Entrevistas

‘Mudanças nas Forças Armadas indicam que Bolsonaro está acuado e decidiu atacar’

Em entrevista a CartaCapital, o cientista político João Quartim de Moraes analisa debandada simultânea da cúpula fardada

O presidente Jair Bolsonaro ao lado de Edson Leal Pujol, então comandante do Exército. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Por mais que não queiramos cair em alarmismos, não é bom sinal que o comandante do Exército, Edson Pujol, tenha deixado o cargo. Até porque a gente não sabe quem vem no lugar. Esta é a avaliação de João Quartim de Moraes, cientista político e professor da Unicamp, em relação à troca na chefia das Forças Armadas nesta terça-feira 30. A um dia do “aniversário sinistro” de 1964, o estudioso sobre o regime militar brasileiro vê com preocupação a tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e a cúpula fardada.

 

Quartim vê as sugestões recentes de Bolsonaro em relação a uma possível decretação de estado de sítio e seu apoio contumaz à torturadores e atos antidemocráticos como sinais de que ele veja esse momento de crise uma oportunidade de elevar seus anseios autoritários.

Ao mesmo tempo, pondera, o presidente pode estar acuado diante de seu enfraquecimento entre as classes dominantes. Depois de perder apoio entre dirigentes empresariais, industriais e do agronegócio com o agravamento da crise sanitária, restaria a fidelidade dos militares para fazer valer a sua política negacionista. Se as Forças Armadas se negam, a alternativa é recorrer às suas bases populares de extrema-direita, insuflando motins e desenhando um cenário de calamidade.

“Essa é uma hipótese. Não vejo outro caminho para um golpe de Estado. Mas não é uma operação simples. No dia seguinte, o que ele vai fazer?”, questiona o professor.

Por outro lado, Quartim de Moraes não descarta a expressão de fraqueza do governo federal com os últimos movimentos. Com a divisão entre a extrema-direita e a direita, Bolsonaro se vê isolado pelas alas lavajatistas e antipetistas que o levaram ao poder, assinala.

Esse rompimento pode ser decisivo para a sobrevivência do ex-capitão na gerência do Executivo.

Confira a entrevista a seguir.

O cientista político João Quartim de Moraes. Foto Divulgação/Unicamp

CartaCapital: A saída dos chefes das Forças Armadas é um sinal de enfraquecimento ou fortalecimento do governo Bolsonaro?

João Quartim de Moraes: Seria demasiado arriscado escolher peremptoriamente uma das duas opções. O Pujol havia deixado claríssimo que as Forças Armadas não aceitariam servir de guarda pretoriana para um aventureiro — ainda que seja de extrema-direita e admirador do Exército e do Brilhante Ustra. Se esse sujeito sai, isso não é um bom sinal. Por mais que a gente não queira cair em alarmismo ao dizer “o golpe vem aí”, o fato é que não é bom que o Pujol saia. Até porque a gente não sabe quem vem no lugar.

De outro lado, essa saída simultânea é sintomática. Isso mostra que os três estão unidos, até na hora de dar um passo atrás. O ponto é saber se esse passo atrás é uma maneira de dizer “não vamos derrubar você agora, não há condição, mas nós estamos unidos e prontos para ver o que você vai fazer”. É o que dá para saber agora.

CC: O que pode ter sido o estopim para os militares tomarem essa atitude?

JQR: Essa questão é muito complexa porque envolve hipóteses difíceis de demonstrar. Era explícito que o general Pujol estava na mira de Bolsonaro, depois da mudança no Ministério da Defesa. Essa mudança pode significar que o Bolsonaro está acuado politicamente, desmoralizado internacionalmente e com suas bases de apoio extremistas esgarçadas – mas ao mesmo tempo sendo minorias perigosas, sobretudo por estarem presentes em escalões médios das polícias militares e do Exército.

Sentindo-se acuado, ele pode ter dito: agora é a hora de atacar, tentar a solução de força, qualquer que seja a fachada institucional a qual ela recorra. A mais previsível é a seguinte, uma mera hipótese: insuflar rebeliões nas polícias militares, duas já na Bahia e no Ceará, com governadores na linha de frente da oposição. Você insufla um motim ali, o que não é difícil para ele, e quem sabe em mais algumas unidades da Polícia Militar. Sob o caos, exige-se a decretação do estado de sítio. Vamos dizer que a Polícia Militar se amotine e prenda um governador. É um cenário para o estado de sítio. Seria a fisionomia institucional, já que o estado de sítio está previsto pelas instituições.

