Política
Jabuticaba ambiental
A perfuração de poços na foz do Amazonas expõe as contradições da sustentabilidade à brasileira


Ao lado dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e da Casa Civil, Rui Costa, durante o lançamento do Plano de Transição Ecológica pelo governo, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, apresentou ao mundo um neologismo ao saudar o “ganho extraordinário de ver desenvolvimento e sustentabilidade no novo PAC”, outro programa lançado em agosto, e elogiar aquilo que qualificou como mudança no modo de pensar do País: “O Brasil não é mais desenvolvimentista. É sustentabilista”. A nova palavra é interessante, mas busca moldar um conceito de difícil aplicação no mundo real. Marina acabou por expor uma importante contradição vivida pelo governo Lula: como atender aos compromissos ambientais e iniciar a prometida transição energética sem comprometer o necessário desenvolvimento econômico do País?
O debate não é novo e passa, antes de tudo, pela decisão sobre o que fazer com a exploração de petróleo e gás. Trata-se de uma guerra de ideias relacionada ao que cada um pensa como projeto de País, mas uma importante batalha – com chance de trazer sequelas ao governo –, que começará a ser travada nos próximos dias em torno da polêmica exploração de poços de petróleo em alto-mar, em uma região próxima à foz do Rio Amazonas.
A ausência de um estudo de impacto não é problema para a AGU, que quer levar o caso para a mesa de mediação
Todos os atores governamentais envolvidos na discussão começaram a ser convocados para uma mesa de entendimento a ser instalada ainda em setembro na Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Pública Federal, instância interna da Controladoria-Geral da União (CGU) que, por sua vez, integra a estrutura da Advocacia-Geral da União (AGU). Desde maio, quando o Ibama negou à Petrobras autorização para o início dos testes em um poço do bloco FMZ-59, localizado a cerca de 500 quilômetros da foz do Amazonas e a 175 quilômetros do litoral do Amapá, a questão transformou-se em uma queda de braço cada vez mais renhida dentro do governo. De um lado, Marina e o Ibama são contrários à exploração, devido aos seus múltiplos e potenciais riscos ambientais. De outro, o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, aliou-se à Petrobras na pressão para que os testes iniciais sejam realizados ainda este ano na chamada Margem Equatorial, região que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte, que, com o fim das reservas do pré-sal, poderá ser a última fronteira de produção de óleo e gás em larga escala no País.
“Ao convocar a câmara de mediação, a AGU cumpre sua atribuição constitucional de tentar dirimir divergências quando dois ministérios apresentam entendimentos jurídicos diferentes sobre um mesmo assunto”, afirmou a CartaCapital o ministro Jorge Messias, titular da pasta. O órgão ressalta sua competência de “fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida por todos os órgãos e entidades da administração federal”.
Preocupação. A exploração marítima ameaça o maior manguezal do mundo – Imagem: André Ribeiro/Ag. Petrobras
Após o recebimento da convocação para a mesa de conciliação, os convidados terão até dez dias para responder: “Serão chamados os representantes do MME e do MMA, além de consultores jurídicos e representantes dos demais órgãos públicos e empresas públicas ou privadas envolvidas com o assunto, para conversas com o objetivo de realizar as primeiras análises de risco relativas ao caso”, informa em nota a AGU.
Nada garante que a reunião vai, de fato, acontecer, ao menos no que depender da área ambiental do governo. Esta anda enfurecida com a AGU que, além de sugerir a Lula a realização da negociação mediada entre Marina e Silveira, divulgou um parecer no qual afirma que, do ponto de vista legal, não é obrigatória a realização da Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, conhecida pela sigla AAAS, no poço FMZ-59.
A não realização desse estudo de impacto embasou a negativa do Ibama à Petrobras em maio: “A AAAS é acima de tudo um instrumento de auxílio, de apoio ao licenciamento ambiental, e não um fim em si mesmo. De nenhum artigo é possível extrair que a AAAS seria conditio sine qua non seja para a outorga, seja para o licenciamento ambiental, seja do ponto de vista estritamente jurídico, seja do ponto de vista fático”, diz o parecer da AGU. A novidade foi muito bem recebida por Silveira. “Se o entendimento fosse que a avaliação é obrigatória, a gente discutiria se faria ou não a exploração. Agora que ela foi dispensada, conforme a AGU, discute-se simplesmente como a Petrobras vai fazer para atender às condicionantes e iniciar a pesquisa”, observou o ministro.
