Justiça

Juiz transforma vítima da ditadura em criminoso

Para desembargador, Antonio Torini queria implantar ‘um governo comunista’ e colocou-se contra a ‘ordem vigente’

O ferramenteiro Antonio Torini foi preso na fábrica da Volkswagen (Foto: Reprodução)
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A depender do Judiciário, os crimes da ditadura nunca serão punidos. O histórico de processos barrados na primeira instância e de sentenças reformadas ou anuladas nos tribunais superiores desanima os defensores dos direitos humanos. A leniência dos juízes é cantada em prosa e verso, conhecida até pelos paralelepípedos, mas há muito tempo não se via uma decisão tão enviesada e ideológica quanto a de um colegiado de desembargadores do TRF da 3ª Região, resumida em um despacho de Johonsom Di Salvo.

Em um acórdão publicado sem direito à apelação da defesa, o magistrado não só comunica a anulação de uma indenização de 150 mil reais à família do ex-preso político Antonio Torini como dá a entender que o militante de esquerda é o criminoso dessa história, por participar de uma organização política empenhada em implantar um “governo comunista” no Brasil e subverter “a ordem vigente”. Torini, escreve Di Salvo, “era o infrator das leis vigentes, vinculado a movimentos e partidos defensores da ditadura do proletariado”.

Em outras palavras: não importa se as normas “vigentes”, entre elas o AI-5 e a Lei de Segurança Nacional, eram arbitrárias, impostas por golpistas e contrárias à Declaração Universal dos Direitos Humanos e a qualquer Constituição democrática. A ofensa está no fato de alguém ser considerado “comunista”, ter “ideias subversivas” e ousar discordar de ditadores. Desembargadores daquela época chegariam a tanto?

A ficha de Antonio Torini no DOPS (Foto: Reprodução)

A história desse processo revela os difíceis caminhos das vítimas da repressão em busca de Justiça. Em novembro passado, o juiz José Denilson Branco, da 3ª Vara Federal de Santo André, estabeleceu a indenização à família por dano moral extrapatrimonial. “O abalo é inquestionável”, anotou Branco na sentença, “visto que Antonio teve sua dignidade humana violada por meios nefastos e arbitrários, qual seja, prisão, tortura e perseguição por motivações políticas”.

Torini era ferramenteiro da Volkswagen. Em agosto de 1972, foi preso na fábrica da montadora, no ABC paulista, e levado à sede do Departamento de Ordem Política e Social na capital, QG da repressão no estado. Permaneceu 49 dias nos porões do Dops, incomunicável e submetido a sevícias, segundo vários relatos.

O delegado Affonso Celso de Lima Acra, famoso torturador, conduzia os interrogatórios. Liberado após quase dois meses, o metalúrgico foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Em 1974, acabaria condenado a dois anos de prisão em um daqueles julgamentos farsescos do Superior Tribunal Militar.

 

Cumprida a pena, Torini teve de assinar um termo no qual abdicava da militância política e sindical e viu-se obrigado a comparecer mensalmente no Dops. Incluído na “lista suja” de trabalhadores compartilhada pela Volks com outras empresas, nunca mais conseguiria um emprego fixo. Morreu em 1998, de câncer e em difícil situação financeira, sem presenciar o mea culpa da montadora. No ano passado, a fabricante alemã, em uma negociação conduzida pelo Ministério Público, assinou um acordo para indenizar as famílias de funcionários alvejados pela repressão com a anuência e colaboração da diretoria no Brasil.

As provas da perseguição política a Torini somam mais de 300 páginas. São relatórios do Dops, do Exército e da Aeronáutica, fotos e outros registros oficiais. Apesar da farta documentação, Di Salvo recorreu a uma desonestidade interpretativa para por em dúvida até a violência física contra o metalúrgico. “Aqui, não há prova de qualquer tortura infligida a Antonio durante o tempo de prisão”.

A pergunta ignorada pelo desembargador: Por que não existem provas? A resposta é simples: como os crimes da ditadura nunca foram julgados, não existem declarações, anotações ou confissões formais de torturadores. Por isso, os relatos dos torturados são cruciais na reconstituição dos delitos. Torini passou 49 dias no maior centro de repressão de São Paulo, em um período especialmente duro da perseguição imposta pelo regime, sem o direito de se comunicar com a família, amigos e advogados e sob os “cuidados” de um notório torturador. Se escapou das sevícias, se foi poupado, será um caso único na história daquele período e daquele lugar.

O processo subiu à segunda instância por conta de um recurso da própria família do ex-preso político. Os advogados de defesa pediam aos desembargadores um aumento do valor da indenização para 300 mil reais, conforme a média das decisões da Justiça brasileira nestas ações, além da aplicação de juros retroativos. Neste ponto, o acórdão inflige o Código de Processo Civil, pois uma instância superior não pode reduzir ou anular uma indenização, a não ser por solicitação da parte prejudicada, neste caso, a União.

As provas da perseguição política a Torini somam mais de 300 páginas. São relatórios do Dops, do Exército e da Aeronáutica, fotos e outros registros oficiais

Há outras pérolas no voto de Di Salvo. Ao recusar o argumento da sentença de primeira instância, o magistrado escreve: “Dessa maneira, não se pode indenizar a ‘dor moral’ de quem se submeteu aos rigores das leis vigentes pela própria vontade consciente, sabendo que infringia a legislação penal da época, onde a investigação, o processo e o julgamento eram as consequências legais, sem falar nas consequências da condenação penal”. Embora não tenha enxergado, nas mais de 300 páginas de documentos, os indícios de tortura e de supressão de direitos infligidos pelos agentes da repressão, o juiz inferiu que Torini pretendia “implantar uma ditadura do proletariado” sem nenhum vestígio de que o ferramenteiro integrou grupos armados de resistência ao regime ou participou de reuniões com esse objetivo. Ao contrário. O Movimento pela Emancipação do Proletariado, do qual o metalúrgico fazia parte, rechaçou a luta armada e se organizava nos moldes tradicionais de um sindicato. Seu propósito era formar lideranças operárias e fortalecer movimentos de massa de oposição.

A família pretende recorrer da sentença em tribunais superiores. “Embora respeitemos a decisão da turma e do desembargador que relatou o processo, causou-nos estranheza o entendimento do acórdão de que, ao contrário das provas dos autos, não houve tortura. E que a prisão, a incomunicabilidade e o banimento sofridos pelo Antonio Torini, militante político de esquerda, amoldavam-se ao ordenamento jurídico à época”, afirma Bruno Luis Talpai, um dos advogados.

“As violações dos direitos fundamentais sofridas pelo senhor Torini não podem ser referendadas pelo Poder Judiciário, seja à luz da Constituição de 1967, tampouco sob a égide da Carta Magna de 1988. Assim, faz-se necessária a integral reforma do acórdão proferido para que sejam reparados os danos morais sofridos por uma vítima de atos de exceção, bem como para delimitar um parâmetro punitivo e educativo para que o Estado brasileiro não mais se valha das instituições públicas na prática de atos de intolerância política”, acrescenta seu sócio Victor de Almeida Pessoa.

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