Não foi por falta de aviso. O discurso belicoso do presidente Donald Trump, que se negava a aceitar a derrota ao oponente democrata Joe Biden, desaguou em caos e violência. Ainda assim, poucos poderiam imaginar que o Capitólio, sede do Poder Legislativo norte-americano, seria invadido com tanta facilidade.
Para Esther Solano, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo e colunista de CartaCapital, já existe um antes e depois dos acontecimentos de 6 de janeiro. Apesar da opinião pública mundial e de grande parte de seus líderes estarem estarrecidos com a situação, há quem veja na insurreição um episódio de “rebeldia empoderadora”.
Essa ala parece dialogar com o que pensa o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que ainda ontem reafirmou ser “próximo de Trump” e endossou as narrativas falaciosas de fraude nas eleições americanas.
O presidente também resgatou a versão local dessa teoria infundada, afirmando – sem qualquer evidência –, que deveria ter vencido o petista Fernando Haddad ainda no 1º turno de 2018. Afirmou ainda que, com o voto eletrônico, o Brasil passará pela “mesma coisa” em 2022.
Em entrevista, Solano destaca o perigo do alcance da mobilização de ódios de grupos extremistas. Segundo ela, nenhuma democracia sólida hoje pode-se dizer imune aos seus efeitos.
Também analisa as pretensões de grupos bolsonaristas em repetir o ataque no País. Seria uma “paródia ridícula”, afirma, mas com potencial de aprofundar feridas ainda não curadas.
Confira a seguir.
CartaCapital: O que aconteceu ontem é histórico. Mas as incitações de invasão, Legislativo, o ódio à imprensa, o discurso supremacista e outras expressões de ódio estão na base do discurso de Trump. Por que o ceticismo, mesmo diante de tantas ameaças?
Esther Solano: Os acontecimentos foram o apogeu de uma cadeia de eventos: da exploração do ódio como política de Estado e de uma série de negações democráticas, como negar a vitória de Joe Biden. Foi uma escalada de eventos que mostra o enorme desrespeito democrático que ele teve desde o começo da campanha. Temos também que falar sobre masculinidade e a branquitude – o Trump é uma figura que mobiliza esses sentimentos. O que a gente viu foi uma tentativa golpista resultado de quatro anos de mobilizações de afetos antidemocráticos.
CC: Você acha que fica alguma lição para o Brasil? E para os parlamentares brasileiros?
ES: A lição que fica é que esses líderes da extrema-direita são muito perigosos. A lição já veio em 2018, quando muita gente pensava que o Bolsonaro era uma figura folclórica e que nunca iria chegar lá, muita gente menosprezava o poder do Bolsonaro. Esse é um erro brutal que a gente cometeu e que não podemos voltar a cometer.
Esses líderes são sempre muito perigosos e nunca podemos menosprezar o potencial antidemocrático violento deles porque eles mobilizam afetos que tem potencial destrutivo muito grande, como o medo, o ódio, da branquitude, o supremacismo masculino. Em momentos de crise econômica, política e social, esses tipos de afetos são fortíssimos e podem ser muito bem canalizados pelos líderes da extrema-direita, que não conhecem barreiras. Eles não tem nenhum pudor com as instituições democráticas, não têm limites. A lição que fica é que devemos proteger a democracia para tudo. Essa proteção não pode chegar no dia da eleição, tem que ser em cada um dos dias do mandato.
CC: Após a invasão, Bolsonaro afirmou ser “próximo a Trump” e repetiu mentiras sobre fraudes da eleição por lá e por aqui, em 2018. Como você avalia a declaração dele?
ES: Essa lógica da fraude é parecida entre líderes da extrema-direita ao redor do mundo. É uma narrativa fácil que explora uma militância que já está efervescente, à flor da pele. É a única narrativa possível quando você é um perdedor e não quer admitir.
