Política
Energia limpa?
Moradores queixam-se de danos sociais e ambientais causados por parques eólicos e solares. Eles existem, mas podem ser mitigados


Assim como Lula, que ainda criança deixou Garanhuns, no Agreste pernambucano, por falta de condições de sobrevivência e migrou para São Paulo em busca de uma vida melhor, a agricultora Roselma Melo se diz obrigada a abandonar Caetés, cidade desmembrada da terra natal do presidente, também em busca de melhor qualidade de vida. Nos anos 1950, Lula e sua família fugiam da seca e das condições precárias do Semiárido nordestino. Já Roselma, ao contrário, quer se livrar do progresso. Ou melhor, deseja distância de um progresso que trouxe para a região danos ambientais e sociais.
Há mais de dez anos, a comunidade Sobradinho, na área rural de Caetés, sofre com o impacto de um grande parque eólico, instalado muito próximo das residências, o que tem causado uma série de problemas para os moradores. As distâncias entre os aerogeradores e as casas não chegam a 200 metros. Além do barulho ininterrupto, a trepidação provocada pelo movimento das hélices racha as paredes e causa terror nos moradores, que dormem e acordam com medo de um acidente, como já aconteceu em 2021. À época, uma das torres explodiu e a turbina foi arremessada para longe. Por pouco, não acertou alguma edificação.
“Caiu em cima da vegetação, devastou tudo que tinha na frente. Na primeira explosão, a torre ficou balançando, mas não caiu. Depois, veio outra explosão e a hélice se partiu. Se aquela torre caísse, iria destruir tudo”, relembra Roselma, que desistiu de continuar na comunidade e negocia com a empresa responsável pelo parque eólico o arrendamento de sua propriedade. “Cheguei ao meu limite, não aguento mais. Se ficar lá, vou pirar, minha família toda ficou doente. Meu sogro passou a ter problema de pressão alta. Todo mundo aqui vive com ansiedade, depressão, insônia, problemas de audição. A maioria dos moradores tem alergia na pele, por causa do pó lançado pelas hélices. Muitos estão a ponto de perder a cabeça, fazer uma besteira, porque não aguentam mais.”
Apontados como estratégicos no plano nacional de transição energética, os parques eólicos – e também os solares – têm causado uma série de efeitos colaterais para as comunidades onde são instalados. Desmatamento, ruídos constantes, adoecimento da população e o desrespeito à identidade local são algumas das queixas de habitantes que vivem nas cercanias desses empreendimentos. A Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) reconhece problemas em alguns parques, mas assegura que eles são pontuais e as empresas estão aperfeiçoando a sua atuação, no sentido de mitigar os danos.
“Causar menos danos não significa a inexistência de impacto algum”, lembra a presidente da ABEEólica
“Há um processo de aprendizagem na implementação de parques eólicos. Os maiores surgiram há apenas 20 anos”, observa Elbia Gannoum, presidente da ABEEólica. “O fato de uma energia renovável causar menos danos não significa a inexistência de impacto algum. As queixas das comunidades nos ajudam a aprimorar os projetos.” De fato, comparativamente, as usinas termoelétricas costumam trazer mais prejuízos à população e ao ecossistema local, além de contribuir para o aumento das emissões de gases de efeito estufa.
A maior reclamação em relação à energia solar diz respeito ao desmatamento de grandes áreas e ao superaquecimento provocado pelas placas fotovoltaicas. “O sol chega nessas placas e aquece o território também. Se tem pessoas muito próximas, fica uma onda de calor muito grande, principalmente quando se soma à remoção da mata nativa”, salienta Renato Cunha, do Grupo Ambientalista da Bahia (Gamba). O problema é minimizado pela Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), a observar que as usinas cumprem todos os requisitos legais e são construídas em locais “com menor densidade demográfica e em terrenos já antropizados e de baixa produtividade, que normalmente não seriam aproveitados para outras atividades”.
