Economia

Fila da fome em Cuiabá recebeu ossos de ‘qualidade’, diz governador de Mato Grosso

Declaração é de Mauro Mendes (União Brasil), que tem apoio de Bolsonaro para se reeleger. Postura chama atenção para o comportamento público de representantes do agronegócio em questões sociais

Fila de ossos em Mato Grosso foi registrada no programa Fantástico. Governador disse que 'aquilo dá um prato delicioso'. Foto: Reprodução/TV Globo
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*Esta reportagem é um trabalho de conclusão do curso “O papel do agro em um mundo complexo”, ministrado pelo Insper entre 25 de maio e 10 de julho e voltado para 35 jornalistas dos principais veículos de comunicação do Brasil. O autor desta reportagem foi um dos profissionais selecionados. A tarefa final era produzir uma pauta que estivesse relacionada a algum tema abordado no curso. O assunto escolhido foi “Imagem e Comunicação”.

Pré-candidato à reeleição ao governo de Mato Grosso, com o apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL), Mauro Mendes (União Brasil) acusou a imprensa de ter agido com “desvirtuação” ao noticiar a formação de filas para receber doações de ossos de um açougue em Cuiabá. Em uma conversa com jornalistas realizada em 7 de julho na capital, o governador afirmou que o açougue distribuiu ossos de “qualidade” aos moradores.

A declaração se deu após questionamento de CartaCapital sobre dados divulgados por veículos de imprensa que apontaram índices preocupantes de extrema pobreza e de alta nos preços dos alimentos no estado, o principal para o agronegócio no Brasil.

Na ocasião, CartaCapital citou publicações do portal G1 com os títulos Açougue tem fila para doação de ossos em Cuiabá para famílias carentes (17 de julho de 2021) e Antes do Natal, cresce a procura por doações de ossinhos e fila em açougue de MT dobra quarteirões (23 de dezembro de 2021). Esta última matéria trazia a informação de que a fila tinha 400 pessoas e se estendia por cinco quarteirões.

Em resposta, Mendes convidou os próprios jornalistas a conferirem os “ossinhos”.

“Gente, com todo o respeito aos senhores da imprensa. Isso foi e é uma grande desvirtuação da verdade e da realidade. Eu vou explicar o porquê. Porque o mesmo ossinho que aquele açougue lá… Ele dá aquilo, faz a doação do chamado ossinho… A gente fala ossinho, pelo amor de Deus. Vou até convidar, se vocês quiserem, para a gente ir lá ver qual que é a qualidade desse ossinho.”

O governador Mauro Mendes (União Brasil) disputará a reeleição com o apoio de Bolsonaro. Foto: Michel Alvim/Secom

Na sequência, Mendes afirmou que os ossos distribuídos pelo açougue dão um “prato delicioso” e que são consumidos em restaurantes como “ossobuco”, corte de carne em rodelas que inclui ossos, tradicional na Itália.

“O ossinho que ele dá há quase 15 anos lá, você come em restaurante como ossobuco”, declarou. “Você compra no melhor mercado aqui de Cuiabá ou do Brasil aquele mesmo produto. A maioria dos açougues de Cuiabá vendem aquele produto, pega o osso, pega a costela, com pouca carne, pega a suan do boi, corta, pica aquilo e vende. E aquilo dá um prato delicioso, feito com mandioca, feito com legumes.”

Em seguida, Mendes disse observar “hipocrisia” no que chamou de “simbologia” das publicações da imprensa.

“Lá, eles, por uma questão de humanidade, eles doam. Tem 12 ou 15 anos que ele doam aquilo. E alguém foi lá, fez uma matéria, titulou corretamente, ‘fila do ossinho’. Parece que está roendo osso, comendo osso. E veio essa simbologia que, me desculpe, é uma hipocrisia. Porque esse mesmo ossinho, eu tenho certeza que, se eu fizer hoje ele aqui, nós vamos comer, e muitos vão adorar o prato, que é um prato muito conhecido, o famoso ossobuco.”

