Política
O Brasil ainda não tem respostas definitivas sobre o combate às fake news
Na última semana, somente após o bloqueio do STF, o Telegram reviu a sua postura e decidiu se adaptar à legislação brasileira


Pelo calendário do Tribunal Superior Eleitoral, a campanha deste ano só poderá começar na internet em 16 de agosto. Isso não impede que, no terreno livre de algumas plataformas, candidatos e apoiadores atuem a pleno vapor, muitas vezes de mãos dadas com a desinformação. Quatro anos após o tsunami de notícias falsas que desequilibrou o pleito em 2018, o Brasil vê o tempo passar sem que nenhuma medida concreta venha garantir que as fake news não cumprirão novamente papel decisivo na escolha dos eleitores alimentados por conteúdo criminoso. Ainda sem respostas definitivas para o problema, e com a aparente paralisia do Projeto de Lei que busca trazer alguma solidez a esse pantanoso terreno, o País viveu na última semana o embate entre o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o aplicativo de mensagens Telegram, até aqui a principal ferramenta do bolsonarismo para atacar adversários e disseminar mentiras.
A esgrima entre Moraes e o Telegram durou um fim de semana e trouxe resultados imediatos que apontam para uma adequação da plataforma à Justiça brasileira. A empresa comprometeu-se, por exemplo, a nomear um representante legal no País. Na quinta-feira 18, o magistrado determinou o bloqueio do aplicativo por este ter desconsiderado ordens para retirar conteúdos com desinformação postados por Jair Bolsonaro e suspender contas acusadas de espalhar fake news, como as do blogueiro foragido Allan dos Santos. Moraes estipulou ainda multa diária de 500 mil reais, caso a companhia voltasse a ignorar o STF, e de 100 mil para os provedores que se recusassem a bloquear o app. A medida surtiu efeito e horas depois Pavel Durov, fundador do Telegram, deu o ar da graça: “O que aconteceu foi uma falha de comunicação. Peço desculpas ao STF por nossa negligência”, disse o jovem empresário russo pelo… Telegram.
Enquanto isso, no Congresso, o PL das Fake News segue sem desfecho
Mais do que palavras, Durov tomou duas atitudes que levaram Moraes a revogar a suspensão do Telegram no domingo 20. Além de indicar um representante legal, ele removeu a postagem na qual Bolsonaro revelava dados sigilosos de uma investigação da Polícia Federal sobre um ataque hacker aos sistemas do TSE. A plataforma também assegurou ao STF ter instalado ferramentas para impedir a criação de novos perfis por usuários suspeitos de disseminar notícias falsas. “Essa medida nos permite diminuir o risco de repetidas violações e já a aplicamos aos autores dos canais que foram previamente identificados pela Justiça como ilegais no Brasil”, disse o Telegram no ofício enviado a Moraes.
Representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) e pesquisadora sobre o fenômeno das fake news, a jornalista Bia Barbosa avalia que a decisão de Moraes garantiu o estabelecimento de uma interlocução com o Telegram: “Até então a plataforma não havia dado retorno a diferentes órgãos da Justiça brasileira, não apenas ignorando o cumprimento das decisões como não respondendo a comunicados das mais diversas naturezas feitos pelo TSE”. O aperto dado pelo STF, diz, “foi fundamental para mostrar que o Telegram tem condições, sim, de moderar conteúdos e fazer o enfrentamento a atitudes ilícitas dentro da plataforma. Foi o que aconteceu com o bloqueio da postagem de Bolsonaro”.
Desculpas. O russo Pavel Durov atribuiu o problema a uma “falha de comunicação“ – Imagem: Steve Jennings/TechCrunch
Barbosa faz uma ressalva: “Se os compromissos serão respeitados pelo Telegram, só o tempo poderá mostrar”. Ela lembra que outros canais de Allan dos Santos já haviam sido criados pela plataforma e que (até o fechamento desta edição) ao menos um continua ativo: “O ministro determinou que, se novos canais fossem criados por esse perfil, teriam de ser bloqueados imediatamente. Então, a decisão não está sendo cumprida em sua integralidade”. A ativista questiona ainda qual prazo o Telegram vai adotar para cumprir o que foi assumido: “A empresa fala em uma revisão de seus termos de uso a partir de uma análise da legislação brasileira, mas não explica como fará essa revisão nem quando ela estará disponível. Da mesma forma, o Telegram diz que vai impedir a disseminação de conteúdos que contenham desinformação. Mas as agências de checagem dizem que ainda não têm nenhum acordo estabelecido com o Telegram para esse tipo de trabalho, feito com outras plataformas no Brasil”.
Bolsonaro e integrantes do primeiro escalão do governo tomaram para si as dores do Telegram. Sem explicar como, o presidente, com 1 milhão de seguidores no aplicativo, chegou a dizer que o bloqueio poderia “causar óbitos” e que interessaria apenas aos que querem “me atingir e fortalecer o Lula”. Mais uma vez, Moraes foi alvo preferencial: “Olha aí as consequências da decisão monocrática de um ministro do STF. Porque não conseguiu atingir duas ou três pessoas que deveriam ser banidas do Telegram, ele atinge 70 milhões de pessoas”, disse, antes da revogação da decisão do ministro. Bolsonaro logo teve a companhia do ministro da Justiça, Anderson Torres, que reclamou dos “milhões de brasileiros prejudicados” em postagem nas redes sociais.
