Política

Novo plano de zoneamento do Porto de Santos põe em risco a segurança de vizinhos

A proposta prevê a armazenagem de nitrato de amônio, substância que provocou a explosão em Beirute; MP paulista cobra informações

Foto: Ministério da Infraestrutura
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Em agosto do ano passado, uma explosão no Porto de Beirute deixou 150 mortos, 6 mil feridos e uma cratera de 43 metros de profundidade. Era uma tragédia anunciada. Há muitos anos especialistas alertavam para os riscos do armazenamento de 2,7 mil toneladas de nitrato de amônio em uma região densamente povoada. Em geral, crimes dessa natureza costumam servir de alerta a outros países. Mas estamos no Brasil e tudo pode acontecer. Em Santos, que abriga o maior complexo portuário da América Latina, um novo projeto, aprovado pelo governo Bolsonaro, abre a possibilidade de se abrigar no entorno da cidade uma carga de 35 mil toneladas de nitrato de amônio, cujo potencial explosivo é 825 vezes maior do que o material guardado na capital libanesa. 

O novo plano de zoneamento do Porto de Santos, como era de se imaginar, atende aos interesses do agronegócio (segundo alguns, de um grupo empresarial específico) e não foi discutido com os moradores da cidade nem anexa estudos de impacto ambiental. A pressa em aprová-lo despertou atenção do Ministério Público de São Paulo, que cobra informações. Do ponto de vista técnico, são três os pontos obscuros na aprovação do projeto pela autoridade portuária que afetam diretamente os habitantes e o meio ambiente de três cidades importantes da região: Cubatão, Santos e Guarujá. 

O mais preocupante deles foi apelidado de “navio-bomba”. O projeto, que não integra diretamente o plano, mas está em andamento, prevê a instalação de um terminal para estocagem e vaporização de gás natural liquefeito, o GNL, em navios, além de um gasoduto marítimo e terrestre localizado entre os três municípios. Os dutos seriam conectados a partir do navio e cruzariam outras áreas até subir a Serra do Mar com destino à Região Metropolitana de São Paulo. Segundo Jeffer Castelo Branco, diretor da Associação de Combate aos Poluentes, doutorando e pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Saúde Socioambiental da Unifesp, físicos e analistas norte-americanos estimam que “o conteúdo de energia de um único navio metaneiro GNL padrão é equivalente a sete décimos de um megaton de TNT, ou cerca de 55 bombas de Hiroshima”.

Um grupo de 35 entidades ambientais, sindicais e de movimentos sociais e coletivos divulgaram em fevereiro uma petição contra o Projeto Estrutural de Suprimentos de Gás na Baixada Santista, na qual pedem que se “afaste o atracadouro de descarga e vaporização para longe de zonas urbanas, em mar aberto, para mais de 10 quilômetros de distância da costa”.

Outro ponto de conflito é a formatação do “novo porto” a partir do plano de zoneamento aprovado e que divide a área portuária em sistema de clusters, ou seja, agrupamentos de produtos em espaços específicos. Isso levará à criação de um megaterminal de fertilizantes, que tem como um dos componentes o nitrato de amônio, e outras substâncias químicas, com previsão de 12 milhões de toneladas ao ano até 2040. Essa “bomba” ficará armazenada em Outeirinhos e Macuco, região de intensa urbanização e próxima às sedes de três campi universitários. “A movimentação inadequada de nitrato de amônio foi a causa da explosão em Beirute, incêndio na França e explosões nos EUA e na Coreia do Norte. (…) Ureia e enxofre também são suscetíveis a incêndio e explosão”, anota o Ministério Público de São Paulo em um documento obtido por CartaCapital.

Porto de Santos é alvo de alertas por organizações em São Paulo. Foto: Ministério da Infraestrutura

Como registrado pelos procuradores, existe a previsão de implementar um entrocamento ferroviário próximo ao futuro terminal de fertilizantes de Outeirinhos, o que atropela um Termo de Ajustamento de Conduta no qual a autoridade portuária se comprometia a investir e proteger os armazéns na região do Valongo como patrimônios públicos e culturais.

