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Lamaçal sem-fim

Oito anos após o rompimento da barragem da Samarco em Mariana, os danos ambientais e sociais persistem

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Amplitude. O levantamento contou com a contribuição de 500 pesquisadores de mais de 30 instituições diferentes – Imagem: Felipe Werneck/Ibama
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Com a voz embargada, o pescador Alexandre Ribeiro fala da difícil realidade que vive em Aracruz, no Espírito Santo, município a 80 quilômetros da capital Vitória e a mais de 500 quilômetros de Mariana, em Minas Gerais. A cidade histórica mineira foi devastada pelo rompimento da barragem de Fundão, em 2015, sob a gestão da ­Samarco Mineração, empresa controlada pelas gigantes Vale e BHP Billiton. O saldo do desastre não se resume, porém, aos 19 mortos, trabalhadores soterrados pela lama tóxica, o que já seria demasiadamente grave. Ainda hoje, o episódio afeta milhares de pessoas que perderam sua fonte de renda e tiveram a saúde abalada, sem falar dos danos ambientais irreversíveis que se expandem a cada dia e atingem toda a região cortada pelo Rio Doce e parte do litoral capixaba.

“A pesca está parada. Temos muitos pescadores doentes, com depressão, que estavam acostumados com aquela rotina. Antes de o sol nascer, a gente já estava saindo para navegar. De uma hora para outra, acabou tudo”, relembra Ribeiro, explicando que, desde o rompimento da barragem, o Ministério Público Federal proibiu a pesca, devido à contaminação por metais pesados ao longo da calha do rio e do litoral do Espírito Santo.

Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Espírito Santo revela um elevado índice de contaminação da biota de toda a região, mesmo passados oito anos do acidente. Segundo o estudo, os mais de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração que foram liberados com o rompimento da barragem provocaram ao longo dos anos a diminuição da população de algumas espécies aquáticas e o surgimento de outras, além de devastação irreversível de parte dos manguezais. Formou-se ainda uma grande área lamosa que agora integra a composição geológica da foz do rio. O estudo consta no 4º Relatório Anual do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Área Ambiental I – Porção Capixaba do Rio Doce e Região Marinha e Costeira Adjacente. O trabalho contou com contribuições de cerca de 500 pesquisadores de mais de 30 instituições.

O Rio Doce, assim como o mar e a costa do Espírito Santo, seguem contaminados por metais pesados, atesta estudo da Ufes

Foram identificados pelo menos 295 impactos ambientais associados à contaminação dos metais pesados, sendo 96 concentrados no ambiente dulcícola (rios), 130 no ambiente marinho e 69 no ambiente costeiro. De acordo com o relatório, são evidentes as modificações nas comunidades aquáticas em decorrência do impacto na qualidade ambiental da coluna d’água, sequela dos rejeitos liberados no rompimento da Barragem do Fundão. “De forma geral, destacaram-se os impactos negativos causados pelos metais particulados Al (alumínio), Fe (ferro), Mn (manganês), Ni (níquel) e Cr (cromo) sobre as comunidades aquáticas nos setores mais diretamente influenciados pelo aporte do Rio Doce, sendo as comunidades bentônicas tanto do ambiente dulcícola quanto do ambiente marinho as mais afetadas negativamente por esses metais”, diz um trecho da pesquisa.

“Depois do rompimento da barragem, você tem um impacto significativo no ambiente aquático por dois motivos. O primeiro é pelo material em si, carregado de metais que causam danos. O segundo é pelo efeito de arraste, aquele fluxo de rejeito descendo o rio com toda força”, explica Frederico Drumond, coordenador da Câmara Técnica de ­Biodiversidade do Comitê Interfederativo, criado desde o acidente para analisar e reparar os danos causados pela tragédia. Drumond também é analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, e acompanhou a realização da pesquisa desenvolvida pela Ufes. Ele explica que a força dos rejeitos escavou o fundo do rio, levantando outros contaminantes, além dos próprios rejeitos em si, o que potencializou a destruição da vida aquática. “Esse fenômeno não ficou paralisado. Todo o rejeito que foi carregado e esse outro material levantado do fundo do rio estão descendo para o mar, mas não de uma vez. O material fica depositado, depois se move novamente. A cada evento de chuva, com alta nas cheias, ele é redisponibilizado, tendo um novo ciclo de impacto a cada elevação do nível das águas. No ambiente marinho, a cada grande evento de maré, uma ressaca, quando as ondas estão muito fortes, vemos o mesmo efeito.”

