Política
Milicianos invadem terras indígenas e abrem espaço para pecuaristas e garimpeiros
O problema piorou após a militarização da Funai. Das 24 regionais do órgão na Amazônia Legal, 14 estão nas mãos da turma fardada


Milícia privada e associação criminosa. Assim a Polícia Federal classificou a atuação de um servidor da Funai, um policial militar e um ex-PM presos durante a Operação Res Capta, deflagrada na Terra Indígena Marãiwatsédé, “tomada de assalto” pelo grupo que, fortemente armado, cobrava propina de pecuaristas que invadiram a reserva. A maior parte da propina era repassada ao cacique xavante Damião Paridzané, de 69 anos, que chegou a faturar 10 milhões de reais no último ano, além de desfilar com uma caminhonete Toyota Hilux SW4 avaliada em 380 mil, enquanto seu povo seguia vivendo conforme os costumes da tribo, na natureza. O veículo era um regalo de um criador de gado em atraso nos pagamentos.
O esquema criminoso evolui rápido, atestam os investigares. Em 2017, o grupo faturava 200 mil reais mensais com o “arrendamento” de 35 lotes. Os milicianos decidiram, então, concentrar o negócio em poucos, mas ricos pecuaristas. Expulsaram os “maus pagadores”, redesenharam as áreas arrendadas e conseguiram fazer o negócio render 900 mil reais por mês com apenas 15 clientes. A estratégia foi tão exitosa que o bando planejava fazer uma nova remodelação, aumentando a cobrança sobre os dez empresários escolhidos a dedo para permanecer no território indígena. Com isso, planejavam faturar até 1,5 milhão de reais por mês até meados do ano, reduzindo o desgaste com a cobrança dos eventuais inadimplentes.
A operação caminha para a terceira fase, antecipa o delegado regional de Combate ao Crime Organizado, Jorge Vinicius Gobira Nunes. Com o avanço das apurações, outras frentes de investigação foram abertas. “O Ministério Público Federal aguarda as conclusões de algumas diligências pela autoridade policial e, em breve, deve formalizar a denúncia, ou ao menos parte dela”, acrescentou a Procuradoria da República no Mato Grosso, por meio de nota. Durante as batidas da PF, foram encontradas 70 mil cabeças de gado na terra indígena. Os prejuízos ambientais causados pelas queimadas, desmatamento e instalação de estruturas agropecuárias foram estimados em 58 milhões de reais, segundo o inquérito obtido por CartaCapital, com detalhes inéditos do caso.
Associados a cacique xavante, um servidor da Funai, um policial militar e um ex-PM faturavam milhões com propinas pagas por criadores de gado
A milícia privada era constituída por um suboficial da reserva da Marinha, Jussielson Gonçalves Silva, que assumiu a coordenação regional da Funai em Ribeirão Cascalheira, por um policial militar do Amazonas, Gerard Maxmiliano, e pelo ex-PM Enoque Bento de Souza, condenado por tráfico de drogas, tortura, extorsão e porte ilegal de arma de fogo no Amazonas. Maxmiliano, que não ocupa cargo na administração federal, chegou a receber diárias pagas pela União como um “colaborador eventual” em maio e junho de 2021, segundo o Portal da Transparência.
As diárias custeadas pelo governo federal foram para que o policial acompanhasse Silva até o território Marãiwatsédé “para atualização de um termo de ajustamento de conduta”. Ironicamente, o TAC havia proposto pelo MPF justamente para promover a remoção do gado da terra indígena e tentar recuperar o solo, mas nunca foi oficializado. Após a operação, soube-se que ele foi usado pela milícia como pretexto para “mapear” com um drone os lotes dos pecuaristas, em troca de 10% de propina sobre o valor do espaço arrendado. A medição feita por uma empresa de fachada serviu ainda para camuflar a origem ilegal do dinheiro. O cacique Damião teve bens bloqueados, enquanto os servidores foram afastados e presos, assim como o ex-PM. “Essa empresa informou um faturamento anual de 120 mil reais. Somente em um mês, quando os outros dois sócios mediram a área indígena, eles arrecadaram 180 mil”, explica o delegado.
Silva, que ostenta nas redes sociais foto ao lado de Jair Bolsonaro, teria sido indicado para a coordenação regional da Funai pelo general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, segundo noticiou a revista Piauí. Marcelo Xavier, o presidente da Funai, é apontado em documentos da Procuradoria como omisso na oficialização do TAC, mas célere ao interceder em favor do servidor preso: “Chama a atenção a demora que a Funai tem para responder as requisições do MPF e a velocidade com que o presidente da Funai levou para encaminhar o ofício para o delegado-chefe da PF em Barra do Garças”. No ofício, encaminhado um dia após a prisão de seu subordinado, Xavier questiona os motivos da PF para exigir a lista de arrendadores da terra indígena, além de encampar a defesa prévia de Silva.