Famílias usam ossos com retalhos de carne para complementar refeições em Mato Grosso. Foto: Reprodução/TV Globo

Na mesma ocasião, Mendes rebateu questionamentos feitos com base em reportagens do jornal Folha de S.Paulo e do portal O Joio e o TrigoCartaCapital citou a publicação Pobreza recorde acentua desigualdades no Brasil; veja por estado (25 de junho de 2022), que diz que “no Centro-Oeste, símbolo da pujança do agronegócio, que se beneficiou com a alta das commodities durante a pandemia, a pobreza registrou um recorde atípico”.

A reportagem diz que, historicamente, de 7% a 8% da população vive na pobreza, e que no ano passado o percentual foi a 11%. Em Mato Grosso, o índice era de 6,6% em 2019, primeiro ano de mandato de Mendes, e subiu para 9,3% em 2021. O jornal atribuiu os dados a um levantamento do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, o Imds.

CartaCapital também mencionou a publicação Opulência, segregação social e fome nas capitais do agronegócio (20 de abril de 2022) que aponta que, segundo dados do Ministério da Cidadania, o município de Lucas do Rio Verde “tem a pior situação em termos de extrema pobreza, acima da média de Mato Grosso”. Já as cidades de Sorriso e Sinop “têm uma situação melhor quando se trata de extrema pobreza, mas, ao se olhar os dados sobre pobreza, não é possível afirmar que o quadro seja melhor do que a média do estado”.

Em resposta, Mendes disse que o estado tem o 2º melhor índice de Gini do País. Em consulta ao IBGE, CartaCapital verificou que a medição mais recente põe o estado na 3ª e na 4ª colocação, a depender da metodologia.

“No Brasil, nós temos estatística para você configurar e defender inúmeros cenários. Você olha em qualquer área, não só nessa, e vai encontrar formas de olhar dados, ou de trabalhar dados, ou de ver dados, e vai mostrar que um cenário pode estar sendo pintado de uma forma A, B ou C. Existe o índice Gini, que mede a desigualdade. O estado de Mato Grosso é o segundo menos desigual em todo o Brasil. Então pronto.”

O governador admitiu a probabilidade de aumento da pobreza, mas afirmou que há uma alta desse índice no mundo inteiro e citou a pandemia como causadora de perda de renda das classes mais baixas. Também disse reconhecer a existência de desigualdade, porém, alegou ter distribuído mais de um milhão de cestas básicas durante a crise sanitária, criado um programa emergencial de segurança alimentar e investido em qualificação profissional.

Fila de ossos dobrou quarteirão em Cuiabá. Governador acusou imprensa de ‘desvirtuação da realidade’. Foto: Reprodução/TV Globo

Por último, Mendes disse aos jornalistas que gostaria que “conhecessem” os municípios de Lucas do Rio Verde, Sorriso e Sinop, e disse que bairros pobres dessas localidades parecem ser de classe média.

“Se você for num bairro pobre de lá, você não vai acreditar que aquilo é um bairro pobre, olhando para aquilo que é a realidade do Nordeste,  do Rio de Janeiro e das favelas de São Paulo”, disse o governador, sobre Lucas do Rio Verde. “Vai achar que aquilo é uma classe média. É um lugar muito diferente, não retrata essa estatística.”

Ao lado dele, estava o vice-governador, Otaviano Pivetta (Republicanos), que foi prefeito de Lucas do Rio Verde três vezes. Pivetta citou um “fenômeno” em cerca de 30 municípios agrícolas de Mato Grosso que estariam envolvidos em um grande fluxo migratório. Segundo ele, é provável que os brasileiros que chegam nesses municípios em busca de oportunidades passem dificuldades, porque não há como acolher bem todas essas pessoas.

“Não temos nenhuma casa urbana sem asfalto, abastecimento de água potável e iluminação pública. Nessas cidades, e Lucas [do Rio Verde] é uma delas, não existe periferia, não existe favela. O equipamento público que tem no centro tem no bairro mais humilde”, declarou Pivetta.