Na Praia do Cumbe, no município cearense de Aracati, um parque eólico está instalado há quase 20 anos em meio às dunas, dentro de um território quilombola, que aguarda apenas a regulamentação pelo Incra. Além de se queixarem do não cumprimento do artigo 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a determinar que as comunidades tradicionais sejam ouvidas em ações relacionadas aos territórios, os moradores do Cumbe acusam a empresa de destruir parte das dunas para fazer terraplenagem e construção das vias de acesso ao parque e de extinguir sítios arqueológicos e pré-históricos.
“Perdemos parte do nosso território e o que mais revoltou foi a privatização da nossa praia. O Cumbe está entre manguezais e o campo de dunas. Você precisa subir as dunas para chegar na praia. O parque se instalou lá e tirou o nosso acesso. Só depois de cinco anos foi feito um Termo de Ajustamento de Conduta e a comunidade voltou a ter acesso à praia”, explica João Luiz do Nascimento, do Movimento Quilombola do Ceará e do Movimento de Pescadores Artesanais do Ceará. Segundo o líder quilombola, os fios subterrâneos dos aerogeradores representam risco de descarga elétrica, por isso a empresa limitou o acesso dos moradores às dunas. Ele reforça que o local é uma Área de Preservação Ambiental (APA) e, portanto, não deveria sofrer esse tipo de exploração. “A gente sabe que se trata de uma energia renovável, mas a forma como ela vem sendo implementada nos territórios tradicionais, à custa de muita violência e negação de direitos, ela não tem nada de limpa. Ela impacta como qualquer outra atividade econômica.”
Gannoum faz uma linha do tempo para explicar a evolução dos parques eólicos e cita a atual resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, que estabeleceu novas regras em 2014. Pela resolução, é necessário respeitar uma distância mínima de 400 metros dos aerogeradores para as residências e é proibida a instalação das torres em áreas de dunas. “Muitos parques foram feitos com base na norma anterior, em que, além de não existir um desenho regulatório, havia pouco conhecimento a respeito dos impactos. Antes de 2014, muitas configurações de parques que se faziam, hoje não se faz mais. Agora, os parques são projetados de maneira mais adequada.”
Avanços. As normas mais recentes já proíbem a instalação de aerogeradores em dunas e exige uma distância mínima de 400 metros das casas, diz Gannoum – Imagem: ABEEólica
No fim de janeiro, mais de 30 entidades da sociedade civil lançaram o documento Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, dentro do Plano Potência Nordeste, com propostas favoráveis à transição energética, mas com justiça social e respeito aos territórios. Dentre as sugestões estão normas que devem constar nos contratos de cessão de uso da terra por parte das empresas de energia renovável, regras para a emissão de outorgas e de licenciamento ambiental de geração e transmissão de energia, além de salvaguardas para políticas públicas, considerando a identidade dos territórios e a questão racial e de gênero. O documento está sendo entregue a todos os governadores do Nordeste, ao Ministério Público e ao governo federal.
Em 15 de março, cerca de 6 mil pessoas participaram da 15ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, no município de Areial, na Paraíba, também a protestar contra os danos causados pelos parques eólicos instalados na região. “É uma energia que deixa estragos. Além de problemas de saúde, tem toda uma violência contra as mulheres. Muitos homens que vêm trabalhar nas comunidades rurais acabam assediando as meninas. Tem até um fenômeno que chamamos de ‘filhos do vento’, fruto dessa violência”, explica Maria do Céu Silva, coordenadora do Polo Sindical e da Borborema, na Paraíba, referindo-se à gravidez precoce de adolescentes que se envolvem com esses trabalhadores.
Um dos cartões-postais da Bahia, a Chapada Diamantina também está sofrendo os efeitos dos megaempreendimentos. Por ser uma região de difícil acesso, cercada de serras, lagos e cavernas, é preciso abrir estradas e desmatar grandes áreas para levar os aerogeradores até o local. No Rio Grande do Norte, na Serra de Santana, o problema se repete. Com o transporte das torres eólicas, as famílias precisam conviver com a poeira 24 horas por dia, deixando como sequelas todo tipo de doença respiratória. Além disso, muitos parques são instalados sobre rochas, que precisam ser dinamitadas para fincar as torres. Segundo os moradores, as explosões racham casas e afugentam os animais. •
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Energia limpa?’
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