Modelo replicado. A PF vê a atuação de outras organizações criminosas em terras indígenas do estado, a lucrar com madeireiros e garimpeiros ilegais – Imagem: Polícia Federal
Além dos três presos, uma segunda servidora da Funai, Thaiana Ribeiro Viana, assim como Damião, foram alvo de mandados de busca e apreensão. Por meio de nota, a Funai limitou-se a dizer que “não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita e está à disposição das forças de segurança pública para colaborar com as investigações policiais”.
As revelações sobre o cacique xavante deixaram ambientalistas e indigenistas perplexos. Presença constante em fóruns ambientais internacionais, Damião Paridzané gozava de excelente reputação. “Vamos morrer por causa da terra. Vamos entrar na marra”, discursou na Cúpula das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, em 2012, quando se consolidou como líder da luta da etnia pela expulsão de fazendeiros que há 20 anos ocupavam clandestinamente a reserva. Homologada em 1998, a desintrusão só ocorreu quatro anos depois, quando parte dos indígenas ocupou a BR-158. Em 2014, o cacique recebeu das mãos da então presidenta Dilma Rousseff o prêmio de Direitos Humanos pela luta em favor de seu povo. Passados oito anos, seu legado vira pó com a revelação de que, ele próprio, estaria por trás da ocupação irregular.
O caso da Terra Indígena Marãiwatsédé é o mais chamativo, mas não é o único. Desde janeiro de 2021, a PF realizou ao menos onze operações de repressão a crimes ambientais em terras indígenas no Mato Grosso. “Até o fim de 2022 serão desencadeadas outras mais”, afirma o delegado Nunes. Uma delas, deflagrada na mesma semana da Res Capta batizada de Ato Reflexo, apontou a existência de outro grupo suspeito de atuar como milícia, integrada por um servidor da Funai que atuava como “agente duplo”, vazando informações sigilosas de ações da PF e do Ibama aos garimpeiros que atuavam entre Juína e Aripuanã. Lauriano Martins cobrava propina para alertar os criminosos, dizem os investigadores. O inquérito também aponta o envolvimento do cacique Tamary Cintalarga, acusado de cobrar uma taxa de 20% sobre o ouro extraído da Terra Indígena Aripuanã.
O esquema foi descoberto no curso de outra operação, a Onipresente, que investigou a atuação de madeireiros e garimpeiros ilegais em 21 pontos localizados em três terras indígenas, ocupadas pelas etnias Cinta Larga, Menkü e Ikpeng. “Esses infratores têm se organizado cada vez mais, podendo, em alguns casos, nos depararmos com sofisticadas organizações criminosas explorando bens naturais em terras indígenas”, diz Nunes.
Na avaliação de especialistas, o aumento das invasões e dos casos de corrupção envolvendo servidores da Funai tem relação direta com a militarização do órgão. Das 24 coordenações regionais da Funai na Amazônia Legal, 14 são chefiadas por militares. Até mesmo o secretário Nacional de Saúde Indígena, Reginaldo Ramos Machado, é um coronel do Exército sem qualquer experiência conhecida com os povos originários.
“Terra Indígena Marãiwatsédé, da etnia xavante, já foi a mais desmatada do Brasil. A pecuária se converteu no modo sobrevivência da comunidade”, comenta o geógrafo Gilberto Vieira dos Santos, coordenador regional do Conselho Missionário Indigenista, ligado à CNBB, e que acompanha o povo xavante desde 2004. “A ideia do TAC era substituir paulatinamente a criação de gado pelos indígenas por práticas próximas à cultura original, deixando para eles o usufruto exclusivo daquele território”.
Omissão. Xavier tarda a responder ao MPF, mas foi célere na defesa de servidor preso – Imagem: Funai
Mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pela Unesp, ele acrescenta que não dá para dissociar o problema da escalada da violência contra os indígenas, do assédio às suas terras e às suas lideranças por empresários inescrupulosos e da desestruturação das políticas de saúde e educação dos povos originários. Santos acrescenta, ainda, a ameaça representada pelo PL 191, que libera a mineração e outras econômicas nas terras indígenas, uma obsessão para Bolsonaro e para seus apoiadores ruralistas, como o secretário de Assuntos Fundiários Nabhan Garcia, ex-União Democrática Ruralista, com negócios no Mato Grosso e responsável por indicar Marcelo Xavier na Funai.
“Nesse ano, a maior moeda de troca do governo são os nossos territórios”, lamenta Alberto Terena, coordenador da Associação dos Povos Indígenas do Brasil. Ele também chama atenção para a cooptação de lideranças indígenas usadas por políticos para criar a falsa narrativa de que as comunidades, em sua maioria, aprovam as políticas de Bolsonaro. “A maioria do nosso povo não quer essa destruição. O lucro vai embora com os exploradores, mas o nosso povo fica.”
Marcio Santilli, um dos fundadores do Instituto Socioambiental, conhecido pela sigla ISA, vê semelhança entre a política indigenista de Bolsonaro e a da ditadura. “Historicamente, não podemos generalizar os militares, pois temos uma vertente muito respeitável que vem do Marechal Rondon. Mas o que vemos agora é uma milicianização dos órgãos públicos, a resgatar a política indigenista do período ditatorial, com viés predatório e que só semeou a pobreza nas comunidades indígenas.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Porteira aberta “
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