importância de chamar os evangélicos aliados”.
A chapa de Castro também pode sair com dois (ou três) candidatos para o Senado Federal
No campo da direita, as duas últimas semanas serviram para aparar arestas e consolidar Cláudio Castro, do PL, como candidato único do bolsonarismo no estado. Com auxílio direto do senador Flávio Bolsonaro, o governador obteve importante vitória ao fazer o Republicanos domar as pretensões eleitorais do ex-prefeito Marcelo Crivella, que chegou a anunciar no meio político sua intenção de se candidatar ao governo. O jogo ainda não está completamente jogado, pois Castro, segundo fontes palacianas, teria oferecido apoio a uma eventual candidatura de Crivella ao Senado, acordo que, se consumado, faria a chapa governista ter dois candidatos ao cargo, já que o senador Romário, do PL, disputa a reeleição.
Paralelamente, e com a ajuda involuntária da Justiça Eleitoral, Castro também tirou do páreo o ex-governador Anthony Garotinho, do União Brasil, outra candidatura que ameaçava o seu lugar no segundo turno. Após meses de idas e vindas, Garotinho, que teve sua inelegibilidade mantida pelo Tribunal Regional Eleitoral, declarou apoio ao governador na convenção estadual do UB realizada no domingo 31: “Respeito meu partido e estou com Castro. Não fico em cima do muro. Tenho divergências, mas reconheço o lado positivo de sua gestão”, disse. Para conquistar o apoio do ex-governador e quase adversário, Castro costurou com o partido aliado, que faz parte de seu secretariado, o lançamento da deputada federal Clarissa Garotinho ao Senado. Outro revés para Romário.
Vitaminado pelas verbas oriundas da venda da Cedae e pelo Pacto RJ, que distribuiu 17 bilhões de reais em 50 projetos por todo o estado, Castro conta com apoio de 85 dos 92 prefeitos fluminenses e de 53 deputados dos 70 que compõem a Assembleia Legislativa. “Castro beneficia-se dos recursos da Cedae e de ações que o governo tem feito, mas é uma candidatura a ser testada durante a campanha”, avalia Ismael. O cientista político aponta o “jogo ambíguo” feito pelo governador: “Ele, certamente, é um aliado de Bolsonaro, mas tem feito articulações, inclusive com petistas como Ceciliano, e mais recentemente com Garotinho”.
Ismael deixa, porém, um alerta a todos os candidatos: “O Rio é bem peculiar. Nos últimos anos, sucessivos governos estaduais fracassaram e governadores terminaram afastados do cargo e presos. Isso resulta em um eleitorado muito reticente em relação aos políticos. Conquistar esse voto não é uma tarefa simples. Esta é uma dificuldade para todos os candidatos e deixa a eleição para governador muito aberta e indefinida”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O fiel da balança”
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