Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

O Congresso que tem raiva de mulheres

O Centrão quer ministérios hoje chefiados por elas. A Câmara prepara PEC da Anistia para isentar multas de partidos que não respeitaram a cota de gênero e raça, enquanto faz marcação cerrada sobre 6 deputadas

Créditos: José Cruz / Agência Brasil
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A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, encara um dos maiores desafios do governo Lula ao desbravar a criação de um ministério e um plano de ação que não tem paralelo no Brasil. Guajajara atua pela defesa da população indígena, donos das terras mais cobiçadas pela bancada ruralista do Congresso, base do Centrão. Entre as suas diversas missões urgentes, está a articulação pela retirada de garimpeiros e madeireiros dessas terras. A invasão dessas áreas protegidas deixa um rastro de destruição inimaginável: desde a contaminação das águas, o extermínio de fauna e flora, até o estupro de adolescentes e mulheres indígenas.

Os garimpeiros que invadiram as terras amazônicas detestam o trabalho da ministra. Assim como muitos deputados na capital que, logo no início da gestão de Guajajara, queriam desmontar a estrutura da sua pasta e até extingui-la. “É uma pressão generalizada”, disse a ministra à coluna. “Homens não estão acostumados com mulheres assumindo cargos mais estratégicos”, analisa.

Marina Silva, titular da pasta do Meio Ambiente, também viveu as agruras de lidar com um Congresso impregnado pelo machismo. Mas, diante dos compromissos internacionais de desmatamento zero na Amazônia que o governo Lula assumiu, sabe-se que a ministra tornou-se ‘imexível’.

Daniela Carneiro, agora ex-ministra do Turismo, não teve a mesma sorte. Foi rifada por pressão do União Brasil, que emplacou o deputado paraense Celso Sabino no seu lugar. Sabino é aliado do presidente do Congresso, Arthur Lira (PP-AL), e esteve alinhado com o ex-presidente Jair Bolsonaro durante o seu governo. Daniela Carneiro acabou virando moeda de troca do governo para aprovar a reforma tributária na Câmara.

Novas barganhas estão a caminho e outras duas ministras ficaram na mira do Centrão: na Saúde, a socióloga Nísia Trindade, e nos Esportes, a ex-jogadora Ana Moser. O cargo da presidenta da Caixa, Rita Serrano, também é alvo de cobiça.

As reações negativas a esse xadrez machista fez o presidente Lula se posicionar. Lula foi enfático na defesa de Nísia, uma das 11 mulheres a comporem seu ministério. O presidente também fez um gesto de apoio a Moser ao colocá-la à frente da articulação para trazer a Copa do Mundo feminina em 2027. A Serrano, por ora, coube queixar-se das especulações, ainda sem o respaldo público do presidente.

Estão na mira do Centrão outras pastas e autarquias, nem todas chefiadas por mulheres. Mas não se pode negar a “coincidência” de que as principais disputas de poder vividas no governo Lula nestes sete de governo se concentraram, especialmente, na ala feminina da Esplanada dos Ministérios. “Quando afeta a uma de nós, afeta a todas”, diz Sônia Guajajara.

Saiu o governo que tinha raiva de mulheres, ficou o Congresso — e o Centrão — para manter a chama misógina bem acesa. Há pelo menos dois episódios que comprovam essa premissa. Uma é a PEC da Anistia, projeto que prevê o perdão aos partidos que não tenham cumprido as cotas de gênero e raciais, ou seja, não fizeram o repasse de verbas do fundo eleitoral para favorecer candidaturas de mulheres e negros.

Outra armadilha intimidatória foi montada pelo PL contra seis deputadas por supostamente xingarem deputados durante a votação do marco temporal no fim de maio. O partido de Bolsonaro instaurou processos disciplinares contra as parlamentares do PSOL Célia Xakriabá, Sâmia Bonfim, Talíria Petrone e Fernando Melchiona, e as petistas Juliana Cardoso e Erika Kokay.

