Política

Jornada às profundezas

Quatro acadêmicos analisam, uma década depois, as causas e efeitos dos protestos de junho de 2013

Custou mais de 20 centavos. Os protestos contra o reajuste da tarifa de ônibus foram reprimidos com violência – Imagem: Nelson Almeida/AFP
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Movimento espontâneo e popular? Revolta manipulada pela elite nativa associada a interesses internacionais? Abre-alas da ascensão de Jair Bolsonaro e do extremismo? Passados 10 anos das jornadas de junho, o País ainda não conseguiu decifrar a contento as causas e as consequências dos protestos, cujo estopim, na tarde de 13 de junho de 2013, foi uma reivindicação tão antiga quanto pueril de estudantes paulistanos: não só impedir o aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus da capital, mas defender a gratuidade do transporte público.

Capitaneado pelo Movimento Passe Livre, organização autodeclarada apartidária, as jornadas de junho foram marcadas pela violência policial e por uma metamorfose ao longo dos dias. Aos poucos, o MPL viu-se alijado dos protestos, enquanto os manifestantes, cada vez mais brancos, empunhavam a bandeira da antipolítica. O movimento cresceu, alastrou-se pelos demais estados e fez surgir um tipo de militância incomum no País, os Black Blocs, encapuzados violentos que promoveram o quebra-quebra de agências bancárias, lojas, equipamentos públicos e, por fim, a invasão do Congresso.

Desde então, o movimento ensejou uma série de livros, debates e pesquisas acadêmicas. CartaCapital ouviu quatro especialistas que se debruçaram sobre o tema ao longo dos últimos 10 anos. Um resumo das principais reflexões dos estudiosos está exposto a seguir:

O EXTREMISMO
Por Olivia Perez, doutora em Ciência Política, professora da Universidade Federal do Piauí, autora do texto Junho de 2013 e a Importância do Coletivo, entre outros.

Não considero que junho de 2013 tenha revelado uma direita adormecida, pois a direita sempre esteve presente em cargos decisórios. O que muda são as configurações e as pautas. Quando crescem pautas como feminismo, antirracismo, a favor dos direitos LGBTQIA+, a direita reage. Não era uma direita adormecida em junho de 2013 nem o movimento pode ser responsável pelo surgimento de uma direita que sempre esteve bastante presente no comando do País. Eu entendo como movimentos e contramovimentos.

A esquerda, por sua vez, nunca esteve ausente das ruas, tampouco a direita. Entendo os movimentos como relacionais. Junho de 2013 reuniu muita gente à esquerda e a direita entendeu que ocupar as ruas dá certo e também foi. Existe uma leitura de que a direita ganhou e a esquerda perdeu o protagonismo, o que não se traduz na realidade. Aquelas séries de protestos foram responsáveis por socializar muitos jovens politicamente que ressaltam a importância de organizações coletivas, mais horizontais, menos hierárquicas, com mais possibilidade de inclusão daqueles excluídos no campo de direitos, nas principais decisões coletivas. A esquerda não ficou adormecida, o que se vê é a garotada a falar de feminismo, antirracismo e a favor dos direitos LGBTQA+. A esquerda perdeu em áreas como o meio ambiente, costumes, porque a gente tinha avançado em relação a essas pautas.

Existia em 2013 uma insatisfação popular em relação à política e a direita se apropria dessa insatisfação e se lança como alternativa, mas não que essa insatisfação seja responsável pela eleição do Bolsonaro em 2018.

As Jornadas de Junho devem constar nos livros de história como um ciclo de protestos, assim como houve outros no Brasil, que juntou gente, organizações com muitas pautas mostrando que as desigualdades no Brasil têm relação com várias clivagens sociais, de classe, gênero, raça, região, e que mostrou que ir às ruas faz efeito nos ciclos políticos brasileiros. Que a população tem força. Eu descreveria de um jeito positivo. Isso não quer dizer que desconsidere a diversidade de atores, inclusive de atores de direita que compartilhavam essas insatisfações com a política.

Captura. Os Black Blocs surgiram do nada e sumiram de repente. A antipolítica prosperou – Imagem: Fernando Frazão/ABR e Arquivo/ABR

O PARTO DE BOLSONARO
Por Cláudio André de Souza, cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, é autor do texto Governabilidade, Movimentos Sociais e Sistema Político: A Relevância dos Ciclos de Protestos no Brasil – 2013-2108.

As manifestações de 2013 trouxeram um ciclo amplo na conjuntura política brasileira, principalmente quando se analisa determinada tendência em provocar um transbordamento societário, ou seja, quando a gente tem a ascensão de novos grupos da sociedade civil à cena pública. As manifestações foram tensionadas entre grupos ideologicamente distintos, mas revelaram em especial as reconfigurações da direita, levando ao que depois a gente identificou como um movimento de representação eleitoral do bolsonarismo. É o primeiro movimento que funcionou eminentemente no formato digital, numa perspectiva muito clara de ascensão de um novo tipo de mobilização, de um repertório partindo da internet para as ruas.

Não dá para olhar 2013 sem a consequente perspectiva de 2014, com a Operação Lava Jato. Em 2013, o cerne do antipetismo se coloca presente, com a identificação contra a corrupção, contra o “Mensalão”. No dia 26 de junho, havia manifestantes a pedir o Fora, Dilma, Justiça e “mensaleiros” na cadeia, criticando o Lula, organizando um determinado campo. Esse repertório vai estar presente nas lutas contra Dilma, a partir de 2014, sobretudo ao longo de 2015, culminando no impeachment em 2016. As forças progressistas perderam o controle das ruas, pois havia um transbordamento social no campo da direita. Para a esquerda, as manifestações de junho significaram a reconfiguração de determinados grupos que pediam mais inclusão política. No campo da direita, eu concordo que “2013 pariu Bolsonaro”.

