Política

Mesmo com errata, programa de Marina é progressista

Apesar do recuo em casamento gay, programa avança nos direitos humanos

Marina Silva e Beto Albuquerque, seu vice, durante o lançamento do programa, em São Paulo, na semana passada
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A errata publicada no sábado 30 pela campanha de Marina Silva (PSB) a respeito das propostas de seu programa de governo para a comunidade LGBT provocou uma onda de críticas à candidata. De um lado, Marina foi atacada por abandonar o apoio a causas como o casamento gay e ao PLC 122, projeto que criminaliza a homofobia. De outro, a pessebista foi criticada por religiosos, incluindo líderes evangélicos, por ter feito concessões ao que chamam de “causa gay”. Em meio à onda de ataques, um ponto importante ficou obscurecido: no quesito direitos humanos, o programa de governo de Marina Silva é progressista. E, ao menos enquanto Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) não divulgam propostas mais completas (o que está prometido), as ideias da ex-senadora são mais concretas que as de seus principais rivais.

As propostas de Marina Silva para a área de direitos humanos concentram-se no eixo 6 de seu programa, intitulado “Cidadania e Identidades”. É neste capítulo em que se encontra o trecho a respeito da comunidade LGBT, que de fato foi desidratado em comparação com a versão inicial e não contempla uma necessidade básica – igualar o direito de homossexuais e heterossexuais se casarem. Em outros campos, no entanto, o texto é positivo. Nas 37 páginas dedicadas ao tema, a campanha de Marina trata de diversos dos graves problemas de direitos humanos existentes no País. Há espaço para muitas estatísticas e diagnósticos precisos que revelam a gravidade das violações.

Enquanto isso, a versão atual do programa de Aécio Neves dedica duas páginas e meia ao tema direitos humanos, nas quais lista 28 pontos, a maioria genéricos, como “utilização da tecnologia de informação e comunicação para inspirar a formação de agentes de transformação social” e “implementação de políticas públicas contra a qualquer tipo de intolerância”. A versão atual do programa de Dilma Rousseff, por sua vez, tem apenas quatro parágrafos sobre direitos humanos. Há citações a programas como Juventude Viva e Viver sem Limite. De concreto, o documento da petista traz apenas a promessa de efetivar a Lei de Cotas no serviço público federal, sancionada em junho.

No programa de Marina há promessas de acelerar a demarcação de terras quilombolas e indígenas, e de fortalecer a Fundação Nacional do Índio (Funai), que no governo Dilma Rousseff perdeu poder diante da força da bancada ruralista; e de precisar a redação do artigo 149 do Código Penal, que trata sobre trabalho escravo. O atual governo conseguiu aprovar a PEC do Trabalho Escravo no início de junho, mas a regulamentação da lei é alvo de ruralistas e outros grupos de interesses, que tentam tornar genérica a definição de forma a esvaziar a legislação.

No caso do movimento negro, Marina promete tornar inafiançável o crime de injúria racista, assim como já ocorre com o de racismo, fiscalizar a lei que institui o ensino de história africana e afro-brasileira nas escolas e “promover a formação continuada” de profissionais da segurança pública, cujo alvo primordial, como mostram as estatísticas, são jovens negros e pobres.

No caso das mulheres, não há referências à descriminalização do aborto, mas o programa afirma ao menos que a candidata, se eleita, vai “consolidar no Sistema Único de Saúde os serviços de interrupção da gravidez conforme a legislação em vigor”. Por outro lado, causa preocupação a proposta de Marina de submeter a questão do aborto a consulta popular. Em primeiro lugar, não parece adequado um plebiscito sobre direitos individuais, que deveriam ser garantidos e não submetidos à vontade geral. Em segundo lugar, é razoável crer que a candidata só defende essa ideia por saber que sua posição é majoritária na sociedade brasileira. Em terceiro, sem um debate plural e abrangente, o plebiscito pode se tornar apenas uma forma de referendar a opressão de uma maioria conservadora sobre uma minoria de mulheres que, no limite, morrem realizando aborto em clínicas ilegais. Esse assunto é espinhoso. O atual governo também teve problemas ao tratar dele. Em maio, diante da pressão de líderes evangélicos, o Ministério da Saúde revogou uma portaria que incluía o aborto, nos casos previstos em lei (estupro, risco à mãe e anencefalia), na tabela do SUS.

