Política
O Brasil continua chantageado por militares que deveriam varrer calçadas e pintar paredes
Bolsonaro não é um acidente de percurso. Resulta da covardia dos civis em estabelecer a verdade e impor autoridade, como aconteceu na Argentina, no Chile e no Uruguai


Os iludidos que um dia acreditaram na derrubada da Lei da Anistia, imposta pelos militares, e na punição dos facínoras dos porões da ditadura hoje se contentariam com um gesto bem mais prosaico: que as Forças Armadas parassem de envergonhar o Brasil com as comemorações do 31 de março. Lá se vão 37 anos do que parte da intelectualidade insiste em chamar de redemocratização, da devolução tutelada do poder aos civis, e o País continua chantageado pelas baionetas. Entrincheirados em ministérios, estatais e mais de 7 mil cargos de confiança, os generais nunca estiveram tão convencidos de sua superioridade intelectual e moral, notórias qualidades dos generais Eduardo Pazuello e Augusto Heleno, expoentes do pensamento das casernas. Tamanho brilhantismo ofusca.
Assinada pelo ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto, futuro companheiro de chapa de Jair Bolsonaro, e pelos comandantes das três forças, a nota alusiva ao golpe, divulgada na quinta-feira 31, exala o cheiro de mofo da Guerra Fria, não a atual, mas aquela dos tempos do telex, da Polaroid e dos thrillers de John Le Carré. É tão atual quanto o blindado da parada militar de agosto do ano passado que sonhava ter asas e integrar a Esquadrilha da Fumaça. Exuma o cadáver do comunismo e diz que 21 anos de ditadura “salvaram” a democracia da iminência de uma revolução socialista. Anos de terapia não serão suficientes para superar a regressão. Só quem é capaz, a esta altura, de enxergar comunistas em cada esquina pode equiparar João Goulart, um estancieiro de ideias reformistas, a Lenin ou Fidel Castro.
A nota reforça a húbris fardada: anacrônica, pedestre e cansativa. Mas é incontestável em um parágrafo, quando envia um recado aos antigos parceiros civis que, como os militares, atravessaram incólumes os anos pós-ditadura. “Em março de 1964”, diz o texto, “as famílias, as igrejas, os empresários, os políticos, a imprensa (destaco este ponto), a Ordem dos Advogados do Brasil, as Forças Armadas e a sociedade em geral aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para estabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implementado.”
Bolsonaro não é um acidente de percurso. Resulta da covardia dos civis em estabelecer a verdade e impor autoridade, como aconteceu na Argentina, no Chile e no Uruguai. Fossem outras as escolhas, os militares se limitariam a cumprir as patrióticas missões que justificam o soldo mensal e o rigoroso treinamento: varrer calçadas e pintar paredes. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O tempora…”
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