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Gigantes no ringue

A disputa entre o Legislativo e o Judiciário acirra-se à medida que o Supremo avança sobre temas como aborto e drogas

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Disputa. A decisão judicial contra o “marco temporal” das terras indígenas despertou a fúria dos ruralistas. Barroso terá de negociar trégua com Arthur Lira e Rodrigo Pacheco – Imagem: Marina Ramos/Ag. Câmara e Carlos Alves Moura/STF
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As vésperas de um final melancólico, a CPI dos atos golpistas de 8 de janeiro recebeu um balde de água gelada na cabeça após uma decisão do ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, que na terça-feira 3 suspendeu a quebra dos sigilos bancário, telefônico, fiscal e telemático do ex-comandante da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques, um dos principais alvos de deputados e senadores governistas. Quatro dias antes, o deputado federal oposicionista Domingos Sávio, do PL, protocolou uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende dar ao Congresso Nacional o poder de, em última instância, “sustar decisões do STF que venham a extrapolar os limites constitucionais”. Os dois episódios jogaram lenha na fogueira da disputa entre os poderes Judiciário e Legislativo, conflito institucional que cresce a cada dia no atual governo, com direito a acusações mútuas de intervenção indevida e invasão de prerrogativas.

Um exemplo emblemático da briga entre os poderes é o tratamento dado à questão do “marco temporal” a ser adotado para a demarcação de Terras Indígenas. Poucos dias depois de o STF ter rejeitado por 9 votos a 2 a tese ruralista que reconhece a legalidade apenas dos territórios ocupados por povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, o Senado aprovou um Projeto de Lei em sentido contrário, confirmando votação anterior da Câmara. O presidente Lula sinalizou que vetará a lei aprovada pelos parlamentares, que, por sua vez, ainda poderão derrubar o veto presidencial. O certo é que o imbróglio trouxe o Executivo para o centro do ringue da batalha entre os poderes, o que não interessa a Lula, mas é praticamente inevitável que a questão venha a ser judicializada e volte ao Supremo. Além disso, novos rounds estão previstos na discussão de temas que mobilizam forças políticas na sociedade, casos da descriminalização do aborto e do porte de drogas para consumo pessoal.

Os bolsonaristas mobilizam-se por PEC que confere ao Congresso o poder de revisar decisões do STF

Na quarta-feira 4, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou uma proposta que limita decisões monocráticas e pedidos de vista nas cortes superiores. Discute-se, ainda, fixar em oito anos os mandatos de integrantes do STF, outro ponto de discórdia que pode levar a disputa entre os poderes ao ponto de fervura. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, avisou que aguarda somente a confirmação do nome de quem ocupará a vaga de Rosa Weber no Supremo para deslanchar a discussão. Decano do STF, Gilmar Mendes externou a insatisfação do colegiado: “Acaba sendo um cavalo de Troia para discutir outras questões, como, por exemplo, a divisão da indicação do presidente da Suprema Corte com a Câmara e o Senado. E acho curioso que se escolha logo o STF como alvo da primeira reforma”.

Em seus primeiros dias no novo posto, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, tem buscado, ao menos nas palavras, desarmar os ânimos na relação entre Legislativo e Judiciário. “Pretendo dialogar com o Congresso de uma forma constitucional, como deve ser. Eu não vejo crise. O que vejo é a necessidade de diálogo e boa-fé”, disse ainda durante a cerimônia de posse. Após citar nominalmente Pacheco e também o presidente da Câmara, Arthur Lira, o ministro afirmou que em uma democracia não há poderes hegemônicos: “Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais que somos pelo bem do Brasil”. Barroso terá logo a oportunidade de demonstrar suas habilidades de apaziguador, uma vez que o veto de Lula ao PL do “marco temporal” deverá ser anunciado nos próximos dias: “Confiamos na hipótese de que o texto não seja vetado integralmente. Caso haja o veto integral, o Congresso certamente fará a derrubada o mais rápido possível”, antecipa o senador Marcos Rogério, do PL, relator do projeto.