Já o advogado-geral da União, Bruno Bianco, resolveu advogar para o Telegram e pediu ao STF que revisse a decisão de Moraes. “O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso. Sugerimos medidas alternativas que não inviabilizem a plataforma”, disse em manifestação enviada ao Supremo. O principal argumento da AGU é que o bloqueio do Telegram contraria o que está estabelecido no Marco Civil da Internet aprovado em 2014. Moraes utilizou, porém, o mesmo Marco Civil como uma das bases de sua argumentação pelo bloqueio.
Fé. Orlando Silva aposta na aprovação do PL das Fake News antes das eleições – Imagem: Richard Silva/PCdoB na Câmara
Advogado e pesquisador do grupo Constituição, Política e Instituições da USP, Artur Pericles avalia que a questão é complexa: “Existem duas objeções à atuação da AGU neste caso. Primeiro, de que estaria representando interesses particulares, de uma empresa. No entanto, aqui a defesa da AGU beneficiaria milhões de usuários prejudicados, caso o bloqueio tivesse sido efetivado. Isso não significa que a decisão do ministro Moraes foi equivocada. Não quer dizer, como afirma Bolsonaro, que a decisão não tinha embasamento legal. Apenas que a discussão não é limitada aos interesses econômicos do Telegram”.
A segunda objeção é a de que o advogado-geral da União possa pleitear uma medida cautelar. “O advogado-geral da União nem poderia ser autor, porque não tem a legitimidade constitucional para isso. Apesar disso, em decisão de maio de 2020 o STF entendeu que a AGU atua nesses casos de forma semelhante ao Ministério Público, o que indica que também poderia postular medida cautelar como fez no caso do Telegram”, diz Pericles.
Relator do PL das Fake News na Câmara, o deputado Orlando Silva, do PCdoB, critica a postura do governo: “Bolsonaro tem se notabilizado pelo aparelhamento das instituições de Estado. Não só na AGU, ele tenta manejar os órgãos de acordo com seu interesse político e pessoal. Foi o que aconteceu neste caso do Telegram. É inadmissível que a AGU, que deveria estar ao serviço do interesse público, se submeta a qualquer capricho ou interesse privado do presidente”. Para o deputado, a decisão de Moraes “foi dura, mas necessária” para disciplinar a questão. “Nenhuma empresa pode se insurgir contra as leis do Brasil. A correção da decisão pode ser medida pela alteração na postura do Telegram, que adotou uma atitude completamente diferente da que vinha tendo até aqui.”
Um dos pontos frágeis do projeto é a extensão da imunidade parlamentar para as redes sociais
Na Câmara, Orlando Silva tem desdobrado esforços junto ao presidente da Casa, Arthur Lira, do PP, para destravar impasses e colocar o projeto em pauta: “Trabalho com a perspectiva de que o PL 2630 seja votado na Câmara nos próximos dias. O texto deve ser pactuado também com o Senado, para que tenha tramitação rápida naquela Casa e possa entrar em vigência imediatamente”. O deputado ressalta que o projeto não versa sobre a eleição em si, mas, como lei geral, terá impacto na campanha deste ano: “O quanto antes for votado e aprovado, melhor para que tenhamos um processo eleitoral menos contagiado pelas fake news”.
Bia Barbosa diz acreditar que o projeto será votado e entrará em vigor antes das eleições, mas sem efeito garantido: “Alguns artigos que exigem produtos e mudanças na arquitetura das plataformas podem ter um prazo de vacatio legis ampliado em razão do tempo necessário para o desenvolvimento tecnológico. É importante a gente entender que esta não é uma legislação voltada ao enfrentamento da desinformação no período eleitoral. Ela vai além, trata de mecanismos de transparência e de regras democráticas para a moderação de conteúdo nas plataformas”.
Advogada e conselheira do Intervozes, Flávia Lefèvre aponta os prós e contras do texto do PL: “O avanço mais importante diz respeito à transparência das práticas algorítmicas utilizadas pelas plataformas, de modo que o gerenciamento de conteúdo seja menos opaco. Há também a previsão de relatórios periódicos de remoção de conteúdos e suspensão de contas – para que a gente entenda por que estas estão acontecendo – e de um código de conduta desenvolvido multissetorialmente com a participação do CGI. Outro ponto importante é a previsão de que contas de agentes públicos têm de seguir determinadas regras”.
AGU. Para satisfazer os caprichos do chefe, Bianco advogou para o Telegram – Imagem: Marcello Casal Jr./ABR
Como aspecto negativo, Lefèvre cita a previsão de que as plataformas passem a pagar por conteúdos jornalísticos: “Nós achamos que a atividade jornalística deveria ser financiada de outra maneira. Deixar empresas privadas com grande poder de mercado e com um controle como nunca se viu do fluxo de informações negociarem e pagarem por conteúdos certamente vai influenciar quais terão mais ou menos destaque. A gente pode resvalar aí em violações à liberdade de expressão. Essa discussão tem de ser feita em outro espaço e de forma mais aprofundada”.
Outro ponto negativo para o Intervozes é estender a imunidade parlamentar às irregularidades praticadas nas plataformas: “Isso os coloca em situação de desigualdade com os demais cidadãos. Os parlamentares não poderão ter conteúdos removidos das plataformas mesmo se, após a análise, eles forem considerados mentirosos ou violadores da lei eleitoral”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Papo-furado “
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