Política

Em audiência sobre o aborto, secretário da Saúde diz que o assunto não é questão de saúde pública

Câmara usou ainda o termo “feticídio”, que não está presente no código penal brasileiro e não consta no rol de crimes contra a vida 

secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara Medeiros Parente - Jane de Araújo/Agência Senado
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O Ministério da Saúde realizou, nesta terça-feira 28, uma audiência pública para discutir a questão do aborto no País. 

Na semana passada, o ministério divulgou uma cartilha que trazia dados distorcidos sobre a legislação brasileira sobre o assunto e afirmava que “todo aborto é crime”. A oitiva foi convocada para esclarecer normas técnicas adotadas pela pasta para os casos de interrupção por violência sexual. 

A reunião ocorrer depois que uma menina de 11 anos,  grávida foi impedida de fazer o procedimento sob a justificativa que o aborto só poderia acontecer até a 22ª semana de gestação, conforme suposta orientação do ministério. 

A lei brasileira, entretanto, autoriza a realização do procedimento em casos de violência sexual, risco para a mãe e anencefalia, sem estipulação de prazo gestacional ou necessidade de autorização judicial. 

Na abertura da audiência, o secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara deu o tom político da discussão. Afirmou, entre outras coisas, que  governo Bolsonaro foi o que mais fez ‘pela vida de mães e bebês’ e que outros governos inflavam dados para conseguir apoiadores à causa pró-aborto. 

Ele ainda declarou que não houve inovação quanto ao posicionamento da Saúde em relação com as orientações ao aborto previstas em outros governos.  “Foi copiado ipsis litteris do manual anterior”. 

Câmara ainda argumentou que o aborto no Brasil não é um grave problema de saúde pública, já que dados compilados pelo Ministério apontam que em 2019 houveram menos de 50 casos de mortes por aborto registrados. 

“O manual anterior [afirmava que] o abortamento representa um grave problema de saúde pública. A gente precisa discutir o que é um grave problema de saúde pública. Se você interpretar qualquer doença que provoca mortes como um grave problema de saúde pública, ok. Há milhares e milhares de doenças que entrariam nessa classificação”, afirmou.

No entanto, os dados apresentados não coincidem com aqueles apontados pela Organização Mundial da Saúde. Apesar da imprecisão dos dados no Brasil, um total de 73,3 milhões de abortos seguros e inseguros ocorreram no mundo anualmente entre 2015 e 2019 e na América Latina, três em cada quatro abortos são feitos de forma insegura.

O secretário também alegou que óbitos maternos por aborto não recaem mais sobre as mulheres negras “como a mídia adora dizer”. Contudo, ao mostrar os dados e alegar que apenas 9,4% dos casos de morte envolvem mulher “da raça preta”, o profissional ignorou os 64,8% de mulheres pardas vítimas do aborto, que compõem o recorte abordado. 

Câmara usou ainda o termo “feticídio” para se referir ao aborto, o que deveria significar homicídio fetal, porém o termo não está presente no código penal brasileiro, e não consta no rol de crimes contra a vida. 

Médicos e defensores públicos pediram revisão da cartilha

Após a defesa da cartilha do Ministério da Saúde feita por Câmara, um representante da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) afirmou que não participou da elaboração das diretrizes da Pasta e pediu a revisão do documento. 

“Queria propor que esse manual seja revisto, revisado, junto com a Febrasgo e outras entidades, antes que ele seja amplamente divulgado”, disse Osmar Ribeiro Colas, da comissão nacional especializada em violência sexual e abortos previstos em lei da entidade.

A representante do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais, Nálida Monte argumentou que a cartilha publicada pelo governo pode fragilizar o acesso de mulheres à saúde.

Para ela, a cartilha incentiva opção de entrega voluntária da criança em detrimento do aborto legal e coage profissionais de saúde e mulheres.

“Não se deve hierarquizar alternativas. Esse documento do Ministério da Saúde não cumpre sua finalidade de melhor orientar os profissionais de saúde e, embora não possua caráter normativo, pode limitar o acesso aos cuidados em saúde de mulheres e meninas em decorrência de sua imprecisão técnica e de sua inconsistência científica, gerando em mulheres, meninas e profissionais de saúde, medo, coerção e sensação de insegurança jurídica”, afirmou ela. 

“Se a redação atual for mantida, cotidianamente, vamos testemunhar meninas de 11 anos sem acesso à saúde como testemunhamos na última semana no Brasil”, concluiu. 

Ao final da sessão, Raphael Câmara afirmou que a Febrasgo será ouvida para uma reedição da cartilha e que outras contribuições apresentadas na audiência serão analisadas.

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