A tática do governo nesse caso é deixar o Congresso marcar posição. Se o veto de Lula for derrubado, o Executivo dá como certo que o STF reverterá a situação. Mas isso quer dizer que, ao lado de um Congresso reacionário e de um governo de frente ampla, seriam as principais instâncias do Judiciário hoje as forças progressistas entre os poderes no Brasil? Nem tanto, dizem especialistas. “Falar que o STF é o polo mais progressista na estrutura de Estado hoje traz uma ideia equivocada de um certo ativismo progressista, coisa que em geral não há no Supremo”, afirma Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e colunista de CartaCapital. O jurista diz que o STF simplesmente aplica a Constituição, na maioria dos casos, de forma adequada: “Mesmo com as alterações feitas por emendas desde a sua aprovação, ela ainda mantém um perfil nitidamente progressista de combate à miséria e às desigualdades, proteção de direitos de liberdade e estabelecimento de direitos sociais. A Constituição é progressista, o STF só aplica o que nela está determinado”.

Efeito. Com a descriminalização, pacientes poderão cultivar a cannabis para manter tratamentos médicos – Imagem: Tomaz Silva/ABR

Para Luiz Eduardo Motta, diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ, o Supremo tem se mostrado legalista e defensor da Constituição de 1988: “O STF jamais pode ser visto como um espaço de excelência da esquerda, longe disso. A não ser que consideremos Gilmar Mendes uma liderança comunista”, brinca. O professor acrescenta que, ao se perceber o Estado como uma arena de conflitos, “parte do Judiciário, sobretudo o STF, é hoje um espaço de resistência ao avanço do fascismo que está internalizado no Congresso”. Motta pondera, porém, que o Judiciário, por meio de concursos públicos, “incorporou uma nova geração de operadores do Direito identificados com programas ultraconservadores, a exemplo de Deltan Dallagnol”.

O progressismo do Supremo será posto à prova no caso das drogas. A um voto de aprovar a descriminalização do porte de maconha e definir a quantidade que diferenciará legalmente usuário e traficante, medida com potencial para desafogar o sistema carcerário do País, o STF terá de lidar com a regressiva PEC colocada em pauta pelo presidente do Senado que criminaliza o porte de maconha em qualquer quantidade. Serrano diz que a posição do Supremo é um avanço por reduzir o poder arbitrário de quem aplica a norma: “Poderemos determinar de forma clara quem pode ser considerado usuário ou traficante. Hoje em dia, isso é um conceito indeterminado que possibilita ao agente policial agir de forma arbitrária, o que acaba sendo veículo de racismo e de uma série de outros problemas”.

“A Constituição é progressista, o STF só aplica o que nela está determinado”, avalia o jurista Pedro Serrano

Outro tema que oporá Judiciário e Legislativo nas próximas semanas é o aborto. Enquanto o Supremo começa a julgar a ação que pede a descriminalização dessa prática até a 12ª semana de gestação, senadores se mobilizam para aprovar a realização de um plebiscito sobre o tema, a nova bandeira da direita no Congresso. Para o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, o Congresso tem demonstrado omissão em enfrentar grandes temas: “Por isso, partidos e entidades decidem acionar o STF. Sendo provocada, a Corte tem o dever constitucional de se manifestar. No caso das drogas e do aborto, o mais importante é que a sociedade tivesse maturidade para discutir isso no Parlamento”. Kakay critica o projeto de Sávio e diz que “a ideia de concentrar mais poderes no Congresso, incluindo o de rever decisões do Supremo, cheira a golpe”.

À esquerda, a ideia do Legislativo como “revisor” do Judiciário é rechaçada. “A oposição quer ampliar sua força e desequilibrar a divisão de poderes para a esfera onde tem mais presença, resguardando, assim, seus próprios interesses. Perderam as eleições para o Executivo e agora querem impor o programa derrotado nas urnas a partir de um garrote sobre o STF”, diz o deputado Tarcísio Motta, do PSOL. Ele ressalta que o campo progressista há muito tempo faz a crítica ao ativismo judicial: “Mas o órgão para tal controle é o Conselho Nacional de Justiça e a própria transparência nas decisões judiciais. Não é razoável dotar o Legislativo de poder revisor”. •

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Gigantes no ringue’

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