Política

‘Pazuello de jaleco’: por que o desempenho de Queiroga na Saúde revolta especialistas

Comparações entre vida e liberdade, submissão a Bolsonaro e truculência em terras internacionais marcam o 2021 do ministro da Saúde

Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello. Foto: Evaristo Sá/AFP
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No dia 23 de março de 2021, o Brasil enfrentava a mais grave etapa da pandemia. Registrava em 24 horas 3.251 mortes por Covid-19, um recorde até ali. Naquele mesmo dia, assumiu oficialmente o Ministério da Saúde um personagem que, aos olhos da maior parte da população, tinha como tarefa superar a tragédia que representou a passagem pelo cargo do general Eduardo Pazuello: o médico Marcelo Queiroga.

Especialistas torciam para que Queiroga, um cardiologista que presidia a sociedade nacional da categoria, conduzisse a reação do governo à crise sanitária conforme as recomendações técnicas, incentivando o distanciamento social, as medidas restritivas, o uso de máscara e a ampla vacinação. Para isso, ele teria de enfrentar o chefe Jair Bolsonaro.

A gestão Queiroga nasceu com a promessa de criar um comitê do qual participariam outros poderes. A ideia nasceu, mas não passou de propaganda. Os meses passaram e, apesar de todos os obstáculos impostos pelo governo, a campanha de vacinação avançou e o País viu os indicadores da pandemia melhorarem sensivelmente. Com a evolução no cenário, o ministro da Saúde se sentiu cada vez mais à vontade para se revelar um bolsonarista fanático.

“No começo da gestão, ele tentou sinalizar ou pelo menos manter uma aparência de que respeitaria a comunidade científica, diferente do Pazuello”, avalia o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado. “No meio do caminho, se perdeu. Começou a alimentar pretensões próprias. Ele deve querer se candidatar a algum cargo, deve estar se preparando para sair. E já tem alguns meses que ele abandonou completamente qualquer aparência de respeito técnico e científico para servir de expressão do Bolsonaro.”

Segundo Dourado, Queiroga parece ter percebido “que a única chance de se eleger para alguma coisa é colar em Bolsonaro e ter os votos dos bolsonaristas”. Essa compreensão ajuda a explicar algumas das recentes declarações do ministro que poderiam, sem qualquer alteração, sair da boca do próprio presidente da República.

Disse Queiroga em 7 de dezembro, ao anunciar medidas do governo para tentar conter a variante Ômicron: “Essa questão da vacinação, como realcei, tem dado certo porque nós respeitamos as liberdades individuais. O presidente falou agora há pouco: ‘às vezes, é melhor perder a vida do que perder a liberdade‘”.

Ele passou os dias seguintes na tentativa de se explicar, mas só logrou piorar a própria imagem. Em 10 de dezembro, recorreu ao Hino da Independência para justificar a esdrúxula comparação entre vida e liberdade.

“Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil. E o sol da liberdade em raios fúlgidos. Vamos parar com essas polêmicas”, disse Queiroga a jornalistas.

Para Gonzalo Vecina, médico sanitarista e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Queiroga não é um ignorante em saúde pública como Pazuello, mas, “com esse modelo sabujo de ser”, conseguiu piorar o que já estava ruim.

“Um médico falar o que ele falou sobre a comparação entre liberdade e morte é terrível. Eu espero que a regra valha para ele, mas para o resto da população, não. Eu prefiro me manter vivo para lutar pela minha liberdade. E é por isso que na Constituição fica muito claro que o direito à vida se sobrepõe a todos os outros, inclusive ao da liberdade.”

Vecina destaca também o fato de Queiroga ter mantido no corpo do ministério uma série de figuras presentes nos tempos de Pazuello, como a secretária de Gestão do Trabalho, Mayra Pinheiro, conhecida como “Capitã Cloroquina”.