A conversa com o governador de Mato Grosso fez parte da última etapa de um curso ministrado pelo Insper, entre 25 de maio e 10 de julho deste ano, chamado O papel do agro em um mundo complexo. O curso teve apoio de entidades da imprensa e contou com a participação de 35 jornalistas de diferentes veículos de comunicação. Os profissionais realizaram uma viagem de quatro dias ao estado para conhecer a produção de algodão em uma propriedade agrícola de 583 mil hectares, desde a lavoura até o beneficiamento. Com o governador, os jornalistas tiveram a oportunidade de conhecer projetos sobre tecnologia, sustentabilidade e responsabilidade fiscal, e em seguida fazer perguntas.

A tarefa final do curso era apresentar um trabalho de conclusão, em forma de reportagem, que pautasse algum dos assuntos abordados nas aulas. CartaCapital escolheu “Imagem e Comunicação”, tema abordado em 5 de julho.

As declarações do governador, proferidas diante dos jornalistas, servirão de base para um debate proposto nesta reportagem sobre a forma como representantes do agronegócio se posicionam publicamente sobre questões sociais. Além disso, julgou-se que o teor das afirmações tem valor noticioso e é de interesse público e de nossos leitores, por se tratar do posicionamento de um governador, pré-candidato à reeleição, sobre a situação do estado em relação à fome e à pobreza, assuntos priorizados pela linha editorial deste veículo.

Governador de Mato Grosso recebeu 35 jornalistas em etapa final de curso promovido pelo Insper. Foto: Michel Alvim/Secom

Declarações do governador geram críticas

CartaCapital telefonou seguidas vezes para o Atacadão da Carne, açougue em Cuiabá que faz as doações dos “ossinhos”, expressão que se refere aos pedaços que sobram da desossa do boi. A responsável pelo estabelecimento, porém, não cedeu entrevista à reportagem.

O açougue apareceu no programa Fantástico, da TV Globo, de 25 de julho de 2021. Segundo a matéria, o estabelecimento distribui ossos com retalhos de carne três vezes por semana. No meio da aglomeração da fila, há mães solo, desempregados, beneficiários do auxílio emergencial e trabalhadores informais, como catadores de materiais recicláveis.

Em entrevista à emissora, a dona da loja, Samara de Oliveira, diz que marca dia e horário para as doações e que a fila cresceu com a crise na pandemia. “Tem gente que pega o ossinho e já come cru mesmo ali”, diz ela.

Essas filas foram tão marcantes que chegaram a virar tema de um desfile de escola de samba em São Paulo. Também foram citadas por políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-ministro Sérgio Moro em críticas a Bolsonaro. As declarações recentes de Mauro Mendes, agora, rendem críticas também ao governador.

Em entrevista a CartaCapital, o deputado estadual Lúdio Cabral (PT-MT), que faz oposição a Mendes, afirmou que a fila do osso em Cuiabá retrata uma situação “gravíssima” no estado.

“A questão não é se existe algum prato da gastronomia que se faça com carne que contenha osso. A questão é que o açougue, que distribui sobras da carne que comercializa, experimenta uma fila com centenas de pessoas buscando doações”, declarou o parlamentar. “É triste o governador não enxergar essa realidade. Isso demonstra que ele governa o Mato Grosso para os muito ricos e não para a população empobrecida.”

Governador diz que ossos doados em fila são consumidos em restaurantes como ‘ossobuco’. Foto: Reprodução/TV Globo

A reportagem também ouviu um dos diretores estaduais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, Júlio César Barbosa. O militante disse ter sentido “repulsa” ao ouvir as declarações do governador sobre a fila dos ossos e criticou a acusação à imprensa de que houve “desvirtuação” quando os veículos noticiaram os fatos.

O MST, que coordena em torno de 40 assentamentos com 25 mil famílias no estado, diz que identificou aumento na procura de doações de alimentos. Nos últimos dois anos, o movimento estima ter doado pelo menos 11 toneladas de itens básicos, como arroz, feijão e óleo, em diferentes municípios do estado. Além disso, a organização notou elevação considerável na busca por moradia nos acampamentos.

“Com os produtos mais caros, a população foi empobrecendo de uma maneira que só resta o osso. Aquelas pessoas estavam ali porque não tinham outra alternativa e estão passando fome em um estado produtor de carne bovina, um dos maiores do Brasil”, afirmou o militante.