“Não somos contra a chamada clusterização, mas, quando vemos esse tipo de carga insalubre, que gera riscos ambientais e até mesmo de explosão, não podemos deixá-la concentrada em um local praticamente dentro da cidade. A rigor, outros portos do mundo a colocam em regiões distantes das áreas urbanas. Além disso, o plano de zoneamento não levou em conta o desenvolvimento econômico não poluente”, afirma o vereador Francisco Nogueira, que solicitou formalmente e em audiências públicas os laudos de impacto ambiental e outros documentos que deveriam ter embasado o projeto, sem sucesso. A autoridade portuária garante que a operação é segura.

O Ministério Público Estadual encaminhou um ofício à Secretaria Executiva do Ministério da Infraestrutura. Pergunta, entre outros pontos, se a aprovação do plano de zoneamento foi amparada por algum parecer que justificasse as mudanças, além de solicitar que sejam divulgados os supostos laudos de impacto ambiental que ainda não vieram a público. Por nota, o ministério informou que não tem conhecimento do caso. A promotoria também acionou o Tribunal de Contas da União.

Em nota, a autoridade portuária informou que “cabe o vereador é empregado licenciado da empresa Marimex, cujo contrato terminou em maio de 2020 mas que ocupa a área onde estão previstas as construções da pera ferroviária e de um terminal de fertilizantes por meio de uma medida cautelar do Tribunal de Contas da União (TCU)”.

O beneficiado é o empresário Rubens Ometto, aliado de primeira hora de Bolsonaro 

O Porto de Santos é como um shopping em que os setores são leiloados a empresas, mas que ficam sob a guarda da autoridade portuária federal. Várias das mudanças criticadas envolvem companhias de um mesmo grupo empresarial: a Cosan, de Rubens Ometto. O empresário é dono da Comgás, responsável pelo projeto apelidado de “navio-bomba”. Uma das companhias que compõem o guarda-chuva do grupo é a Rumo, responsável pelo entroncamento ferroviário previsto no plano de zoneamento e empresa responsável por escoar produtos agrícolas pelo porto paulista.

Para ampliar e facilitar o escoamento de grãos, a Rumo Malha Paulista obteve uma renovação antecipada do contrato de concessão ferroviária com a Agência Nacional de Transportes Terrestres. O acordo venceria em 2028, mas acabou prorrogado por mais três décadas, até 2058. E abarca a extensão da estrada entre a paulista Santa Fé do Sul, na divisa com Mato Grosso do Sul, e o Porto de Santos.

Sobre a obra ferroviária, a Rumo afirmou que o empreendimento “é essencial para atender a 13 terminais de diversas empresas do porto, elevando em 15 milhões de toneladas por ano o volume de carga a ser escoado por todo o sistema. A operação será feita por todas as ferrovias que acessam os terminais”. A Cosan chegou a “emprestar” um funcionário para a direção do porto. O advogado Danilo Veras trabalhava na Raízen Combustíveis, assumiu um posto na autoridade portuária e, após participar da elaboração do plano de zoneamento, deixou o cargo, em dezembro de 2020.

Amigo do ministro dos Transportes, Tarcísio de Freitas, Ometto tem portas abertas em Brasília. Em 2018, aderiu cedo à candidatura de Bolsonaro. À época, afirmou que o ex-capitão possuía uma visão “pragmática do meio ambiente”. O resultado do “pragmatismo” está aí para quem quiser ver. O Brasil se tornou um pária internacional por conta da destruição ambiental. O empresário era um dos poucos comensais relevantes no jantar de 7 de abril em São Paulo, oferecido ao presidente pelo dono de uma companhia de segurança privada, encontro marcado, em tese, para reaproximá-lo do setor privado.

Ometto, de braços cruzados, é um grande interessado. Foto: Isac Nóbrega/PR

A relação da Cosan com o governo e, em especial, com o Ministério da Infraestrutura rendeu a Ometto o status de “empresa favorita de Tarcísio”. O ministro rebateu as insinuações recentemente: “Respondendo a alguns caras da maledicência, qual a minha empresa favorita? É toda aquela que acredita no Brasil”. A boa relação não passa, no entanto, despercebida pela concorrência, que vê um “monopólio” do grupo no porto.

