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Nomear filho para embaixada seria impensável na Europa, dizem analistas

Analistas europeus veem indicação como comportamento autocrático e se dizem preocupados com a democracia no Brasil

Eduardo Bolsonaro quase foi alçado à embaixada em Washington. Foto: Paola de Orte/Agência Brasil
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Assim o presidente Jair Bolsonaro ridicularizou, nesta segunda-feira 15, a crítica da mídia, que ele despreza, à polêmica indicação de seu filho “03” como embaixador do Brasil nos Estados Unidos: “Se está sendo criticado, é sinal de que é a pessoa adequada.”

Também seu terceiro filho, Eduardo Bolsonaro, se considera qualificado: “Sou presidente da Comissão de Relações Exteriores [da Câmara], tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos.”

Note-se que o que está em questão não é um bico no McDonald’s, mas sim um posto de embaixada até então só ocupado por diplomatas de ponta, com longa experiência. O fato de Bolsonaro querer entregá-lo ao advogado formado e político de profissão lembra práticas de regimes como o da Arábia Saudita ou do Uzbequistão. Em sociedades modernas, a iniciativa causa estranheza.

“Um presidente confiar a seu filho uma função importante – e o Brasil não tem nenhum embaixador mais importante do que o de Washington – seria impensável num Estado europeu. Aqui, não se falaria de uma relação especial de lealdade e confiança, mas sim de falta de transparência e nepotismo”, analisa o cientista político Thomas Jäger, da Universidade de Colônia.

Também seu colega Alexander Schmotz, da Universidade Humboldt, em Berlim, considera a indicação “estranha”. E o mais problemático, afirma ele à DW, nem é o suposto nepotismo, ou seja, o beneficiar-se do cargo do pai de forma pessoal e lucrativa.

“O que chama a atenção é que conhecemos um procedimento desses antes em autocracias. O motivo por que isso ocorre com tanta frequência em não democracias, contudo, não é a multiplicação da fortuna familiar, mas o fato de os líderes autocráticos serem – e terem que ser – naturalmente desconfiados.” Assim, laços familiares são uma certa garantia prévia de confiança.

Em vídeo, Eduardo Bolsonaro apresentou, como parte de sua expertise, a proximidade ao presidente americano, Donald Trump. O caso atual lembra, aliás, a atual presidência dos EUA, em que o genro Jared Kushner é nomeado mediador para o Oriente Médio.

“Com Donald Trump, a questão é a afirmação da marca política ‘Trump’. Por isso, leva sua filha Ivanka para conferências internacionais e tenta possibilitar-lhe um perfil político. Pois ele vê nela – não ria – a primeira mulher presidente dos EUA”, explica Jäger.

Segundo Schmotz, um “negócio familiar” como esse não é bom para a reputação da democracia americana. “Tais nomeações não contribuem para que se veja a atual administração como competente e eficiente. Elas são também muito reveladoras da noção de democracia do presidente em exercício, e do que é apropriado ou não é.”

Deixando a expertise de lado, no Brasil há uma tradição especial de empregar os parentes. Até o momento, contudo, o Itamaraty era uma exceção, orgulhando-se da excelente formação de seus diplomatas. E a embaixada em Washington era sua figura de proa.

“Acho [a possível nomeação] um absurdo”, comentou à DW o senador Angelo Coronel (PSD-BA), “pois é uma das embaixadas mais importantes que o Brasil tem. E colocar uma pessoa que não tem know-how e experiência, que, como ele mesmo disse, só fritou hambúrguer nos Estados Unidos e é amigo da família Trump, é um desprestígio ao Itamaraty.” Coronel espera que o presidente desista da nomeação: “Juridicamente, não acredito que haja nepotismo. Não é ilegal, mas passa a ser amoral.”

No momento, oscilam no Brasil as opiniões sobre se a nomeação seria lícita. A Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União estão elaborando pareceres a respeito, mas a aprovação parece certa. Por sua vez, na semana anterior, o juiz Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), já classificara a indicação como nepotismo.

Democracia só no papel?

Uma nomeação de Eduardo Bolsonaro levantaria questões também no âmbito internacional. Pois em 2018 o deputado foi designado pelo mentor populista Steve Bannon como representante do movimento nacionalista de direita Alt Right na América do Sul.

“Essa nomeação não acalmará o ceticismo, frequentemente expressado na Europa, quanto à evolução da democracia no Brasil”, sentencia o cientista político Thomas Jäger. “Ela se encaixa na avaliação de que os procedimentos democráticos só são cumpridos no papel, mas não no espírito, e assim a legitimidade democrática do governo vai sendo gradualmente esvaziada.”

Causa de apreensão na Europa é igualmente a aparente proximidade entre as famílias Trump e Bolsonaro. “Quanto mais perto dos Estados Unidos trumpistas, mais longe da Europa: esse é o cerne da avaliação. Por isso, do ponto de vista europeu, o fortalecimento do eixo Brasília-Washington é desfavorável.”

Espera-se que o Brasil não siga cegamente a política de Trump, como na política climática. “Certo, porém, é que na Europa considera-se que tanto a democracia americana quanto a brasileira estão em perigo”, enfatiza Jäger.

Também Alexander Schmotz preocupa-se com a democracia brasileira. “O Brasil conta entre os países que vivenciaram uma sub-reptícia erosão das instituições e normas democráticas – nos estudos democráticos, nos referimos a democratic backsliding [recaída democrática]. Mas a nomeação do embaixador em Washington representa um papel subordinado. Ela se encaixa no quadro, mas vai ter poucas consequências.”

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