Além de figuras políticas, CartaCapital ouviu a avaliação de um especialista da Universidade Federal de Mato Grosso sobre as declarações de Mendes. Armando Tafner, professor de Sociologia e pesquisador do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos, classificou o teor das alegações como “cruel”.

“Uma fala dessas não tem cabimento, é revoltante. Falar que os ossos têm qualidade só não soa jocoso porque pessoas dependem disso para se alimentar”, disse o estudioso.

Para o professor, há uma contradição entre os números expressivos de exportação de carne bovina e a existência de fila de ossos. Segundo o IBGE, o Mato Grosso tem o maior rebanho bovino do Brasil e lidera os índices de abate e de exportação. São mais de 32 milhões de cabeças de gado. Só no 1º semestre deste ano, foram mais de 2 milhões de bovinos abatidos, número maior que no mesmo período do ano passado. A China é o principal destino.

Uma das explicações para essa contradição, segundo o professor, é que a produção no estado prioriza a venda para o exterior, em vez de favorecer o abastecimento de alimentos às famílias brasileiras.

“Acumula-se terras não para produzir comida, mas para produzir commodities“, diz ele, em referência aos produtos primários produzidos em grande escala para o comércio externo.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) apoia a candidatura a reeleição de Mauro Mendes (União Brasil). Foto: Mauro Pimentel/AFP

Especialistas divergem na interpretação do Índice de Gini

A reportagem não conseguiu confirmar o dado citado pelo governador de que o Mato Grosso teria atualmente o 2º melhor índice de Gini do Brasil. O site mais destacado com essa informação é o Wikipédia, na página Lista de unidades federativas do Brasil por Índice de Gini.

Na página, a fonte citada é de 2017. Trata-se de documento do IBGE que mostrou o Mato Grosso atrás apenas de Santa Catarina, com 0,457 no índice de Gini “do rendimento domiciliar per capita, a preços médios do ano”, e 0,440 no índice de Gini “do rendimento médio mensal real das pessoas de 14 anos ou mais de idade, efetivamente recebido no mês de referência, em todos os trabalhos, a preços médios do ano”.

Procurada, a assessoria do IBGE informou que a medição de Gini mais recente é de 2021. O estado de Mato Grosso aparece em 3º lugar em uma metodologia, com 0,461, e 4º lugar, com 0,433, atrás de Santa Catarina, Rondônia e Goiás. O índice é medido de 0 a 1 e aponta como menos desigual o território que chegar mais próximo de 0.

CartaCapital solicitou ao IBGE para que algum pesquisador tirasse dúvidas por telefone sobre as diferenças metodológicas e os fatores que levaram o estado a chegar a esses números. A instituição comunicou que não disponibilizaria nenhum pesquisador do levantamento para entrevista.

O instituto informou que “não trabalha com exposição de motivos” e que dados sobre o mercado de trabalho e o perfil etário, entre outros, “não estão no escopo da pesquisa que trata sobre Índice de Gini”. A assessoria enviou à reportagem uma nota por escrito da equipe técnica da PNAD Rendimentos que descreve alguns indicadores. A nota está disponível na íntegra aqui, mas a reportagem considerou que o texto não responde totalmente as dúvidas desta pauta.

Governador fez exposição a profissionais de imprensa com membros de sua gestão. Foto: Michel Alvim/Secom

Ainda que o governador tenha errado a posição de Mato Grosso, o número segue entre os melhores das 27 unidades federativas. No entanto, especialistas divergem na interpretação sobre o índice de Gini do estado. A reportagem questionou se o critério é suficiente para captar o real nível de desigualdade, ainda que o IBGE tenha dito que trata-se de um “indicador consagrado para acompanhar a evolução da desigualdade de renda”.

Para Mauro Rochlin, professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas, o índice de Gini é muito confiável e fidedigno ao medir como se apresenta o quadro de desigualdade de um território. No caso de Mato Grosso, o especialista considera que os dados do IBGE surpreendem, porque regiões agroexportadoras costumam apresentar índices de desigualdades muito grandes, com fartas oportunidades de trabalho a salários baixos.

“O estado está à frente de outros que têm polos industriais importantes, como Minas Gerais e Ceará. E o emprego urbano e industrial é mais bem remunerado que no setor agrícola”, destaca Rochlin. “Significa dizer que, pelo menos na aparência, o agronegócio está gerando melhores condições de trabalho em termos salariais. Prova disso é que o índice de Gini é um dos melhores do País.”