Para Drumond, as sequelas do desastre causado pela Samarco têm um momento agudo, o rompimento da barragem, e um crônico, que são os impactos permanentes. “A cada mexida, o rejeito suspendido traz novas consequências, que vão desde a piora da qualidade da água ou do sedimento, até os efeitos na biodiversidade. Várias espécies animais apresentam alto teor de metais. Parece que no rio a água está mais contaminada, enquanto no mar o maior problema é o sedimento”, diz. “Essa presença de metais é transferida para os seres vivos que se alimentam desse sedimento e dessa água. Então você tem uma piora da qualidade do sistema ambiental como um todo.”

Prejuízo. Muitos afetados ficaram de fora do acordo assinado pela Samarco com o MPF – Imagem: Lidyane Ponciano/Sind-UTE/CUT-MG

Tão preocupante quanto os danos ambientais é o impacto social que o desastre de Mariana tem causado na vida das pessoas. Assim como Alexandre ­Ribeiro, milhares de outros pescadores, pequenos agricultores e comerciantes percorrem uma verdadeira via-crúcis para ser reconhecidos pela Fundação Renova, responsável pela reparação às vítimas. Muitos, até hoje, não tiveram direito a indenização ou auxílio financeiro pelos prejuízos sofridos. “Essa tragédia impacta todo um sistema por afetar a biota, matar o rio e causar, para as populações mais vulneráveis, uma série de transtornos no modo de vida. E o mais sério é que foi feito um termo de ajuste de conduta com toda uma burocracia que dificulta a reparação dos atingidos. Se você não estiver naquela margem definida pelo termo, que é bem estreita, não é reconhecido. Os pequenos agricultores, que não estão bem do lado do Rio Doce, não são reconhecidos, mas eles tiveram muitos prejuízos. Foram impedidos, por exemplo, de fazer irrigação porque a água estava contaminada. Perderam colheitas, sofreram danos”, ressalta a pesquisadora Marta Zorzal, professora do Departamento de Ciências Sociais da Ufes.

Juliana Stein Nicoli, coordenadora estadual do Movimento dos Atingidos por Barragem no Espírito Santo, acrescenta que a maioria dos atingidos nem sequer conseguiu se cadastrar para pleitear indenização. “Dos cadastrados, menos da metade obteve alguma reparação e, entre os que conseguiram, grande parte ganhou valores muito aquém do que deveria ter recebido”, explica. Segundo ­Nicoli, está em curso uma nova repactuação com a Fundação Renova para ampliar o programa de auxílio emergencial. O MAB, que vem mobilizando os atingidos, também defende a implantação de um plano de monitoramento da saúde, para dar assistência ao grande número de adoecidos por conta dos efeitos causados pelo desastre de Mariana.

Os atingidos queixam-se da burocracia para obter reparação

A Samarco informou que, até junho deste ano, indenizou mais de 423,7 mil pessoas, com a destinação de 30,7 bilhões de reais para as ações executadas pela Fundação Renova. Como forma de reparar os danos ambientais, a entidade implementou o Programa de Monitoramento Quali-quantitativo Sistemático de Água e Sedimento, cujos dados analisados apontam para a progressiva melhora das condições ambientais após o rompimento, indo na contramão do que concluiu a pesquisa da Ufes. A fundação vê com cautela o relatório dos pesquisadores e defende que os dados devem ser integrados a outros estudos, “no sentido de suprir as lacunas do conhecimento que não permitem traduzir nos resultados encontrados a inequívoca associação causal com o rompimento da barragem”.

E conclui: “É importante destacar que, mesmo havendo indícios de rejeitos da Barragem do Fundão nos ambientes estudados, os elementos constituintes desse material são os mesmos encontrados nos sedimentos naturais da bacia do Rio Doce, existindo similaridades geoquímicas e mineralógicas comprovadas nos diversos estudos pré e pós-rompimento, por isso é pouco provável que apresentem qualquer risco ecológico”. •

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

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