Política
Escola gentrificada
Sem políticas de permanência, o programa estadual de ensino integral tem excluído estudantes de baixa renda


A educação em tempo integral é um dos raros consensos no Brasil. Defendida por educadores como Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, tornou-se uma bandeira política de partidos de diferentes espectros ideológicos. Para governadores e prefeitos, a expansão das escolas com jornada estendida virou uma vistosa vitrine eleitoral. E não à toa: diversos estudos evidenciam os benefícios do modelo. Em São Paulo, o desempenho dos alunos do Ensino Médio melhorou 35% em Matemática e 26% em Português, segundo levantamento do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação e Economia Social, da USP, em colaboração com o Instituto Sonho Grande. Em Pernambuco, outra pesquisa da mesma universidade, em parceria com o Insper, mostrou que, nos municípios que adotaram o ensino integral, a taxa de homicídios entre jovens de 15 a 19 anos caiu pela metade.
A despeito dos inegáveis benefícios pedagógicos, a implantação do modelo sem políticas de permanência pode aprofundar desigualdades no sistema educacional. É o que vem ocorrendo em São Paulo, alertam pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (Repu). A expansão acelerada do Programa de Ensino Integral (PEI), que atualmente abrange 47% da rede estadual, tem provocado distorções significativas. Sem investir na construção de novas unidades, o governo Tarcísio de Freitas tem adotado o modelo em escolas já existentes, o que leva ao fechamento frequente de turmas noturnas e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Mesmo estudantes do turno da manhã, que precisam trabalhar ou cuidar de irmãos mais novos à tarde, acabam solicitando transferência. “Da forma como vem sendo implementado, o programa criou mecanismos de expulsão velada dos mais vulneráveis”, lamenta Eduardo Girotto, professor do Departamento de Geografia da USP e integrante da Repu. “De fato, o pobre não consegue permanecer, é induzido a sair. E as unidades regulares, que acolhem esse público, enfrentam sobrecarga e carência de recursos”, acrescenta o colega Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP. Para ele, o governo estadual está empenhado em criar “escolas-modelo”, com “gestão empresarial e metas”, mas também com um investimento por aluno significativamente maior. Ao cabo, o maior objetivo é produzir resultados que possam ser explorados no período eleitoral.
Os estudos da Repu apontam uma queda expressiva nas matrículas em unidades que adotaram o ensino integral entre 2020 e 2023. A oferta da EJA foi interrompida em 312 dessas escolas, provocando a perda de 84,5% dos estudantes com mais de 18 anos. Já as turmas noturnas foram extintas em 470 estabelecimentos, o que resultou na saída de 50,9% dos alunos. Dados do Censo Escolar de 2024, divulgados pelo Ministério da Educação em abril deste ano, indicam que o processo de gentrificação da rede paulista segue em curso: enquanto em outros estados a procura pelo ensino integral aumentou 12%, em São Paulo houve recuo de 2%. A própria Secretaria Estadual de Educação (Seduc) reconhece que o porcentual de escolas que aderiram ao programa (47%) é muito superior ao de matrículas (32%).
Um exemplo extremo é o da Escola Estadual São Paulo, uma das mais antigas do estado, localizada no bairro do Brás, na capital. Após a adoção do ensino integral, o número de matrículas despencou de 950 para 140. “Trata-se de um processo de gentrificação escolar, porque os mais vulneráveis estão sendo expulsos”, diz o pesquisador João Victor Pavesi de Oliveira, doutorando na USP e integrante da Repu. Um estudo aponta que 77,7% dessas unidades perderam alunos beneficiários do Bolsa Família, e 88% registraram queda na presença de estudantes negros.
De 2020 a 2023, ao menos 470 escolas fecharam turmas noturnas, revela pesquisa da Repu
Em 2016, o Tribunal de Contas do Estado já havia publicado um relatório para alertar sobre esse problema. O documento é categórico no que diz respeito à necessidade de adotar políticas de permanência para os estudantes mais pobres – caso contrário, o modelo poderia levar ao “aprofundamento das desigualdades existentes na rede pública de ensino”.
Apesar da recomendação do TCU, o governo estadual não criou políticas de permanência voltadas a esse público. Atualmente, a única iniciativa disponível é o Pé de Meia, programa federal que oferece 200 reais por mês a estudantes do Ensino Médio da rede pública, além de depositar mil reais ao fim de cada ano letivo em uma poupança que só pode ser acessada após a formatura. “É uma ação importante, mas o valor é insuficiente para quem precisa ajudar no sustento da família. O ideal seria que o estado complementasse esse apoio financeiro”, avalia Oliveira.
Várias comunidades escolares têm recusado a migração para o ensino integral. É o caso da Escola Estadual Brenno Rossi Maestro, em São Mateus, na Zona Leste paulistana. Manuely Gomes Rodrigues, de 16 anos, conta que a proposta foi rejeitada em duas votações com participação de estudantes, pais, professores e equipe técnica. “Depois disso, trocaram o diretor e fizeram uma manobra para mudar mesmo assim”, relata, indignada. Em 2024, ela estudou em uma escola com jornada estendida, mas não teve uma boa experiência. Havia bons professores, mas ela foi alvo de bullying e ataques xenofóbicos por ser recém-chegada do Recife e manter o sotaque nordestino. Agora, ela opõe-se à transformação da nova escola em unidade de tempo integral por outros motivos: “No Brenno, não tem estrutura adequada. Faltam professores de disciplinas básicas, a merenda é ruim, não tem laboratório de informática. Como vamos passar o dobro do tempo nessas condições?”
Na tentativa de corrigir essas distorções, o Conselho Nacional de Educação publicou, em agosto, as Diretrizes Operacionais Nacionais para a Educação em Tempo Integral. “O principal objetivo é evitar o aprofundamento das desigualdades nas redes de ensino”, diz a pesquisadora Julia Dietrich, que atuou como consultora do CNE e colaborou na elaboração do documento. Segundo ela, a proposta não pode limitar-se à ampliação da carga horária. “É preciso garantir uma formação que vá além do aspecto cognitivo, envolvendo também o desenvolvimento físico, cultural, social, político e emocional.” Dietrich compara: “Os filhos da elite têm acesso a Capoeira, Balé, Artes Marciais, atividades que não servem para aprender Matemática ou Português, mas para desenvolver outras habilidades. Os filhos dos trabalhadores também merecem esse tipo de educação”.
Em nota, a Seduc afirma que todos os estudantes que “comprovem vínculo empregatício” têm acesso ao ensino noturno, “independentemente da unidade escolar”. Quanto às políticas de permanência, informa que a Resolução nº 39, de 2023, tornou obrigatória a “busca ativa” de alunos após três faltas não justificadas. Não mencionou, porém, qualquer auxílio financeiro a quem precisa trabalhar para complementar a renda familiar. •
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escola gentrificada’
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