O especialista diz ainda que há limitações em “apontar casos isolados”, como o aumento na fila de ossos, apesar do forte impacto dessas notícias. O IBGE e outras instituições de porte semelhante trabalham com estatísticas que envolvem grande número de casos, salienta ele. Dessa forma, algumas observações mais “pessoais” podem não representar, necessariamente, uma realidade socioeconômica.

A única ressalva que o professor faz é que o índice de Mato Grosso só é positivo se comparado aos estados brasileiros. Como o Brasil é profundamente desigual em relação a outros países, o dado do estado, portanto, é ruim, sob uma perspectiva global. A depender da metodologia, o índice de Gini do Brasil é de 0,544 e 0,499, atrás de dezenas de países.

Já Carla Beni, também economista e professora da FGV, é mais crítica ao índice porque alguns fatores relevantes são deixados de lado, como o poder de compra que uma renda pode apresentar em partes de um mesmo território.

Além disso, a especialista diz observar com dificuldades que algum estado seja uma “pérola” em igualdade dentro de um país em que a desigualdade é um “descalabro”. No caso de Mato Grosso, ela vê como procedente apontar discrepância de realidades entre uma elite agrária exportadora e a população.

“Um índice isolado não é capaz de refletir uma problemática dessa intensidade”, avalia a professora.

Especialistas da UFMT ouvidos por CartaCapital vão ainda mais longe nas críticas à capacidade do índice de Gini em representar o real nível de desigualdade de Mato Grosso.

Benedito Dias Pereira, economista e professor aposentado, diz que a economia mato-grossense, baseada na exportação agrícola de bens primários, apresenta contradições históricas em seu processo de modernização. Uma delas é a presença de uma alta concentração fundiária, uma vez que a produção no estado é apoiada em latifúndios.

Isso quer dizer que o Mato Grosso tem um número reduzido de pessoas com renda maior, em comparação com a grande maioria dos demais habitantes. E são níveis de renda extremamente altos, diz Pereira, enquanto na outra ponta há um número expressivo de pessoas sem renda ou com renda muito baixa.

Questionado se o índice de Gini conseguiria ou não captar esse cenário, Pereira declarou que o dado “só contempla pessoas que auferem renda”.

Segundo o professor, dependendo do índice utilizado para medir a pobreza de um território, as pessoas sem renda podem ou não ser incluídas. Entre medições alternativas e melhores que o Gini, ele citou o Índice de Discrepância Máxima e o Índice de Theil.

“A fila dos ossinhos é reflexo direto da profunda desigualdade na economia de Mato Grosso, assim como o crescimento da pobreza. É um produto natural do neoliberalismo. Você tem um modelo em que poucas pessoas se apropriam do crescimento do PIB”, avalia Pereira, que há anos estuda a desigualdade na distribuição de renda no estado.

Painel Dados Abertos da Matriz de Informações Sociais mostra evolução da extrema pobreza em Mato Grosso.

MT tem mais de 190 mil famílias em extrema pobreza

De acordo com informações do Ministério da Cidadania, de maio deste ano, 641.968 famílias de Mato Grosso estão no Cadastro Únicobase de dados que serve para identificar as pessoas e famílias mais vulneráveis do País. A população total do estado é de cerca de 3,5 milhões de pessoas.

São 192.298 famílias registradas em situação de extrema pobreza. O número é 54% maior ao registrado em janeiro de 2020 e 36% mais alto em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Segundo o governo federal, estão na extrema pobreza as famílias com renda familiar mensal per capita de até 105 reais.

Outras 84.233 estão em situação de pobreza (renda mensal per capita entre 105 e 210 reais) e 163.626 em situação de baixa renda (renda mensal per capita de meio salário mínimo por pessoa).

O Mapa da Nova Pobreza, da FGV, mostrou em julho que mais de 20% da população de Mato Grosso vive em situação de pobreza, com renda domiciliar média de 497 reais por pessoa. Em 2019, o índice estava menor, em 16,1%. O percentual pode ser interpretado de forma comparativa: está abaixo da média nacional de 29,6%, e é o 6º menor entre os estados. Por outro lado, os especialistas apontam para o crescimento de um percentual expressivo dentro de um estado marcado por uma poderosa elite agrária que aumentou ganhos na pandemia.

