Política
Golpismo de renda
Qual será o destino dos diplomatas aliados a Bolsonaro na tentativa de melar as eleições?


Na terça-feira 20, o governo brasileiro, ao lado de outras nações, acusou Israel na Corte Internacional de Justiça, órgão da ONU, de ocupar ilegalmente territórios palestinos. O tribunal fica em Haia, sede dos poderes na Holanda e cidade onde o País mantém desde o ano passado um embaixador experiente, Fernando Simas, com 44 anos de serviço diplomático. Em tese, cabia a Simas apresentar a acusação. O libelo foi lido, porém, por uma diplomata jovem, de 15 anos de profissão e dois degraus abaixo na carreira, a conselheira Maria Clara Tusco, que trabalha em Brasília à frente da Divisão da ONU do Itamaraty. A ausência do embaixador foi uma decisão do governo. Informações dos bastidores do poder apontam duas explicações. Por um lado, Simas teria sido poupado de exposição. Por outro, ficaria evidente que ele é um problema. Por quê?
A razão é a mesma que obrigou Jair Bolsonaro a depor à Polícia Federal na quinta-feira 22. Investigações da PF revelaram recentemente que o ex-presidente tentou um golpe. Parte da trama foi urdida em uma reunião ministerial em 5 de julho de 2022, na qual o capitão se mostrou disposto a ir às últimas consequências para permanecer no cargo. Simas estava lá. Era o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, o número 2 do Itamaraty. O número 1, o embaixador Carlos França, estava fora do País na ocasião.
Pela lei do regime jurídico dos funcionários púbicos, a 8.112, de 1990, um servidor tem o dever de “levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração”. É de supor-se que Simas tenha deixado França a par do teor da reunião ministerial, ambos formavam um time no Itamaraty desde 2021. Adiantava algo? No fim de 2022, França seria arrolado por Bolsonaro como testemunha de defesa em um processo aberto no Tribunal Superior Eleitoral em razão de outra reunião, realizada 13 dias após aquela ministerial. Em 18 de julho de 2022, o capitão recebera embaixadores estrangeiros para dizer que a eleição seria roubada. O fato custou-lhe, em 2023, a condenação a oito anos sem disputar eleições.
Fernando Simas, número 2 do ex-chanceler Carlos França, estava na reunião golpista de julho de 2022
As “provas que já foram reveladas” pela PF são “bastante constrangedoras para os partícipes dessa reunião” de 5 de julho de 2022, afirmou na terça-feira 20 Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Foi, na visão do ministro, “um dos momentos mais baixos da República” fundada em 1889. A reunião levou a Comissão de Ética Pública da Presidência a instaurar processos contra cinco ministros de 2022: Anderson Torres (Justiça), Augusto Heleno (GSI), Bruno Bianco (AGU), Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Defesa) e Wagner Rosário (CGU). Em 16 de fevereiro, a Advocacia-Geral da União instalou um inquérito para “verificar se houve transgressão disciplinar” por um servidor que acompanhava Bianco na reunião. Adler Anaximandro e Alves era secretário da Consultoria-Geral da AGU e, até o início de 2024, ocupava cargo de chefia, do qual acaba de ser exonerado.
Um diplomata que acompanhou Simas na reunião, Comarci Nunes Filho, também foi punido. A Secretaria de Comunicação Social da Presidência dispensou-o de um cargo. A CGU estuda abrir processos contra os servidores presentes à reunião, entre eles diplomatas e militares. E o Itamaraty? Tomará providências quanto a Simas, Nunes Filho e o chefe do cerimonial da Presidência de Bolsonaro, o embaixador André Chermont de Lima, outro presente na reunião? A Associação dos Diplomatas do Brasil, representante dos 1,5 mil integrantes da carreira, divulgou nota na qual repudia a reunião e diz acompanhar o caso. O Sinditamaraty, que representa ainda os chamados oficiais de chancelaria, foi mais explícito e exigiu “investigação imediata”. CartaCapital perguntou ao Itamaraty sobre providências. Até a manhã da quinta-feira 22, data do fechamento desta edição, não havia obtido uma resposta.
O presidente Lula, afirma um diplomata, cobrou o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, a investigação e punição dos diplomatas que compareceram à reunião. Um colaborador presidencial defende uma apuração até que não pairem dúvidas quanto à conduta, sobretudo de Simas. Por que os diplomatas seriam diferentes e não poderiam ser investigados?, pergunta. E prossegue: só porque o Simas não falou na reunião está tudo bem? Ele poderia ter pedido demissão.
