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Apesar da bravata dos governadores bolsonaristas, as escolas cívico-militares parecem condenadas

Ideologia. O mineiro Romeu Zema promete insistir no modelo, apesar dos custos altos e dos resultados para lá de duvidosos – Imagem: Claudio Postay/Prefeitura de Cariacica/GOVES e Gil Leonardi/GOVMG
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A decisão do Ministério da Educação de acabar com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares deu uma causa ao bolsonarismo, após meses de desorientação. Em busca do apoio e dos votos extremistas, governadores e prefeitos aliados de Jair Bolsonaro prometem manter a iniciativa, mesmo sem dinheiro federal e sem provas da eficiência do modelo. É o caso de estados como Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso, ou de municípios como Jaboatão dos Guararapes, única cidade pernambucana disposta a insistir no programa. Para tanto, vão precisar desembolsar recursos próprios e contratar PMs ou bombeiros em substituição aos militares aposentados das Forças Armadas que recebem, além do soldo, vantajosas gratificações que variam de 2,6 mil a 9 mil reais.

Em Goiás, o governador Ronaldo ­Caiado, do União Brasil, havia se antecipado no início do ano, quando da posse do presidente Lula, ao assumir a administração de seis escolas cívico-militares. “Não muda nada. Esse processo foi decidido por nós, porque sabemos da eficiência e o quanto o colégio militar tem trazido de resultados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)”, justificou Caiado. Segundo a Secretaria de Educação ­estadual, em maio deste ano, o Colégio da Polícia Militar César Toledo, em Anápolis, garantiu medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Física das Escolas Públicas.

O programa criado por Bolsonaro não tem amparo na Constituição nem na Lei de Diretrizes

A tese de que as escolas militares têm resultados superiores às demais é, porém, rebatida por especialistas em educação. Faltam, aliás, dados oficiais sobre o desempenho das unidades no Ideb, pois o programa, criado em 2019, só começou a ser implementado no ano seguinte, quando estourou a pandemia de Covid-19. O que há, na verdade, é uma grande confusão, em certa medida proposital, entre as escolas cívico-militares lançadas por Bolsonaro e os tradicionais colégios militares administrados pelo Exército. Estes, por sua vez, gastam mais por aluno e apresentam médias inferiores àquelas dos institutos federais ou das escolas de aplicação ligadas às universidades. “A gente tem pouca informação sobre as escolas cívico-militares. Há uma pauta moral vinculada pelo governo passado com a ideia de qualidade. Há uma exigência de uniforme padronizado ou de ações como o canto do Hino Nacional e uma disciplina exagerada”, afirma Marcele ­Frossard, assessora de Programa e Políticas Sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “A questão da disciplina é, no mínimo, discutível. O tipo de disciplina numa instituição militar é diferente do que deveria existir numa escola, orientada para a formação de cidadãos. O cidadão é aquele que deve ser capaz de compreender e analisar as ordens, tomar uma decisão se ele deve seguir ou não e ter a capacidade de discutir aquela questão”, explica Silvio Gallo, professor de Filosofia da Educação da Unicamp.

Em sua pesquisa de mestrado defendida em 2021 na Universidade de Brasília, Karla Barbosa revela que tanto os colégios geridos pelo Exército quanto aqueles das universidades federais apresentaram resultados educacionais superiores aos das escolas públicas regulares. Apenas 10% dos colégios militares alcançaram, no entanto, a classificação de “eficientes”, ao passo que nas unidades de aplicação o índice chega a 28,5%. “Se a vontade fosse, de fato, a busca por modelos de gestão eficiente ou excelente para inspirar as escolas públicas regulares, o modelo de gestão das escolas de aplicação deveria ser priorizado, em vez do modelo de gestão dos colégios militares”, sugere trecho da nota técnica divulgada pelo MEC para justificar o encerramento do programa.