Essa é uma narrativa que a gente já viu em 2018 no Brasil, misturada com a questão da crítica às urnas eletrônicas, e pode muito bem se repetir em 2022. Mesmo com o Trump evidentemente não tendo sucesso, o que conta para esses líderes é a mobilização de suas milícias, de suas “tropas”, de suas bases. Essa ideia da fraude tem potencial mobilizador para a base mais aguerrida.
E, no Brasil, nós temos um precedente. Em 2014, um tido como democrata, o Aécio Neves, também não confiou no resultado das urnas. É ainda mais perigoso, porque não foi um líder da extrema-direita, foi um líder supostamente democrático que pediu uma segunda contagem. Essa brecha está muito mais embaixo.
CC: De alguma forma, a extrema-direita sai fortalecida dessa situação?
ES: Perante a opinião pública mundial, a extrema-direita não sai fortalecida. O episódio de ontem foi bastante patético e dramático, porque acabou com 4 mortos, e olhos da imprensa mundial foi um episódio lamentável que marca um antes e depois nos Estados Unidos.
Agora, qual é o problema? Aos olhos da base radicalizada da extrema-direita, o episódio de ontem foi um exemplo do que pode acontecer em outros países. Para eles, ontem foi um momento de efervescência, rebeldia. O que aos olhos da opinião pública mundial mais moderada é uma coisa folclórica, aberrante, dramática e condenável, para as bases antidemocráticas radicalizadas extremas é visto como um momento de insubordinação e empoderamento.
CC: Sobre o modo de atuação de trumpistas e bolsonaristas: eles agem do mesmo jeito?
ES: Temos diferenças pela idiossincrasia de cada país, mas uma coisa que vemos nos bolsonaristas é uma fixação na simbologia estadunidense. Essa ideia de que os EUA são um país em que temos que nos espelhar, de que eles são uma grande nação e potência, um norte-americanismo simbólico e forte que, com o Trump, é mais forte ainda.
A minha preocupação é um pouco isso – essa ideia dos simbolismos, muito mais do que relações bilaterais que não aconteceram. A gente vê o Eduardo Bolsonaro [deputado federal e filho do presidente] como uma ponta disso, o Ernesto Araújo [ministro das Relações Exteriores], que defende uma subserviência aos EUA, basicamente. É a potência do simbolismo como um motor de interpretação dos fatos e de legitimação de fatos violentos.
CC: Muito se falou sobre a força das instituições perante uma ameaça tão grave. Qual é o impacto desse evento sobre as estruturas democráticas?
ES: A gente passa por uma crise democrático-institucional no mundo todo, e é sempre fundamental saber que nenhum país está livre dos ataques da extrema-direita. Nenhuma democracia, por mais que pareça sólida, está livre dos ataques justamente porque eles mobilizam afetos e emoções muito básicas, ainda mais em momentos de crise.
Disso, temos também outra lição. Países com uma trajetória extremamente desigual, racista, e violenta, como é os EUA, que também não tem uma uma estrutura pública de qualidade – porque o público fornece uma rede de coletivo, compartilhamento e proximidade entre as pessoas -, têm um potencial de violência antidemocrática muito maior.
O que preocupa é que o Brasil tem um legado autoritário muito forte e ainda vem de um percurso recente com o golpe contra a Dilma Rousseff.
CC: Quais são as chances de um evento como esse se repetir no Brasil?
ES: Nós temos uma base militante radicalizada bolsonarista perigosa e um histórico de golpes que é muito recente, inclusive, e cito de novo o golpe contra a Dilma. O país nem se recuperou disso.
Então, se o Bolsonaro tentasse dar um “golpe”, ou a milícia bolsonarista [tentasse], como ontem aconteceu no Capitólio, muito provavelmente fracassaria e seria uma paródia mundial, um episódio ridículo, mas evidentemente poderia provocar no Brasil uma ferida social a mais em uma sociedade que já está cansada de tudo isso. Aprofundaria o buraco da desordem institucional, que deixou uma herança autoritária no Brasil.
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