Em nota, o Ministério da Infraestrutura informou que o plano de zoneamento “foi aprovado atendendo a todos os critérios e os normativos vigentes, em linha com as diretrizes do Plano Mestre elaborado pela Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários (SNPTA)”, incluindo o TCU. Além disso, teria realizado mais de 30 reuniões com 50 autoridades públicas e representantes da sociedade e sindicatos antes da aprovação.

Em nota enviada a CartaCapital no dia seguinte à publicação da matéria em meio impresso, a empresa responsável pelo Porto de Santos declarou:

A Santos Port Authority (SPA), responsável pelo Porto de Santos, lamenta a forma equivocada com que assuntos estratégicos para o desenvolvimento do Complexo Portuário de Santos e para o Comércio Exterior brasileiro foram tratados na matéria “Bomba-relógio”, publicada pela revista Carta Capital nesta semana. Tendo em vista a relevância dos assuntos mencionados, solicitamos a devida correção e o necessário esclarecimento aos leitores dessa conceituada revista acerca dos dados incorretos e imprecisões apontadas pelo texto e arte.

Um dos pontos se refere à reportagem ter tomado como base um pedido de esclarecimentos feito pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), por conta de representação feita pelo Sindicato dos Empregados Terrestres em Transportes Aquaviários e Operadores Portuários do Estado de São Paulo (Settaport) contra o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) do Porto de Santos. Cabe esclarecer que referido sindicato é presidido pelo vereador Francisco Nogueira (PT), também empregado licenciado da empresa Marimex, cujo contrato terminou em maio de 2020 mas que ocupa a área onde estão previstas as construções da pera ferroviária e de um terminal de fertilizantes por meio de uma medida cautelar do Tribunal de Contas da União (TCU).

Esta condição de parte envolvida motivou outra tentativa de contestação judicial do PDZ, pelo referido vereador, junto à Justiça Federal, a qual foi extinta porque a juíza responsável pela causa entendeu que “os elementos reunidos nos autos até o momento evidenciam que o demandante ostenta propósito de defender interesse de terceiros (empresa) ou de si próprio”, conforme despacho da magistrada Alessandra Nuyens Aguiar.

A SPA esclarece que o PDZ do Porto de Santos foi aprovado pelo Ministério da Infraestrutura, atendendo a todos os critérios e normativos vigentes, em linha com as diretrizes do Plano Mestre elaboradas por aquela pasta e Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários (SNPTA). As investidas contrárias ao PDZ na Justiça não prosperaram até o momento e, no TCU, a área técnica manifestou-se pela regularidade do PDZ. Assim, todos os questionamentos feitos – judiciais e administrativos – foram afastados após os esclarecimentos realizados pela SPA e Minfra/SNPTA, sem prejuízo daqueles que ainda pendem eventuais recursos.

A SPA reafirma que o novo PDZ é um instrumento de planejamento elaborado após meses de trabalho técnico, baseado em fontes oficiais de dados, informações de mercado e modelos de projeção de cargas. Contou com a ampla participação da comunidade portuária e sociedade civil. Foram realizadas mais de 30 reuniões com 50 entidades de trabalhadores, classe empresarial, sociedade civil, OAB, Poder Judiciário, Prefeituras da região, entre outros, o que se mostrou eficaz para a confecção da peça final. A partir destas apresentações, várias contribuições da comunidade portuária foram incorporadas ao documento. Isto posto, lamentamos que a matéria tenha repercutido a alegação inverídica de que o PDZ não foi discutido com “moradores da cidade”.

Outro aspecto abordado se refere ao terminal para fertilizantes. Causa estranheza a insistência do Settaport contra esse futuro terminal, visto que o Porto movimenta há décadas milhões de toneladas dessa carga anualmente via descarga direta e em terminal especializado, o que é feito com todos os controles e segurança definidos pelos órgãos de licenciamento ambiental e de regulação do setor. A segurança da operação de fertilizantes no Porto foi, inclusive, constatada pela “Operação Reliqua”, realizada pelo Ibama em 2020. A realidade em Santos é completamente diferente da do Líbano, cujas causas do desastre ainda são desconhecidas, sendo uma irresponsabilidade fazer qualquer correlação entre a tragédia em porto daquele país e Santos.