Segundo o ministério, as gratificações aos militares lotados nas escolas somam 86,5 milhões de reais só neste ano, enquanto o repasse de verbas para custeio e aquisição de bens, entre 2020 e 2022, foi de meros 246 mil reais. Pelo decreto de Bolsonaro, cabe ao ministério a assistência técnica e financeira, monitoramento, avaliação das unidades e definição do perfil profissional dos militares selecionados para o programa. As atribuições do Ministério da Defesa vão da administração dos recursos à gestão educacional e monitoria. O presidente Lula afirmou não ser obrigação do governo federal criar unidades cívico-militares. “Se cada estado quiser continuar, que continue. O MEC tem de garantir a educação civil para todo e qualquer filho de brasileiro.”

Prioridades. O ministro Camilo Santana tem desafios maiores, a começar pelo Plano Nacional de Educação – Imagem: Valter Campanato/ABR

O ministro da Educação, Camilo Santana, lembra que tal modelo de ensino não tem amparo na Constituição nem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ou no Plano Nacional de Educação. “Temos um impasse legal que o governo federal criou por meio de um decreto, transferindo recursos do Ministério da Educação para o Ministério da Defesa. De 138 mil escolas públicas no Brasil, apenas 202 tinham aderido, 0,14%”, diz Santana. Mais: 108 unidades desistiram do programa. “Aquelas que ficarem vão permanecer até o fim do ano. Queremos que se transformem em escolas em tempo integral, profissionalizante.”

Catarina de Almeida Santos, professora da UnB, integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Rede Nacional de Pesquisa sobre a Militarização da Educação no Brasil, reforça a tese da inconstitucionalidade das escolas cívico-militares. “Colocar esses profissionais nas escolas é ferir frontalmente a Constituição e os princípios da diretriz e base da educação nacional. E os federados não podem criar modalidades educativas, não têm permissão constitucional para isso. Quem tem de aprovar e acompanhar as diretrizes da educação básica é o Conselho da Educação, por lei nacional.” Fernando Cássio, professor da UFABC, integrante da Rede Escola Pública e Universidade e do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, considera tímida a decisão de interromper o programa. “É preciso induzir a desmilitarização e reverter o processo. Vemos a multiplicação dessas escolas que recebem recursos da educação, transferidos para as polícias estaduais. Cabe ao Ministério da Educação dizer que lugar de polícia não é na escola.” Salomão Ximenes, também professor da UFABC, vai na mesma linha. “Pelo visto, a militarização na educação não só continuará após a extinção do programa, como há risco concreto de que haja até uma expansão do número dessas escolas, pelo fato de o MEC não ter se pronunciado de forma eficaz quanto à ilegalidade e incompatibilidade com as diretrizes da educação. Cabe ao Ministério da Educação, ao seu órgão auxiliar, que é o Conselho Nacional de Educação, zelar pelo cumprimento da legislação. Nesse sentido, o MEC foi omisso.”

Só neste ano, o governo vai gastar 86,5 milhões de reais com gratificações aos militares lotados nas escolas

No Distrito Federal, as unidades cívico-militares serão incorporadas às outras 13 do Projeto Escolas de Gestão Compartilhada, executado pelas secretarias de Educação e de Segurança Pública. No Paraná, das 2,1 mil escolas, apenas 12 estavam atreladas ao programa federal. O governador Ratinho Júnior, do PSD, decidiu transformar as unidades em escolas militares geridas pelo estado, somadas a outras 195 existentes. Nas redes sociais, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, lembrou ter sido aluno do Colégio Militar e prometeu editar um decreto nos mesmos moldes daquele de Bolsonaro, para criar um modelo próprio de escolas cívico-militares. Na Bahia, estado governado pelo PT há mais de 16 anos, existem 16 colégios da Polícia Militar, com gestão compartilhada com a Secretaria Estadual de Educação, mas nenhuma faz parte do programa federal, situação similar a outros estados que têm escolas militares em parceria com as secretarias de Educação.

Para a senadora Teresa Leitão, do PT pernambucano, o ministério precisa agora se concentrar no Plano Nacional de Educação. “A gente está revendo o plano, atualizando a lei. O balanço é preocupante. Nem chegamos perto das metas. A conferência deste ano vai ter como único ponto de pauta o PNE, para a gente ter uma educação conforme a sociedade, a academia e os trabalhadores em educação entendem como qualidade.”

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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