Há um problema, que é o Congresso apoiar isso em certo prazo. Mas esse mecanismo também é ambíguo. Enquanto o Congresso hesita se concede ou não concede, acho que não concederia, já fechariam o STF. Essa é uma hipótese. Não vejo outro caminho para um golpe de Estado. Mas não é uma operação simples. No dia seguinte, o que ele vai fazer?

CC: Como se comportam as elites diante das forças populares que apoiam Bolsonaro e dos militares?

JQR: Houve um afastamento dos círculos dirigentes da alta burguesia, da grande indústria, do agronegócio, dos bancos [em relação ao governo]. Há uma desafeição pelo Bolsonaro, mas isso independe da pandemia. Os problemas com a China, por causa do chanceler Ernesto Araújo, começaram antes. O trumpismo já era forte nesses escalões mais fanáticos do regime Bolsonaro.

Ninguém previu que a pandemia teria essa força, com o altíssimo potencial de transmissão. Bolsonaro, então, foi apanhado pelo vírus, como o mundo inteiro, e comportou-se como um imbecil e um criminoso. É evidente que, se de um lado, não foi ele que inventou a pandemia, por outro, ele fez de tudo na chefia do Executivo para a pandemia ter os piores efeitos no Brasil.

Entre os meios pensantes, e há gente pensante na direita, não é preciso explicar isso. A Rede Globo é uma testemunha: há uma campanha insistente contra o Bolsonaro. A emissora serve como um bom mostruário das posições dos círculos dirigentes da alta burguesia e do grande agronegócio. E eles mantêm integral o programa de fundo da alta burguesia, que é levar adiante essa contrarreforma liberal, a destruição dos direitos dos trabalhadores e a política na base do lavajatismo.

Aliás, o que preparou o Bolsonaro foi o general lavajatista Villas Bôas, um dos grandes responsáveis por essa situação, ao inibir o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Lula. Afetou consideralmente, portanto, o resultado das eleições de 2018, de modo a entrar como grande vilão da história do Brasil, ou como um herói para a extrema-direita, que amanhã se prepara para o aniversário sinistro de 31 de março de 1964.

A extrema-direita e a direita estão divididas. A divisão na cúpula do Exército reflete a divisão na cúpula da classe dominante. Mas eles continuam lavajatistas, antipetistas e anticomunistas.

CC: Qual é o grau de ineditismo no que ocorre agora entre as Forças Armadas e o Executivo?

JQR: Foram convocadas para amanhã manifestações para intervenção militar com Bolsonaro, com mobilizações no Brasil inteiro. Vão conseguir fazer isso? Isso é um desafio dos fascistas e bolsonaristas das Forças Armadas aos que estão hesitando na cúpula militar? Não sei. O que sei é que essas convocações estão circulando. Pode ser mera provocação ou apenas um fake para assustar os militares.

A principal novidade dessa tensão no interior das Forças Armadas é de que haja um bando de fascistas prontos a comparecer em alguns lugares-chave e ir às portas dos quartéis para pedir intervenção militar com Bolsonaro. Isso pode dizer o quê? Fechem o Congresso e fechem o STF. Mas isso pode ser um blefe também, porque faz parte da guerra assustar o adversário.

CC: O golpismo perdura entre militares sob a mesma lógica da ditadura?

JQR: Eu acredito que muitos deles defendam mais a instituição. Eles estão em uma defensiva, porque praticaram crimes. Há desafeição e hostilidade das Forças Armadas em relação ao governo Dilma por causa da Comissão da Verdade. Mas a verdade é que nós não fomos suficientemente longe. O fato é que nós precisaríamos criar condições no futuro, daqui a cinco ou dez anos, para retomá-la.

Eu estava em um debate na Unicamp em que tratamos do caso de uma heroína da ditadura, Inês Etienne Romeu, que escapou viva e fez denúncias. Em 2003, apareceu um cara em seu apartamento e quase a matou a pauladas. Quem foi o mandante? Possivelmente esse grupo ligado aos torturadores, essa tropa que o Bolsonaro elogia.

[Única sobrevivente da Casa da Morte em Petrópolis, Inês Etienne Romeu foi internada com traumatismo cranioencefálico após a visita de um suposto marceneiro em 2003. O fato foi registrado pela política como acidente doméstico. As suspeitas de golpes físicos contra a ex-guerrilheira nunca foram explicadas.]

Isso é a maioria das Forças Armadas? Eu acho que não. Mas o que é maioria entre eles é o seguinte. Não querem mexer na anistia. E nisso, infelizmente, para o Brasil, não dá para atendê-los. Quando tivermos forças para falar, temos de levar adiante a Comissão da Verdade e chamar os criminosos pelos nomes que eles têm.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, em cerimônia de militares. Foto: Marcos Corrêa/PR

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