Perto e longe. Blinken reuniu-se com Lula na quarta-feira 21. Chermont, ativo no governo Bolsonaro, hoje despacha em Tóquio – Imagem: Consulado-Geral do Brasil em Tóquio e Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
Diplomatas em geral enxergam-se como funcionários de Estado, a serviço de interesses atemporais do País, não de um governo. Essa visão não deveria servir para levá-los a resistir a ordens ilegais? A denunciar irregularidades testemunhadas? Por que França e Simas se calaram diante do que viram e ouviram? A visão de que se trata de carreira apartada do governo é, no entanto, discutível. Segundo a Convenção de Viena de Relações Diplomáticas, de 1961, ressalta um diplomata, a missão de um embaixador no exterior começa quando ele entrega suas credenciais ao país anfitrião. Essa carta é, por princípio, de caráter pessoal. Quem assina é o presidente do país do embaixador e seu destinatário é o presidente do país anfitrião. Começa com algo do tipo “prezado amigo”, “caro amigo”. Quer dizer, um embaixador é antes de tudo um emissário presidencial, não estatal.
A reportagem conversou nos últimos dias com sete diplomatas e ouviu de mais de um que a reunião ministerial de 5 de julho seria a prova de que França e Simas teriam mentido internamente sobre o encontro de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros em 18 de julho. O encontro era uma reação do então presidente ao fato de que dois meses antes o TSE promovera um seminário com representantes estrangeiros sobre o sistema eleitoral e as urnas. A comunidade internacional era vista pelo tribunal como capaz de ajudar a frear os pendores golpistas do capitão. Por tudo o que se sabe hoje, não é exagero anotar que muitos militares controlaram os instintos por vergonha do que o mundo, em especial os Estados Unidos, diria. Três dias após a derrota de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, então vice-presidente, escreveu numa rede social: “Agora querem que as Forças Armadas deem um golpe e coloquem o País numa situação difícil perante a comunidade internacional”.
Os EUA mandaram vários sinais a partir de 2021, primeiro ano do governo Joe Biden. Com Donald Trump na Casa Branca, o desfecho seria outro? Na quarta-feira 21, Lula recebeu Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano. Entre outros temas, falaram da eleição dos Estados Unidos em novembro, que oporá Biden e Trump de novo. Os sinais do governo democrata contra golpismos foram dados em visitas a Brasília, entre 2021 e 2022, do chefe da CIA, William Burns, de um conselheiro da Casa Branca para segurança nacional, Jake Sullivan, e da subsecretária de Assuntos Políticos, Vitoria Nuland. Em julho de 2022, mês da reunião ministerial golpista e do encontro de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros, aterrissou na cidade o secretário de Defesa, general Lloyd Austin. Este foi, na avaliação de um diplomata brasileiro, o gesto mais importante de Washington, dados os laços históricos entre as duas Forças Armadas.
Embora não tenham obtido os postos que desejavam, os diplomatas colaboracionistas ocupam cargos importantes no exterior
Segundo esse diplomata, Simas, secretário-geral do Itamaraty em 2022, era contra a reunião de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros. Entendia que o acontecimento se reverteria a favor de Lula. Essa descrição é uma pista da possível “mentira” de Simas e França contada no Itamaraty. Outro diplomata recorda-se de relatos da época, segundo os quais a dupla não sabia o que seria o encontro do então presidente com os estrangeiros. Para esse diplomata, a reunião ministerial de 5 de julho contraria a versão dos relatos. O golpismo de Bolsonaro seria conhecido da dupla.
Em depoimento ao TSE em 19 de dezembro de 2022, no processo decorrente da reunião de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros, França esforçou-se para convencer que o Itamaraty nada tinha a ver com a realização, mas admitiu que coube ao ministério definir o público-alvo. “Como chancelaria, recomendamos que fossem convidados apenas os embaixadores aqui plenipotenciários. Ou então de países cujos encarregados de negócio estivessem aguardando a presença de embaixadores designados, mas para quem o governo brasileiro já houvesse outorgado agrément.” Plenipotenciário é o embaixador de um país em outro. Agrément é o sinal verde do país anfitrião para ele ocupar o posto. Encarregado de negócios é o número 2 de uma embaixada.
No depoimento, França empurrou para o cerimonial da Presidência a responsabilidade pelo preparo da reunião. Melhora sua situação? O chefe do cerimonial era o embaixador Chermont. França comandara a área no início do governo Bolsonaro, e Chermont era seu braço direito em 2019.
