Economia
Não é só pelo dinheiro
Programa eleitoreiro de Bolsonaro, o Auxílio Brasil não rende os dividendos esperados pelo Planalto


Criado para tentar apagar da memória dos beneficiários o Bolsa Família dos tempos petistas e vitaminar as chances de reeleição de Jair Bolsonaro, o Auxílio Brasil é mais um fracasso da agenda eleitoreira do Palácio do Planalto. Passados dez meses do lançamento do benefício, que elevou o pagamento mensal a 400 reais e ampliou o número de famílias contempladas, a insatisfação entre os mais pobres continua elevada. Segundo pesquisa recente do Datafolha, 69% daqueles que recebem o auxílio o consideram insuficiente. E mais: 59% pretendem votar em Lula, contra 20% que preferem o ex-capitão, o “pai” da medida.
Propagandeado pelo Ministério da Cidadania como um programa mais moderno e abrangente que o antecessor, o Auxílio Brasil esbarrou em dificuldades que distanciaram o discurso da realidade. Apesar de ter aumentado o número de famílias atendidas e de praticamente dobrar o valor mensal do benefício, o governo mudou critérios de avaliação do Bolsa Família, entre eles o tamanho das famílias e seu grau de pobreza, o que levava o benefício criado no governo Lula a eventualmente ultrapassar os 600 reais. No atual modelo, o valor do benefício é único, não importa se a família atendida tem dois ou dez integrantes.
Bolsonaro ignorou ainda os efeitos corrosivos da inflação, que tem se mantido em dois dígitos e, segundo projeções do mercado financeiro, tende a fechar o ano em 9%. “O Auxílio Brasil tem um valor consideravelmente mais alto que o do Bolsa Família, mas é preciso notar que, primeiramente, o programa sofria com uma defasagem orçamentária relevante, de cerca de 15%, em relação ao seu melhor momento, em 2014. Adicionalmente, com a inflação alta, especialmente para os mais pobres, puxada por alimentação e energia, o valor perde grande parte da sua alta em termos de poder de compra”, afirma Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas.
Outro problema é que o auxílio não entregou tudo o que prometeu. A “modernidade” residia nas várias inovações que viriam “a seguir”: auxílio-creche, bolsa-atleta e bolsa de iniciação científica. Quase nada saiu do papel. Entre as medidas não executadas está o Bônus de Inclusão Produtiva Urbana, nome pomposo escolhido para a “porta de saída” que o governo ofereceria aos beneficiários que conseguissem emprego com carteira assinada e que se traduziria em um pagamento mensal de 200 reais.
A inflação corrói os 400 reais. E a maioria dos beneficiários pretende votar em Lula
Outras “inovações para retirar crianças e jovens da criminalidade e da falta de perspectivas” são de alcance irrisório. Uma delas é o Auxílio Esporte Escolar, destinada às famílias que tenham estudantes de 12 a 17 anos com bons resultados nos Jogos Escolares Brasileiros. Com o pagamento previsto de uma cota única anual de mil reais e parcelas mensais de 100 reais, o benefício, até o fim de maio, atendia menos de 2 mil jovens em um universo de cerca de 35 milhões. O mesmo acontece com a Bolsa de Iniciação Científica Júnior, com valores similares, concedida às famílias de estudantes que se destacam em competições científicas ou acadêmicas. Até o fim de maio, menos de 3 mil jovens recebiam o benefício.
Em abril, a cesta básica em São Paulo, a mais cara do País, ultrapassou os 800 reais, o dobro do valor pago pelo Auxílio Brasil. Em maio, o valor teve um pequeno recuo na capital paulista e ficou em 777 reais. Mesmo no caso da cesta básica mais em conta, em Aracaju, o valor em maio ficou em 548 reais. “De Norte a Sul, o valor atual do Auxílio Brasil nem sequer cobre uma cesta básica. Estamos vivendo um cenário de alta inflacionária, e os preços que estão subindo, em muitos casos acima da inflação, são os de alimentos, habitação e transporte, justamente os que mais pesam para quem tem menos renda”, informa Adriana Marcolino, técnica do Dieese.
Segundo ela, mesmo com valor maior, o Auxílio Brasil não dá conta da emergência que aflige as famílias mais pobres: “O Bolsa Família não era só um programa de transferência de renda. Ele estava relacionado a um conjunto de outras políticas para que os beneficiários superassem a situação de pobreza. Havia políticas para qualificação profissional, microcrédito e inserção produtiva, entre outras. O governo Bolsonaro abriu mão de toda essa expertise e instituiu um novo programa, no qual esses elementos são muito frágeis”.
Em uma última tentativa de extrair dividendos eleitorais, o governo decidiu trocar os 18 milhões de cartões do Auxílio Brasil por outros novos, em uma operação que custará ao menos 400 milhões de reais aos cofres públicos. Embora os cartões em geral estejam em pleno funcionamento, Bolsonaro quer dar sumiço na logomarca do Bolsa Família que está presente em 90% deles e, segundo o presidente, faz os beneficiários o associarem a Lula. A ideia foi imediatamente tachada como crime eleitoral pela oposição. Um grupo de deputados de PT, PSOL, PSB, PCdoB e PDT entrou com ação no Tribunal de Contas da União para paralisar a troca, já iniciada e que deve ser concluída até o fim de junho, segundo o governo.
“A troca é desnecessária porque os cartões do Bolsa Família ainda servem perfeitamente. Além disso, é crime eleitoral porque vai se gastar um dinheiro enorme para promover um programa caracterizado como sendo do atual governo. Trata-se de uma evidente propaganda eleitoral”, diz o deputado Carlos Zarattini, do PT. A vantagem de Lula sobre Bolsonaro no Nordeste (62% a 17%), justamente a região que concentra o maior número de beneficiários do Auxílio Brasil, é citada pelo parlamentar como indício de que parte da população ainda tem na memória o bom momento econômico vivido no governo petista. “Preferem Lula porque o aumento no Auxílio Brasil não está compensando o custo de vida. Os preços não param de crescer e aquele aumento em relação ao Bolsa Família não compensa mais”, avalia o parlamentar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Não é só pelo dinheiro “
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