No caso dos crimes cometidos por menores, o programa de governo de Marina Silva reconhece de forma explícita que a “maioria dos jovens em conflito com a lei é vítima de um contexto social adverso, em que muitos direitos e oportunidades lhes foram negados”. A campanha não chega a condenar o ímpeto pela redução da maioridade penal, defendido por 90% dos brasileiros segundo pesquisas, mas ao menos mostra entender que na origem da violência estão as falhas do Estado. É uma visão de mundo progressista, por trás da qual está o reconhecimento de que, no caso do Brasil, mais repressão significa mais violência, por serem, essas instituições de encarceramento, escolas de crime, como atestam inúmeros especialistas.

Esse entendimento contrasta com o que o PSDB defende. Em São Paulo, o governador tucano Geraldo Alckmin é um ferrenho defensor da repressão à juventude, ainda que a Fundação Casa, administrada por seu governo, seja uma contumaz violadora de direitos dos jovens infratores, como comprovou reportagem de CartaCapital e também o Ministério Público. No Congresso, com o apoio de Aécio Neves, o vice de sua chapa, Aloysio Nunes (PSDB-SP), tentou em fevereiro aprovar um projeto de redução da maioridade penal, mas o texto acabou barrado na Comissão de Constituição de Justiça do Senado. O PT, historicamente contrário a mais punição, ajudou a barrar o projeto de Aloysio Nunes, mas o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) lidera a discussão de um projeto de lei que prevê penas mais longas a menores infratores.

No capítulo 5 do programa de Marina, “Novo urbanismo, segurança pública e o pacto pela vida”, a candidatura trata de outro tema importante sobre direitos humanos – as constantes violações realizadas pelo Estado brasileiro contra os detentos. Como mostrou CartaCapital em janeiro, há um déficit de 230 mil vagas no sistema carcerário do Brasil, quadro degradante que fomenta o crime organizado e as rebeliões, cada vez mais atrozes, como mostram casos recentes em Cascavel (PR) e Parintins (AM). Para piorar, perto de 40% dos detentos no Brasil jamais foram julgados. Diante desse quadro, o programa de Marina defende uma reorientação do cumprimento da Lei de Execução Penal, o incentivo à adoção de penas alternativas e questiona a política de encarceramento em massa adotada pelo Brasil.

Como nos outros temas de direitos humanos, as propostas de Marina Silva para os jovens infratores e o sistema carcerário são, na realidade, o mínimo que se deveria esperar de um país democrático e civilizado. No cenário atual do Brasil, é um avanço. O programa atual do PSDB fala em penas alternativas, em valorizar a Defensoria Pública e reconhece que o sistema prisional é um problema, mas seu foco é, amplamente, a repressão. A maioria das 25 promessas do programa de governo de Aécio Neves para a área de segurança trata de temas como redução da impunidade, aumento de policiamento, fortalecimento das polícias e ampliação das prisões. O governo Dilma Rousseff, por sua vez, não tem nenhuma ação significativa para a redução das violações aos direitos humanos no sistema prisional. No programa de governo atual a campanha petista se limita a informar que o Programa de Apoio ao Sistema Prisional gerou 47 mil novas vagas em todo o País. Em sua campanha, Dilma também tem focado a repressão. Sua principal proposta para a segurança pública, exposta em debate no horário eleitoral, é a integração de forças federais e estaduais de segurança pública.

Apesar do conteúdo bem construído de seu programa de governo, Marina terá duas dificuldades para convencer o eleitor cuja prioridade são os direitos humanos. A primeira é a confiabilidade de seu programa. Se a fúria de evangélicos por algumas horas bastou para o documento sofrer mudanças bruscas, o que vai ocorrer quando, e se, ela se tornar presidente da República? Marina vai defender as causas progressistas ou vai ceder à pressão de ruralistas e evangélicos? A segunda dificuldade é complementar à primeira. O vice de Marina, Beto Albuquerque, reconheceu que ao elaborar o programa de governo o PSB realizou uma “invasão de competência” ao abordar questões legislativas, como o PLC 122 e o casamento gay. Ocorre que esses não eram os únicos temas expostos no programa de governo que exigem atuação do Congresso. A tipificação do trabalho escravo e a transformação do crime de injúria racista em inafiançável, por exemplo, também o são. Para avançar essa agenda no Legislativo, Marina, como qualquer presidente, precisará de uma base sólida no Congresso, o que exigirá dela uma habilidosa negociação com diversos partidos, uma necessidade talvez contraditória com as ideias de sua “nova política”.

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