“Não existe conciliação para questões técnicas”, diz Marina Silva
Já pelos lados do MMA, o parecer foi encarado como uma provocação. “Não existe conciliação para questões técnicas”, disse Marina a jornalistas, acrescentando que o Ibama não dá licenças políticas: “O Ibama dá licenças técnicas. Ele não facilita nem dificulta. Muita gente acha que não tem esse negócio de análise técnica, mas existem órgãos que se pronunciam tecnicamente”. A ministra acrescentou que não há má vontade e lembrou que o Ibama concedeu cerca de 2 mil licenças de operação à Petrobras. “Se as licenças dadas foram técnicas, as negadas são também técnicas.” Marina disse estranhar o questionamento ao órgão ambiental: “Alguém resolve mandar para uma decisão política se um remédio é tóxico ou não? Não posso botar em uma rodada de conciliação a Anvisa por decisão política para decidir se aquele remédio é tóxico ou não é tóxico. A mesma coisa são os processos técnicos de licenciamento do Ibama. Em um governo republicano, a gente olha para o que a ciência está dizendo”. Procurados por CartaCapital, a ministra e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, não responderam à reportagem até o fechamento desta edição.
Professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, Ildo Sauer avalia que “o que está no fundo do debate entre Ibama e Petrobras não é meramente uma questão técnica”. Ex-diretor da estatal, Sauer expõe a questão de outra forma: “A pergunta correta é: qual projeto de desenvolvimento econômico e social nós queremos para o Brasil?” Embora defensor da transição energética, o especialista diz que não vislumbra o planeta nas próximas décadas sem o petróleo, que ainda será aquele que gerará maior produtividade e, portanto, maior excedente econômico.
“Se quiser abrir mão desse excedente, o Brasil teria de trocar, por exemplo, toda a sua base de petróleo por etanol, o que não é factível”, diz Sauer. “Mesmo que fosse, o País reduziria muito seu excedente econômico, com menos royalties, participações especiais e lucros. Iria ter de trabalhar muito mais para produzir o mesmo, o que vai de encontro ao desafio brasileiro de produzir mais e distribuir melhor.”
Sauer lembra que os dois primeiros dos 17 itens que compõem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU são “fim da pobreza” e “fome zero”, e o governo Lula afirma ter essa meta como primordial. “O quadro que se desenha é um pouco mais complexo que o claro-escuro da discussão se precisamos ou não do petróleo. Acho difícil que se possa enfrentar um projeto de desenvolvimento econômico e social abrindo mão de recursos mais produtivos, em detrimento de mais trabalho e capital. Tudo isso sempre atinge os mais pobres com maior intensidade.”
Cabo de guerra. A decisão do ministro Jorge Messias, da AGU, enfureceu a ala ambiental do governo, mas foi elogiada por Prates, o presidente da Petrobras – Imagem: Rosinei Coutinho/STF, Pedro França/Ag. Senado e Mateus Bonomi/Anadolu Agency/AFP
O professor da USP faz uma provocação: “Resta saber se vamos continuar exportando petróleo apenas para gerar dividendos para os investidores. A Petrobras virou uma máquina apenas para gerar dividendos para seus acionistas, muitos deles estrangeiros? Ou ela tem outro papel no desenvolvimento e no cumprimento dos ODS pelo Brasil?” A resposta só poderá ser dada pelo governo: “Fim da pobreza e fome zero exigem produtividade e recursos nas mãos do governo, que tem de discutir se a riqueza do petróleo terá papel importante para cumprir os objetivos do País ou se é só para manter a trajetória da Petrobras como mera geradora de dividendos, algo acentuado nos últimos anos pelo vice-rei Paulo Guedes”.
Para os ambientalistas a solução é avançar com a transição energética. “Não temos mais tempo. Há uma contradição entre a exploração de petróleo e gás na Amazônia e o papel da floresta contra as mudanças climáticas”, afirma Sila Mesquita, coordenadora do Grupo de Trabalho Amazônico, rede que congrega centenas de ONGs e associações da região. Mesquita afirma “não ser contra o desenvolvimento, mas a favor da sustentabilidade”, e menciona um dos riscos da exploração na Margem Equatorial: “Os projetos na foz do Amazonas ameaçam a maior faixa de manguezal do mundo, entre o Amapá e o Maranhão”. Ela conta que os movimentos sociais entregaram ao BNDES um estudo para levar internet, energia e água potável para 1 milhão de habitantes da Amazônia até 2025 e defende a sociobioeconomia como um caminho para o Brasil: “O petróleo e o gás não se encaixam nesse horizonte”.
Na mesa de conciliação proposta pela AGU serão discutidos temas como o impacto dos sobrevoos de helicópteros sobre as aldeias indígenas e os planos de contingência e proteção à fauna marinha preparados pela Petrobras em caso de vazamento de óleo. Enquanto a discussão não começa, o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, avisa que dos 47 projetos do novo PAC com participação da empresa, 19 estão localizados na Margem Equatorial. Sobre a polêmica em torno da foz do Amazonas, Prates alega haver uma dimensão política, mas é ambíguo: “O Estado brasileiro, os estados e os municípios querem saber se essa potencial riqueza será explorada de fato e como ela será explorada. Se em detrimento deles ou em favor da transição energética e da preservação ambiental da Amazônia”. Para Ildo Sauer, o País precisa buscar, daqui para a frente, uma trajetória de equilíbrio: “O governo tem de discutir qual o papel do petróleo, com toda a complexidade que isso representa”, pondera. Ainda falta clareza para entender o sustentabilismo à brasileira. •
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
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