Punição. Nunes Filho perdeu um cargo na Secretaria de Comunicação da Presidência. Cruz e Alves foi exonerado da Advocacia-Geral da União – Imagem: Redes sociais e Billy Boss/Ag. Câmara
A dupla França e Simas vendia entre diplomatas a tese de ter aceitado dirigir o Itamaraty com Bolsonaro para conter estragos em posições tradicionais do Brasil. Verdade? Ou desculpa para encobrir o desejo de alcançar poder e mordomias? No fim do governo, os dois usaram esse poder para preparar uma rota de fuga para si e para outros colaboradores do bolsonarismo. O plano incluía postos vistosos e começou a sair do papel no dia da reunião ministerial golpista. O então chefe de gabinete de França, Achilles Zaluar Neto, foi indicado ao Senado para ser embaixador no Vaticano. Em 7 de julho, Hélio Vitor Ramos Filho, então em Roma, era indicado para Buenos Aires. Em agosto, Simas era indicado ao posto italiano. Roma é uma das maiores regalias da nossa diplomacia. A embaixada fica num palácio luxuoso e serve de casa ao embaixador. Em novembro de 2022, o então secretário de Assuntos Multilaterais, Paulino Franco de Carvalho Neto, foi indicado para outra mordomia palaciana: Paris. Em dezembro de 2022, Chermont foi indicado embaixador nos Emirados Árabes Unidos, país que o clã Bolsonaro adorava por razões pouco claras.
França não chegou a ser indicado formalmente a um posto, mas havia reservado para si a embaixada em Londres. O governo Lula desfez o plano e mandou-o ao Canadá. Simas foi despachado para Haia, não Roma. Carvalho Neto ao Egito, não Paris. Zaluar Neto tornou-se cônsul-geral em Bruxelas, não no Vaticano. Chermont é cônsul-geral em Tóquio, não nos Emirados Árabes.
Bolsonaro, ao contrário do atual governo, não teve nenhum melindre em colocar na geladeira diplomatas “alinhados” ao PT
A rota de fuga armada em 2022 por França e Simas e a omissão da dupla diante dos subterrâneos golpistas do governo Bolsonaro mostram, na avaliação de um diplomata, traços marcantes e reprováveis da carreira. Os critérios de promoção e remoção no Itamaraty, diz, são piores do que nas Forças Armadas. Baseiam-se em amizades, lealdades, familismo. Continua: diplomata é egresso da classe alta ou para ela quer ir e ninguém vai trair a própria classe. O salário de um diplomata varia de 20 mil a 30 mil reais. Um embaixador no exterior ganha cerca de 100 mil, incluídas indenizações. A última pesquisa do Datafolha antes da vitória de Lula na eleição de 2022 apontava que, entre brasileiros com renda superior a 10 mil reais, Bolsonaro vencia por 59% a 37%.
O perfil geral dos diplomatas tem mudado neste século, graças justamente às duas primeiras gestões de Lula, de 2003 a 2010. Antes, 95% eram homens e brancos. Agora há mais negros e mulheres e menos filhos de embaixadores. A ascensão aos postos mais importantes ainda obedece, no entanto, à lógica das relações pessoais, algo que o governo Lula não mudou nem antes nem agora. E se os colaboracionistas diplomáticos de Bolsonaro ainda não sofreram as consequências das opções feitas na carreira, o mesmo não pode ser dito de alguns que serviram às gestões petistas anteriores.
Não era bem isso. Zaluar Neto queria a embaixada no Vaticano. Acabou em Bruxelas – Imagem: Lincoln Siebra/MRE
Em 2019, início da era Bolsonaro, o então chanceler Ernesto Araújo trouxe de volta de Paris um diplomata, Audo Faleiro, que havia trabalhado na assessoria internacional de Lula e de Dilma Rousseff. Achava que poderia ser útil nas negociações com europeus. Botou-o à frente da Divisão de Europa. Quatro dias depois, desistiu. Motivo: a ligação de Faleiro com governos petistas havia sido noticiada por um site direitista apreciado pelo bolsonarismo. Faleiro ficou encostado quatro anos no Itamaraty. Em 2023, voltou à Presidência com Lula.
Outro perseguido foi Milton Rondó. Com Lula e Dilma, ele dirigiu a área do Itamaraty responsável por ajuda humanitária e combate à fome. Em março de 2016, mês anterior ao início do processo de impeachment de Dilma, enviou um telegrama a repartições diplomáticas brasileiras pelo mundo a alertar sobre a existência de um golpe em curso aqui. Três meses depois, com Michel Temer no poder, foi tirado do cargo. Em 2018, a gestão Temer ainda o puniria com o corte de uma semana de salário. No mesmo ano, aliás, o governo reconheceu que um diplomata havia sido assassinado pela ditadura em 1979. José Jobim tinha sido sequestrado e morto uma semana após soprar em Brasília que denunciaria, em um livro de memórias, corrupção na construção da usina de Itaipu, obra do regime fardado. Em 2021, na gestão Bolsonaro, Jobim foi escolhido como patrono da turma de formandos do Itamaraty. Como o capitão é fã da ditadura, a cerimônia deu-se às escondidas, para não o contrariar.
E agora, algo será feito no Itamaraty, às escondidas ou não, com os diplomatas colaboracionistas do capitão? •
Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Golpismo de renda’
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