Cláudio André de Souza: “2013 pariu Bolsonaro”

Fernando Haddad publicou um texto em 2017 no qual ele conta detalhes do telefonema que Dilma Rousseff recebeu de ­Vladimir Putin, presidente da Rússia, a respeito do tráfego incomum nas redes sociais, na internet, em relação às manifestações de 2013. Isso abre uma reflexão sobre interesses internacionais em torno dos protestos. A gente não sabe em qual medida isso estava ancorado em uma perspectiva de enfraquecer o governo em relação à agenda do pré-sal. É um enigma. O junho de 2013 abre uma série de legados sócio-históricos e penso que a gente deve, sobretudo do ponto de vista metodológico, analisar esse processo como parte de um ciclo único, que começa em 2013 e se encerra em 2018.

O JOIO E O TRIGO
Por Camila Rocha, doutora em Ciência Política, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e autora de Menos Marx Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil.

As repercussões de junho de 2013 acabaram muito importantes para o que veio depois, mas a gente tem que ter o cuidado de não comparar a atuação do Movimento Passe Livre com as manifestações que seguiram depois de a principal demanda do movimento ter sido atendida pelos governos, diminuindo a tarifa do transporte. Dali em diante as principais pautas eram contra a corrupção, a favor de mais verbas para o serviço público, contra os gastos da Copa e a violência policial e outras pautas ligadas à direita. Eu não entendo que ali existia uma demanda clara da direita. O que acabou por se tornar uma herança de junho, e aí pensando principalmente no governo do PT, foi o crescimento da pauta da corrupção, na percepção de ser um dos principais problemas do País. É importante destacar que 2012 foi o ano do julgamento do “Mensalão” e, naquela época, no Brasil inteiro ocorreram vários protestos contra a corrupção.

Acho também difícil relacionar os retrocessos com junho de 2013, que aconteceu justamente porque o nosso sistema político bloqueia um aprofundamento dos direitos previstos na Constituição. Passados dez anos, isso permanece, mesmo agora, no terceiro governo Lula. Os retrocessos são muito sintomáticos e as demandas de junho não só foram bloqueadas na época, mas continuam a ser até hoje. Vincular a eleição do Bolsonaro com o junho 2013 também não é possível.

As manifestações de 2013 devem ser escritas nos livros como revoltas populares, horizontais, que não tinham lideranças claras, iniciadas não por uma esquerda autonomista, o movimento Passe Livre, e que foram revoltas descentralizadas. A esquerda estava acostumada a lidar com protestos com lideranças claras, sindicatos, organizações progressistas das mais diversas. E junho de 2013 rompe com essa lógica. Ideologicamente eram manifestações ambíguas. Todas essas características fazem das jornadas manifestações populares muito peculiares.

Debate. As jornadas de junho abriram a porteira para o reacionarismo que levaria ao impeachment de Dilma? – Imagem: Rovena Rosa/ABR

LINCHAMENTO
Por Breno Bringel, doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de Brasil – Cambio de Rra: Crisis, Protestas y Ciclos Políticos.

Junho de 2013 é hoje objeto de um verdadeiro linchamento moral por setores muito diversos, que veem ali o início de todos os nossos males. As teses que vinculam ­junho de 2013 com a extrema-direita (e desta forma, com o impeachment, a Lava Jato e o bolsonarismo) se baseiam em uma causalidade linear e pobre entre os protestos daquele ano e os acontecimentos posteriores. Temos de deixar de colocar a conta do retrocesso democrático em junho de 2013 e olhar para outros elementos de reconfiguração da sociedade, da cultura, da política, da economia e das subjetividades nas últimas décadas. Isso não significa que não podemos relacionar as jornadas com acontecimentos prévios ou posteriores, mas devemos fazer uma análise mais séria do processo histórico, social e político. Junho produziu uma “abertura societária”. Isso provocou um transbordamento da política que permitia múltiplos futuros possíveis.

O pós-2013 foi diverso e heterogêneo, assim como as jornadas em si. O junho que reivindicava uma mudança social mais radical e que trazia novas formas de exercício da política foi perseguido, como se faz de costume com os movimentos populares. Estou falando aqui de duas coisas distintas, mas complementares: por um lado, das balas de borracha e gás nos protestos, por outro, da emergência de novas formas de criminalização do protesto, de securitização e de militarização da vida que foram implementadas durante a Copa e as Olimpíadas. De forma mais ampla, após a catarse inicial, começa uma fase de decantação, que supõe um processo de diferenciação de agendas e espaços entre os grupos alinhados mais claramente à esquerda e à direita. Neste processo, o PT, por estar há dez anos no governo, foi um dos mais afetados.

Camila Rocha: “Foram revoltas horizontais, populares, sem liderança clara”

Junho de 2013 marcou uma conjuntura crítica, porque supôs o início de uma onda de protestos de alta intensidade que desafiou o ciclo político mais amplo que havia reinado no Brasil durante a Nova República. Há características importantes que aproximam o que vivemos dez anos atrás com outros protestos, levantes e jornadas da indignação pelo mundo nesta última década: indignação difusa, a ambivalência dos discursos, a heterogeneidade das demandas e a ausência de mediação de terceiros e de atores tradicionais, o estranhamento dos movimentos sociais estabelecidos ao ver que não se reconheciam nestas mobilizações massivas. Tudo isso faz com que junho de 2013 não tenha sido um evento isolado globalmente, mas parte de uma geopolítica da indignação. Foi, sem dúvida, um momento de catarse, pois havia uma energia social diversa, além de uma dinâmica de experimentalismo político e uma coexistência nos mesmos espaços de forças não somente distintas, mas antagônicas. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jornada às profundezas’

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