Política

Militares, (des)informação e batalha política

Entenda a relação entre a disseminação de notícias falsas pró-Bolsonaro e os ensinamentos da Escola Superior de Guerra

Palestra de Mourão em 2015: capacidade de análise ou exposição da estratégia?
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O escândalo do caixa 2 de Jair Bolsonaro – “Whatsgate”, “Lavazap” e “Bolsolão” – estremeceu os resultados eleitorais surpreendentes do segundo turno, especialmente porque candidatos inexpressivos dispararam no voto em proporção semelhante ao disparo em massa de notícias falsas pelo aplicativo WhatsApp após contratações milionárias de empresários que configuram crime eleitoral.

Tal evento reforçou a estreita relação entre a candidatura de Bolsonaro e o uso de táticas militares de operações psicológicas na manipulação de massas de opinião, como apontou o antropólogo Piero Leirner.

Mais: a militarização da campanha pode ter participação do Estado brasileiro, conforme a suspeita grave de espionagem militar contra a campanha de Fernando Haddad, supostamente comandada pelo general Sérgio Etchegoyen, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência.

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Para compreender essa relação, crucial nessas eleições, é importante apontar o foco para três generais egressos do Alto Comando do Exército que ocupam posições estratégicas na candidatura:

  • Augusto Heleno, o militar-articulador – tem facilidade em costurar aliados no exterior e em diferentes instituições, devido a sua atuação em missões da ONU;
  • Oswaldo Ferreira, o militar-profissional – ex-chefe de Engenharia do Exército, que cuida da operacionalidade da organização;
  • Hamilton Mourão, o militar-político – por ter chefiado o Comando Militar do Sul (2014-2016), estabeleceu fortes comunicações com empresários, juízes, jornalistas, latifundiários, políticos, igreja e demais líderes civis.

Somados a esses três perfis chaves, elencados por Leonardo Trevisan como típicos entre 1930-1964, acrescentaria o militar-popular, característico da democracia de massas 2.0, que atrai o desejo do eleitorado pelo medo e pelo ódio, sendo esse Bolsonaro.  

Todos foram formados pela ideologia nacional autoritária dos militares das décadas de 60-70-80, a chamada Doutrina de Ação Política da Escola Superior de Guerra.

Baseada nas teorias de sistemas, do planejamento e da decisão, essa doutrina tem como pilar a informação estratégica e a busca pela racionalização da ação política, sempre buscando se antecipar aos acontecimentos futuros e atuar para interferir nos seus possíveis desdobramentos (ESG, 2014, p.8).

Nessa doutrina, a obtenção, produção e uso estratégico de informações são centrais. O levantamento de informações sobre os poderes nacionais (político, econômico, psicossocial, científico-tecnológico e militar) é imprescindível para avaliar a capacidade desses poderes (meios) de atingir e preservar os “objetivos nacionais permanentes” (fins) e para identificar ameaças e/ou óbices de forças consideradas como antagônicas a esses “interesses nacionais”.

Nesse método de planejamento, há quatro fases: diagnóstico (conhecimento da realidade do sistema em estudo, onde deverá se produzir a ação); política (definir quais são os objetivos da ação); estratégica (quais serão os caminhos para atingir o objetivo); gestão (especificamente da execução) (ESG, 2014c, p.15).

Especialmente na fase política, que se busca definir os objetivos da ação política, quatro etapas para prospecção de cenários são cumpridas: i) o mais provável; ii) pressupostos básicos (as limitações intransponíveis); iii) o cenário desejado; iv) objetivos de Estado (independente de governos) e objetivos de governo. Nas fases estratégicas e de gestão é que são colocados em prática os objetivos políticos.

No caso atual, uma situação de conflito (choque de vontades decorrente de confronto de interesses) tem se transformado em um estado de tensão chamado crise, que “se não administrado adequadamente, corre o risco de sofrer um agravamento, até a situação de enfrentamento” (ESG, 2014c, p.74).

Nesse sentido, em reunião com oficiais do Comando Militar do Sul (CMS), Hamilton Mourão, então Comandante do CMS, projetava em 2015 os eventos definidores da conjuntura da expressão política do poder nacional: afastamento de Renan Calheiros (tentada em 7/12/2016, sem sucesso), ruptura do PMDB com o governo (formalizada em 29/3/2016), prisão do ex-presidente Lula (condução coercitiva em 4/3/2016 e prisão efetiva em 7/4/2018), comprometimento da imagem de Michel Temer pela Lava Jato ou CPI (atingido por sucessivas acusações desde 2015, foi denunciado pela PGR em 26/6/2017), ocorrência de manifestações de vulto pró e contra o governo (em 15/3/2015 ocorre a primeira grande manifestação contra o governo Dilma, que culminaria em seu impedimento 13 meses depois) e ocorrência de conflitos violentos envolvendo movimentos sociais (o único evento prospectado que não se confirmou).