Além da baixa renda, essa população ainda precisa conviver com a redução no seu poder de compra. O preço da cesta básica ultrapassou os 700 reais em julho na capital do estado, segundo a Fecomércio. No início do mês, a instituição notou aumento de preço em 53% dos alimentos. Os produtos com a maior variação foram o leite e a manteiga.

Enquanto isso, poucos proprietários rurais detêm boa parte das riquezas. Isso pode ser medido por dados que revelam a concentração de terras no estado. Em edição de revista científica publicada em 2019, as pesquisadoras Helene Lima da Costa e Onélia Carmem Rossetto, da UFMT, mostram que apenas 868 estabelecimentos rurais possuem uma área superior a 19 milhões de hectares. As estudiosas ressaltam no artigo que, em Mato Grosso, “a distribuição de terras é altamente concentrada, o que caracteriza altos níveis de desigualdade social”.

Segundo destaca o estudo,  desde 1985, a alta concentração de terras incorreu na diminuição de pessoas trabalhando no campo, devido a um aumento do uso de máquinas e equipamentos. Elas observaram, nesse processo, um descompasso com as políticas de acesso à educação e à formação tecnológica, o que teria formado “um conjunto de trabalhadores vulneráveis que se sujeitam a quaisquer condições de trabalho”.

Além do estudo, um relatório do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola mostrou, em 2020, que o Mato Grosso é um dos estados com maior desigualdade da distribuição da posse da terra. Também é um dos estados onde estão concentrados parte dos 15.686 maiores imóveis do Brasil que detêm 25% das terras agrícolas do território nacional.

Na conclusão do relatório, os autores afirmam que “o não enfrentamento da distribuição desigual da terra embasou
um ciclo de crescimento econômico da agricultura brasileira que ampliou a fome, a pobreza e a exclusão social”.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou fila da fome em Cuiabá para criticar Jair Bolsonaro (PL). Foto: Reprodução

Associação da fome ao agronegócio é inadequada, diz especialista

Apesar de ter citado um dado favorável ao seu governo, Mauro Mendes pecou ao dizer que os ossos distribuídos à fila da fome em Cuiabá eram de “qualidade”, na opinião de entrevistados ouvidos pela reportagem.

As declarações chamam atenção para a forma como representantes do agronegócio se posicionam publicamente em relação a questões sociais. Para muitos críticos aos ruralistas, o comportamento representa o desprezo desses líderes a essas pautas. Conforme o próprio deputado petista disse à reportagem, Mendes demonstrou que governa “para os muito ricos”. Porém, há quem acredite que algumas soluções de comunicação podem contribuir para que esses representantes respondam melhor a perguntas difíceis e não comprometam a imagem do setor.

No livro Ferramentas para o Futuro do Agro (Editora Gente, 2021), o engenheiro agrônomo Marcos Fava Neves, conhecido como “Doutor Agro”, listou os temas que são mais sensíveis ao agronegócio e que merecem atenção especial dos representantes do setor. Entre esses assuntos, estão a má distribuição dos lucros da atividade e a concentração fundiária no Brasil (posse e gestão de terras).

Para o engenheiro, um dos pontos cruciais é rebater associações feitas indevidamente ao agronegócio. No caso da fome, segundo ele, é necessário investir na explicação de que ela é gerada pela falta de renda, e que os produtores rurais, em vez de causadores, podem ser solucionadores do problema. A partir desse diagnóstico, é preciso expandir a produção do setor e, assim, aumentar a oferta e gerar mais oportunidades de emprego.

Neves classificou como “chocantes” as imagens da fila dos ossos em Cuiabá, mas disse que o problema é do estado e não pode cair na responsabilidade do setor privado. O que os produtores podem fazer é ampliar projetos de doações de alimentos, mas o professor defende como política pública o investimento em programas de renda.

