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Não é um rebanho

Os evangélicos estão longe de ser um grupo monolítico. Há uma profunda diversidade de pensamento e experiências

Fé e política. As pautas morais exploradas pelos pastores midiáticos não monopolizam as angústias dos fiéis – Imagem: Vivian Silva/Prefeitura de Maringá
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“Nunca na história deste País” se falou tanto de evangélicos. O protagonismo alcançado por esse segmento cristão, como parcela significativa do eleitorado e do ativismo político, provocou uma forte visibilidade. De um lado, nem sempre o que se fala corresponde à dinâmica do que, de fato, pensam e representam as igrejas, os fiéis e suas lideranças. De outro lado, aparecem discussões, a partir de resultados de pesquisas de opinião sobre o governo federal, em torno de distanciamentos e entraves referentes ao diálogo Lula-evangélicos, que devem ser tratadas com cuidado.

Como ponto de partida, é preciso insistir em um elemento, quase exaurido, que perpassa as pesquisas e abordagens responsáveis sobre religião e política no Brasil: ao nos referirmos a “evangélicos”, não tratamos de um grupo monolítico, único, coeso. Portanto, é um grande equívoco (quando não má-fé ou instrumentalização da religião em campanhas) tratá-los como um bloco. Eles são como uma teia formada pelos mais variados fios, que representam teologias, práticas, costumes, visões de mundo, estruturas organizacionais as mais diversas. Daí a necessidade de se superarem entraves na compreensão desse segmento para buscar possibilidades de aproximação e diálogo, pontos que procuraremos listar a seguir:

Superar o enquadramento em um único grupo

Significa compreender a pluralidade do segmento. Existem as igrejas-corporações, organizadas no modelo empresarial, com sedes e congregações subsidiárias e empreendimentos em torno da religião. Seus líderes ganham ampla expressão midiática e política, tendo representantes eleitos para garantir seus interesses no Congresso. Estão nesse grupo alguns ministérios das Assembleias de Deus e outras pentecostais que emergiram nesse modelo, bem como igrejas batistas independentes.

As igrejas-corporações não são a maioria do segmento evangélico. Ela é formada por médias e pequenas, espalhadas pelo Brasil, e incluem uma miríade de grupos menores das Assembleias de Deus, várias pentecostais e as igrejas históricas, como as batistas, presbiterianas, metodistas e luteranas. Esses grupos vivenciam o cotidiano da maior parte da população chamada evangélica, que, segundo os dados do IBGE, é formada em grande maioria, por mulheres, negros, na faixa de 25 a 45 anos, moradores de periferias de grandes cidades.

Pensar que as diferenças não estão apenas nesses elementos também é importante. Elas ainda passam por gênero, raça, classe, localização das comunidades, culturas regionais, e por aproximações e distanciamentos a partir de visões de mundo e das teologias e religiosidades. Evangélicos são gente, são plurais.

Evangélicos não têm representantes

Diferentemente dos católicos, que têm um poder eclesiástico centralizado, os evangélicos não têm um representante. É um segmento formado por diferentes igrejas e grupos, cada qual com seu governo eclesiástico independente. Não há uma “CNBB” evangélica ou porta-voz do segmento. Se alguma associação ou alguém assim se apresenta, usa a ignorância sobre o grupo para tirar proveito.

Existe a Bancada Evangélica. Ela é formada por deputados e senadores que têm vínculos confessionais com diferentes igrejas. A maioria é pentecostal (Assembleias de Deus e Universal) e os demais são de grupos distintos, destacando-se, entre estes, batistas. Parte expressiva está alinhada à direita política, enquanto parcelas menores são de centro e de esquerda. Muitos foram eleitos por igrejas-corporações. Outros são eleitos como quaisquer candidatos, com acionamento discreto ou quase nenhum da sua fé, e passam a ser identificados na bancada pelos laços religiosos que possuem. Nesse sentido, não há uma bancada que represente “os evangélicos”.

Os fiéis discernem bem sobre isso e votam ou não em quem se apresenta como evangélico, e, como pesquisas acadêmicas identificaram, olham a bancada com desconfiança. A relação governo federal-bancada evangélica deve se dar, portanto, como ocorre com qualquer outro grupo que se articula por afinidade temática ou ideológica no Congresso.

Pautas morais não são o fiel da balança

Uma das pesquisas sobre a popularidade do governo federal neste primeiro trimestre de 2024 solicitou a entrevistados que escolhessem, em uma lista de 20 problemas, os três maiores. As respostas da categoria específica “evangélicos” foram bastante similares àquelas da amostra como um todo. Os dois primeiros problemas são os mesmos, “corrupção” e “criminalidade e tráfico de drogas”. Eles têm números similares, pouco acima dos 60% da média geral, bem superiores às outras indicações. O item “Mudança dos valores tradicionais” está no fim da lista, também como a 18ª preocupação. À frente das pautas morais estão situações como: economia e inflação, pobreza, desemprego e desigualdade social, degradação do meio ambiente e aquecimento global, enfraquecimento da democracia e situação da saúde.

As pautas morais integram, sim, a cultura evangélica e, há muito, são utilizadas na instrumentalização da religião por grupos da direita política para disseminar pânico, mas a pesquisa de março passado, ainda que não traga categorizações importantes para grupos evangélicos, é relevante por indicar que não são elas as maiores preocupações de quem foi entrevistado e se declarou evangélico.

Comunicação fundamental

Se a fé é um elemento importante para a população, como considera a direita política para disseminar, de forma eficaz, suas pautas, que tal o governo federal levar em conta essa fé para comunicações informativas e devolutivas?

Se cuidar da família é uma questão de destaque para quem tem fé cristã, por que não mostrar as políticas de cuidado em ações de educação, de saúde, de trabalho? E desenvolver e expor os esforços para as famílias pagarem um preço justo pelos alimentos e se sentirem seguras nas ruas?

É urgente que grupos políticos defensores das pautas de direitos se engajem na linguagem corrente e na dinâmica das mídias digitais que fazem parte do cotidiano da população.

Esses pontos reafirmam o que há muito vem sendo dito: temos diante de nós um segmento muito plural, marcadamente feminino, negro, jovem, periférico. Esse grupo tem expectativas políticas que passam pelo sentimento de insegurança, em especial, diante da violência urbana, a abusos domésticos, a carências nas finanças, na saúde e na educação. Levar em conta estes elementos é fundamental no Brasil de hoje, ao lado da compreensão respeitosa com a religiosidade que forma os imaginários e as visões de mundo, os medos e as esperanças. •


*Pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas.

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não é um rebanho’

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