O método de planejamento para ação política também busca, além de prever o cenário provável, promover o cenário desejado. Essa é a fase estratégica, que desenha os caminhos possíveis, as ações e as medidas necessárias para atingir certos objetivos estabelecidos.

No âmbito da expressão política do poder nacional, uma das medidas de primeiro nível, o preventivo, “tem efeito psicológico favorável, pois vão de encontro das aspirações nacionais” e, em geral, sua natureza, encontrem “mais facilmente o apoio da comunidade” (ESG, 1975, p.221).

No processo de “mobilização nacional”, enquanto parte da fase estratégica, estão previstas, para o Poder Judiciário, medidas que promovam a “dinamização do processo de aplicação das leis, dos princípios e das normas jurídicas, em compatibilidade com a conjuntura”.

Para o sistema político, “polarizar a opinião dos partidos políticos” e, no Legislativo, garantir a “adequação da legislação e produção de novos instrumentos legais” (ESG, 1975, p.315-316). Por isso, faz todo o sentido a manifestação “dissuasiva”, via Twitter, do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, as vésperas do julgamento do STF que definiria a liberdade para o então líder das pesquisas presidenciais.

No bojo dessa ação concertada de mobilização, que reúne uma série de atitudes e medidas nos poderes nacionais, a expressão psicossocial precisa ser preparada por “um conjunto de mensagens tais que se obtenha a conscientização da importância das necessidades da Nação” (ESG, 1975, p.317). Parece-me que não há dúvidas, ao menos para a candidatura militar e para o Alto Comando do Exército, há uma clara “ameaça à Nação” encarnada no antipetismo, como um subproduto do anticomunismo centenário no Brasil.

Eis o papel estratégico das Fake News nesta eleição. Disparadas em massa pelo WhatsApp, de forma ilegal, constituem uma medida de contrainformação, atividade da doutrina que busca “neutralizar, reduzir ou reprimir” a propaganda adversa, “negar conhecimento e impedir a ação de agentes” por meio de “métodos de ação ofensivos”.

Com isso, a campanha de desinformação “consiste na manipulação planejada de dados reais ou artificiais com a finalidade de iludir ou confundir determinado centro de decisões adverso” (ESG, 1983, p.283-284).

Enquanto parte da guerra psicológica, essas manobras psicológicas devem atrelar, sempre que possível, inteligência e sentimentos, corresponder a uma ideia-força (ideia apelo) e ter bom conhecimento do público-alvo.

Nesse sentido, o grande objetivo é desmoralizar o inimigo atacando suas vulnerabilidades, especialmente em relação à população. Propaganda e contrapropaganda são importantes, assim como estudo sobre rivalidades internas, perfis. Além disso, “devem ser conduzidas no sentido de levar ao descrédito o inimigo e seus chefes, fazendo crer que estes apenas buscam satisfazer suas ambições pessoais”. (ESG, 1975, p. 315-327)

A tecnologia, portanto, teria alçado a dimensão psicológica da guerra a outro patamar, de maior importância. Em verdade, desde 1966 o Exército brasileiro organiza o “Cursos de Operações Psicológicas”.  

Nos tempos atuais, a “guerra eletrônica” ou “guerra cibernética” tem sido atualizada em níveis institucionais e, no Brasil, foi criada, em 2009, o “Comando de Comunicações e Guerra Eletrônica do Exército (CCOMGEX)”, sendo responsável pelo “Ensino de Comunicações e Guerra Eletrônica” (na Escola de Comunicações e Centro de Instrução de Guerra Eletrônica) e pelo “Emprego“ (por meio do 1º Batalhão de Guerra Eletrônica e Companhia de Comando e Controle).

Esses cursos, que instrumentam a prática de oficiais (capitães e tenentes) e sargentos, contam com habilidades de sociologia, antropologia, psicologia, comunicação, estatística; técnicas, táticas e procedimentos operacionais (TTP); e, especificamente para o curso de sargentos, aplicativos de edição (gráfica, áudio, vídeo) e… mídias sociais da internet.

Estamos, literalmente, numa guerra política nessas eleições. Por enquanto, ela está no plano ideológico e nas redes sociais, além das instituições política-judiciais.

Desde que a comandante-em-chefe das Forças Armadas brasileiras foi grampeada ilegalmente por um juiz de primeiro grau, que, além de sair impune, foi condecorado um ano depois pelos militares, estava clara a aliança civil-militar para implementar um golpe “restaurador”.

Que possamos, no domingo, elegendo o representante do campo democrático, impor um dique nessa “onda” autoritária. Será uma importante vitória antes das próximas árduas batalhas que avizinham.

* Advogado e ex-coordenador da Comissão de Anistia

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