‘O Queiroga é um desastre. É impressionante como ele consegue negar a importância da vida, apesar de ser médico, e não um militar como o Pazuello’, resume Gonzalo Vecina

Em 2021, Queiroga depôs duas vezes à CPI da Covid, no Senado, e mais irritou do que esclareceu. A falta de uma manifestação clara de repúdio ao uso de remédios comprovadamente ineficazes, como a cloroquina, e a complacência com as aglomerações e o desprezo pela máscara promovidos por Bolsonaro deram o tom das oitivas.

O relatório da comissão recomendou o indiciamento do ministro da Saúde por dois crimes previstos no Código Penal: epidemia com resultado de morte e prevaricação.

Queiroga defendeu reiteradamente, mesmo nos momentos de maior gravidade da pandemia, o fim da obrigatoriedade do uso de máscara. Além disso, o ministro insiste em criar barreiras para que a vacinação de crianças e adolescentes decole.

Nesta quinta-feira 23, uma semana depois de a Anvisa liberar o uso da vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos, que as mortes pela doença nessa faixa etária estão em nível que não demanda “decisões emergenciais”. O Ministério da Saúde, contudo, abriu uma consulta popular sobre o início da aplicação de vacinas nessa faixa etária. A decisão sobre autorizar ou não a vacinação infantil só será anunciada em 5 de janeiro.

“Os óbitos em crianças [por covid-19] estão absolutamente dentro de um patamar que não implica em decisões emergenciais. Ou seja, favorece o Ministério da Saúde, que tem que tomar suas decisões em evidências científicas de qualidade”, afirmou Queiroga a jornalistas. “Felizmente, o número de óbitos nessa faixa etária é baixa. Isso quer dizer que não devemos nos preocupar? Claro que não. Mas mesmo que as vacinas começassem a ser aplicadas amanhã, isso não teria o condão de resolver o problema de forma retrospectiva.”

Queiroga fez questão de demonstrar suas semelhanças com Pazuello – e com Bolsonaro – até em terras estrangeiras.  Em setembro, viajou a Nova York com o chefe para a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Ao encontrar manifestantes contrários ao governo nos Estados Unidos, não hesitou em mostrar, do interior de um automóvel, o dedo do meio. A imagem rodou o mundo.

No final de outubro, debochou das acusações de crimes contra a humanidade imputados a Bolsonaro pela CPI da Covid, durante conversa, em Roma, com o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom.

Em dado momento de um breve diálogo às margens da cúpula do G-20, Bolsonaro afirmou ser “o único chefe de Estado do mundo que está sendo investigado, acusado de genocida.” Queiroga, então, emendou: “Eu também. Vou com ele [Bolsonaro] para Haia. Vamos passear lá”.

Para o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), ex-ministro da Saúde, Queiroga é “um Pazuello de jaleco e sem máscara”.

“Se Bolsonaro tentou calar o SUS com a força das Forças Armadas, com Queiroga tentou fazê-lo usando um médico. Quem aceita servir a Bolsonaro, a cada dia vai se transfigurando com alma, atitudes e pensamentos bolsonaristas”, definiu o petista.

Análise semelhante faz o médico infectologista José David Urbaez, da Sociedade Brasileira de Infectologia em Brasília. Para ele, é “fora de perspectiva” esperar algo diferente de um ministro da Saúde que trabalha para o governo Bolsonaro.

“Queiroga apenas é uma repetição de todas as práticas do próprio Pazuello e fundamentalmente segue o molde cuja diretriz advém da Presidência da República. A única diferença é que nós, médicos, ficamos muito mais indignados pela posição absolutamente distante do que se esperaria de um profissional dessa área, em termos éticos”, afirma Urbaez.

“Quando tínhamos uma pessoa da área militar, isso em tese ficaria perdoado pela falta de treinamento daquele profissional. No caso de Queiroga é realmente um sinônimo de revolta e indignação para nós, médicos.”

Por ter seguido as ordens de Bolsonaro, sem jamais confrontar o ex-capitão publicamente, Queiroga encerra o ano de 2021 podendo, quem sabe, se lançar à Câmara dos Deputados, ao Senado ou ao governo da Paraíba sob apoio da base que sustenta o atual governo. Terá valido a pena?

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