Assim, a nova investida do Sindicato no MPSP, de várias já realizadas mesmo antes da aprovação do PDZ – que em breve completa um ano -, é mais uma tentativa de desqualificá-lo sem lastro técnico, o que vai na contramão do próprio desenvolvimento do Porto e em oposição ao interesse público.

Já a pera ferroviária atenderá a mais de dez terminais das regiões da Ponta da Praia, Macuco e Outeirinhos que, juntos, têm compromissos de investimentos de R$ 1,6 bilhão, sendo que metade já foi executada. A pera é uma das obras que integram o projeto da nova Ferrovia Interna do Porto de Santos (FIPS), que envolve investimentos da ordem de R$ 2 bilhões e está alinhada ao planejamento estratégico do Ministério da Infraestrutura, que prevê a multimodalidade como premissa básica e busca equilibrar a matriz de transportes no país.

É importante ressaltar que o sistema ferroviário do Porto movimenta, aproximadamente, 49 milhões de toneladas anuais, número bem próximo à sua capacidade atual que é de cerca de 50 milhões de toneladas anuais. Com esse pacote de intervenções será possível ampliar a movimentação ferroviária em 91%, para 86 milhões de toneladas até o ano 2040, conforme previsão constante do PDZ.

Quanto ao terminal de gás, este projeto fica fora da área do Porto Organizado. Entretanto, a matéria publicou um mapa, ao qual atribuiu autoria à SPA, com a localização errada da proposta do empreendedor, inserindo-o dentro dessa área.

Lamentamos, ainda, que a revista CartaCapital, que prima pelo bom conceito e seriedade das matérias veiculadas, não tenha dado à SPA o direito ao contraditório como era esperado.”

Informe de CartaCapital:

Como foi declarado na nota, a reportagem trouxe as informações referentes ao PDZ o qual ‘foi aprovado atendendo todos os critérios e os normativos vigentes, em linha com as diretrizes do Plano Mestre elaborado pela Secretaria Nacional dos Portos e Transportes Aquaviários, incluindo o TCU. E que além disso, teria realizado mais de 30 reuniões com 50 autoridades públicas e representantes da sociedade e sindicatos antes da aprovação’.

Também em manifestação posterior, a Compass Gás & Energia declarou:

“A matéria presta um desserviço ao abrir espaço para conteúdo improcedente sobre um relevante projeto de infraestrutura na Baixada Santista. Em respeito aos leitores, em particular os moradores da região, temos a informar:

  1. (i)  O projeto de Terminal de Regaseificação de São Paulo (TRSP) obteve todas licenças e autorizações em âmbito federal, estadual e municipal, inclusive de agências reguladoras e da autoridade portuária, havendo passado pelo escrutínio de diversas instâncias competentes;
  2. (ii)  Os terminais de Gás Natural Liquefeito (GNL), como são conhecidos, acumulam mais de 50 anos de operação em todo o mundo, sempre com plena segurança.
  3. (iii)  Em Santos, no TRSP, o gás natural estará armazenado em estado líquido, estado em que não explode.
  4. (iv)  Terminais de GNL são uma tecnologia completamente dominada no Brasil e no mundo. Os projetos obedecem às melhores práticas de engenharia e seguem standards rigorosos. Hoje, em todo o mundo, existem mais de 540 navios de gás natural liquefeito (GNL) navegando entre 200 terminais, sempre com plena segurança.
  5. (v)  O Brasil já conta com cinco terminais em operação, inclusive em águas abrigadas (Rio de Janeiro e Bahia); já o mundo tem terminais funcionando em estuários (Boston, EUA; La Coruña, Espanha, entre outros). Todos com total segurança.
  6. (vi)  O projeto, um investimento de R$ 670 milhões, está sendo desenvolvido para garantir a segurança energética do polo industrial da Baixada Santista (consumidor intensivo de gás) e do Estado de São Paulo, garantindo o acesso do País ao mercado global de gás.”
Publicado na edição nº 1154 de CartaCapital, em 22 de abril de 2021.

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