“Não há justificativa para que a ação contra essas deputadas ande tão rápido no Conselho de Ética”, diz a ministra Guajajara. “Outros requerimentos solicitados por elas para apurar comportamentos de homens do início do mandato em fevereiro não foram nem aprovados”, completa.

A Câmara soma 91 deputadas, dos 513 parlamentares, um aumento de 14 cadeiras para mulheres na última eleição. Nem todas as eleitas estão cuidando dos direitos conquistados por elas. Entre as deputadas mais votadas, por exemplo, está Bia Kicis (PL-DF), bolsonarista ferrenha reeleita com a mesma plataforma anti-feminista que sempre defendeu.

A guerra hoje é tão árdua como foi nos anos Bolsonaro, com a diferença de que agora não há gritos histriônicos quase diários de um presidente contra elas, que acabavam por despertar a reação coletiva. Neste momento, o risco está nas canetadas do Congresso, feitas no atropelo, em projetos como a PEC da Anistia. Está também no investimento de candidaturas de mulheres contrárias a pautas feministas, como Michelle Bolsonaro, que está em plena campanha para alçar voo político.

Uma parte das mulheres parece distraída depois da derrota do projeto de ultradireita nas eleições passadas. Mas o momento pede mais atenção.

O Brasil já acumula um histórico importante de união feminina. Desde 2013, vivemos momentos importantes através de campanhas que, de maneira inédita, fez as mulheres entenderem o poder do coletivo. Foi o caso do movimento “Chega de Fiu Fiu”, depois o “Meu primeiro assédio”, que criaram uma conexão imediata entre mulheres ao encorajar mulheres a expor publicamente os abusos que sempre sofreram caladas.

Foi um processo acelerado de tomada de consciência feminina, sobretudo das mais jovens com a força das redes sociais, lembra Maira Liguori, diretora da ONG Think Olga, responsável pelas campanhas. As marchas e manifestações de rua se multiplicaram desde então. “Esse senso de coletividade é muito poderoso e foi capaz de colocar em marcha uma mudança de postura entre as mulheres, que passaram a denunciar, expor e lutar por uma vida sem violência de gênero”, analisa Liguori.

A influência dos movimentos feministas pelo mundo afloraram ainda mais essa cobrança pelos nossos direitos no Brasil. Nesse caldo de manifestações, nasceu, por exemplo, a lei do feminicídio em 2015, para diferenciar os  homicídios cometidos contra mulheres apenas pelo seu gênero.

Houve avanços, e devem ser celebrados. Mas na política, o retrocesso continua firme e forte. “Ainda somos o elo mais fraco”, diz Beatriz della Costa, co-diretora do instituto Update, lembrando que há um movimento mundial organizado para derrubar os direitos femininos. “A agenda anti-gênero tem um financiamento bilionário, de onde vieram nomes como (a agora senadora) Damares Alves”, diz Costa. Um levantamento da Global Philanthropy Project revela que essa agenda anti-feminista recebeu mais de US$ 6 bilhões entre 2008 e 2017 no mundo. Estavam semeando a guerra de gênero aguda com a qual convivemos agora.

O momento pede consciência e reação, pois a vida nunca foi e nem será fácil para quem nasce mulher. “Mesmo estando em um cenário mais favorável agora, com um presidente do campo democrático popular”, reconhece Mazé Morais, coordenadora geral da Marcha das Margaridas, que deve reunir mais de 100.000 mulheres em Brasília nos dias 15 e 16 de agosto para cobrar mais direitos.

O Brasil urbano deveria se inspirar nas margaridas, trabalhadoras rurais que marcham a cada quatro anos, desde o ano 2000 para fortalecer a sua luta. Vivemos um quadro bizarro de ver o presidente da Câmara, Arthur Lira, processando veículos que publicaram entrevistas com sua ex-mulher, Jullyene Lins, que o denunciou em 2006 por violência física e sexual. Precisamos colocar nossa luta para cobrar desse Congresso antes que ele consiga nos atropelar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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