“A fome não vem da produção e da exportação. Não há uma relação de uma coisa com a outra. O Brasil exporta porque tem produtos e competência, e as pessoas têm fome porque não têm renda. Você tem que aumentar a produção para derrubar o preço e dar renda às pessoas para que elas consigam comprar”, avaliou o professor da Universidade de São Paulo.

Ruralistas não têm pautas sociais no horizonte, diz pesquisadora

Autora do livro Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégia das Empresas para a Construção da Hegemonia (Editora Expressão Popular, 2018), Ana Manuela Chã salienta que os líderes do agronegócio já fazem uso de muitas estratégias de comunicação para melhorar a própria imagem.

É claro que, se comparados aos bancos, por exemplo, os ruralistas ainda acham que é preciso avançar. Mas, segundo o estudo, já existe uma diversidade de iniciativas do campo do agronegócio com esse objetivo, contando sempre com espaços generosos em grandes veículos de comunicação, colaborações de artistas famosos e mobilizações de importantes lideranças políticas.

Na imprensa, por exemplo, o veículo de comunicação ligado à atividade agrícola mais antigo data de 1887. Dados citados pela autora apontam a existência de 40 programas de rádio, 35 de televisão e 300 publicações de revistas e jornais de agronegócio. Grandes veículos estão associados a entidades do setor, como a TV Globo e o Canal Rural, empresas que integram a Associação Brasileira de Marketing Rural e Agro.

Já as aparições na indústria cultural foram se aprimorando com o surgimento da televisão. É o caso, por exemplo, da marca de adubos Manah, que já aparecia na década de 1960 como patrocinadora do programa Jovem Guarda, da TV Record. Depois que o Brasil passou por um forte êxodo rural na época da ditadura militar, a idealização sobre a vida no campo ganhou ainda mais projeção em novelas e programas de variedades.

Ela lista, ainda, uma série de projetos já levados adiante para divulgar mensagens positivas ao agronegócio. São registros de apoio a publicação de livros didáticos, patrocínios a escolas de samba, promoção de concursos artísticos, criação de museus e realização de feiras, festividades e premiações. E há iniciativas, também, para formar novas lideranças do agronegócio, já implementadas pela Sociedade Rural Brasileira e pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil.

Faltam, portanto, mais ações de comunicação para o agro melhorar a imagem social? O problema, para Chã, é outro. Segundo ela, as declarações do governador de Mato Grosso ajudam a refletir dois pontos.

O primeiro é que o campo empresarial do agronegócio tem mais facilidade do que o campo político em aplicar ações de comunicação que melhorem a imagem social do setor, tanto no sentido de modular discursos como de criar projetos. No campo político, há um “elemento ideológico” que permeia a atuação das lideranças. Dificilmente figuras do empresariado saem publicamente com um discurso contrário à reforma agrária. Os políticos, por sua vez, verbalizam mais a defesa do agronegócio e rechaçam movimentos e críticas que “ameaçam” esse projeto.

O segundo ponto é que, para ela, a postura de representantes do agronegócio, em diferentes momentos, vem de uma tradição de não colocar pautas sociais como prioridade. Essa falta de sensibilidade pode ser vista não somente na declaração do governador. Ela critica, também, o setor privado, que aumentou seus lucros e não se manifesta socialmente em defesa de políticas públicas contra o aumento da fome. Ela lembra quando pecuaristas se mobilizaram em protestos chamados de “Segundas Com Carne”, após a propaganda de um banco sugerir que a população consumisse menos carne. O mesmo engajamento não é visto quando, por exemplo, são divulgados índices de alta na fome e no desmatamento.

“Essas grandes lideranças do agronegócio fazem parte de uma tradição escravocrata e concentradora, em que pautas sociais não estão no horizonte”, analisa Chã, que é mestra em Desenvolvimento Territorial pela Universidade Estadual Paulista. “Além disso, há um esforço para evitar assumir contradições. O Mato Grosso, estado símbolo do agronegócio, não pode admitir publicamente que há uma situação de fome extrema. Então, todas as tentativas de minimizar essa questão têm que ser feitas pelos seus representantes, das empresas ou do poder público. É difícil que haja uma virada do setor em questões sociais, porque elas são conflitivas e expõem a contradição desse modelo”, conclui.

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