Política

Mesmo eleito e longe da polícia, Da Cunha não abandona o status de ‘delegado youtuber’

Para especialista, o parlamentar faz uso de ações do estado em prol de seu capital político; possível lucro com o canal também pode ir contra normas constitucionais

Créditos: Reprodução Youtube
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Desde janeiro deste ano, o ex-delegado Carlos Alberto da Cunha, o Da Cunha (PP-SP) foi um dos policiais que deixaram suas funções para buscar carreira na política em 2022 – foram 1.888, quase 30% a mais do que em 2018, segundo dados do TSE analisados pelos Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Eleito, é um dos 29 nomes do Congresso a utilizar o cargo na polícia associado ao nome de parlamentar. A conduta, embora controversa, não é proibida pelo regimento interno da Câmara dos Deputados.

Mas há uma excentricidade que acompanha o ‘delegado parlamentar’. Mesmo depois de empossado, ele não abandonou o seu canal no YouTube, que soma mais de 3,6 milhões de inscritos – a maior parte atraída pelas controversas filmagens de operações policiais . Agora, o que se tem, é uma mudança sutil.

Nos vídeos, ele conta também com a ajuda de seu assessor parlamentar

Mesmo fora da polícia, DaCunha continua divulgando semanalmente operações das polícias Civil, Militar, Rodoviária Federal, Federal e das guardas civis municipais. Agora, não participa ativamente delas. Atua como uma espécie de âncora, anunciando aos seus telespectadores detalhes das operações às quais irão assistir. ‘Pra cima deles’, brada a cada novo vídeo.

Nos vídeos, ele conta também com a ajuda de seu assessor parlamentar, Gabriel Yoshi, que também faz as vezes de apresentador e interage com as equipes policiais. Em um vídeo publicado no dia 26 de abril, intitulado ‘Entrando na casa bomba em uma área de risco’, Yoshi aparece em uma delegacia entrevistando um delegado sobre o resultado de uma ação policial ligada à seccional de Osasco.

O assessor parlamentar, Gabriel Yoshi, em interação com um delegado após operação da seccional de Osasco. Créditos: Reprodução

A reportagem de CartaCapital questionou a Secretaria de Segurança Pública paulista sobre a regra vigente para acompanhamento de operações policiais. Em nota, a pasta informou que “não há impedimento legal para que equipes de reportagem acompanhem, em veículos próprios, as ações policiais”.

Para Alan Fernandes, associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a justificativa não se aplica inteiramente ao caso de Da Cunha – justamente pelo fato dele ocupar um cargo político.

“Não é republicano um político ficar se valendo de ações do Estado, dando a ideia de que ele está ali à frente [das operações]. Acho que é um desserviço para a política.” Ele defende que o poder público proíba este tipo de manifestação. “Deveria ser banido, uma vez que que o parlamentar se vale dessa condição para o seu próprio capital político. O Comitê Ético do Parlamento deveria ser capaz de avaliar a situação”, completa.

Os conteúdos de Da Cunha são entrecortados por diversos anúncios no YouTube – o que, segundo as regras da plataforma, rende retorno financeiro aos criadores de conteúdo. Para Fernandes, o pagamento poderia configurar uso de recursos públicos para ganho provado.

“Aí, estaríamos falando de improbidade administrativa”, atesta.

Entre investigações e polêmicas

Nos vídeos, há um certo tom ‘pedagógico’. Da Cunha encoraja os telespectadores a responder perguntas sobre as operações. A missão do canal, segundo consta no próprio YouTube, seria “produzir conteúdo cultural para incentivar jovens a ingressar na honrosa carreira policial e se afastar do crime organizado”.

Em outubro de 2021, a Justiça de São Paulo arquivou, a pedido do Ministério Público, um inquérito que investigava Da Cunha pelo possível crime de peculato – já que o delegado utilizou estrutura da polícia para gravar vídeos veiculados em seu canal pessoal no YouTube.

A promotora do caso, Kátia Peixoto Villani Pinheiro Rodrigues, admitiu a gravidade dos fatos apurados, mas entendeu que não houve incorporação de bens públicos ao patrimônio do delegado ou de terceiros. Dessa forma, decidiu, não ficou caracterizado o crime de peculato.

Na mesma decisão, o juiz Fabio Pando de Matos determinou a continuidade das apurações sobre eventual delito de abuso de autoridade e de violação de sigilo funcional por parte do delegado.

À época, a decisão desagradou a integrantes da própria Secretaria da Segurança Pública, que consideraram a decisão como um precedente perigoso. De acordo com uma investigação do próprio Ministério Público e da Corregedoria, policiais civis que trabalhavam com Da Cunha afirmaram que o delegado simulava prisões de suspeitos apenas para gravar vídeos e divulgá-los na internet. Ainda de acordo com a corregedoria, o delegado faturou ao menos R$ 500 mil com o canal desde o início de 2020.

DaCunha chegou a reconhecer que houve uma simulação em uma ação policial na Favela do Nhocuné, na zona leste de São Paulo, em julho de 2020. No vídeo da abordagem, o delegado aparece invadindo um cativeiro e interrompendo um sequestro. Em depoimentos ao MP, a vítima e policiais envolvidos na operação sustentaram que o delegado decidiu devolver a vítima ao sequestrador para que a ação pudesse ser filmada, como se ele tivesse sido responsável pela prisão. Questionado, Da Cunha disse que sua intenção era fazer uma reprodução simulada dos fatos, como prova para o processo.

Um ano depois do caso, a Polícia Civil determinou o afastamento do delegado de suas atividades externas e sua transferência para funções burocráticas, além do recolhimento de suas armas e distintivos. A decisão também teve relação com a atuação de DaCunha na internet. O delegado postou uma foto em suas redes sociais, com uma pistola na mão, dando a entender que atuaria sozinho em uma operação na região da Cracolândia. Aparentemente, tudo também não passou de uma encenação.

Créditos: Reprodução Instagram

O texto da decisão menciona que a Operação São Paulo, mencionada por Cunha, ‘havia sido deflagrada aparentemente pela Guarda Civil Metropolitana, na região central da capital, sem a participação de outros policiais civis e sem aparente relação com investigação criminal em curso’.

Após o episódio, DaCunha solicitou licença em outubro de 2021, reassumindo o cargo de delegado em fevereiro de 2022. Em junho do mesmo ano, solicitou novo afastamento para concorrer a cargo eletivo e segue licenciado para cumprir o mandato de deputado.

Da Cunha é alvo de inquérito no STF

Em janeiro deste ano, um inquérito policial aberto para apurar suposto crime de abuso de autoridade cometido por DaCunha foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, dado o foro privilegiado do parlamentar.

No centro da investigação consta uma operação realizada pelo delegado, em março de 2021, em uma loja de peças automotivas na zona norte de São Paulo. Durante a ação, que investigava o suposto funcionamento de um desmanche no local, Da Cunha se referiu ao dono da loja como “ladrão”, “ladrão velho”, “velho desmancheiro” e “desmancheiro”.

À Polícia, o comerciante e seu filho disseram que não autorizaram a divulgação de suas imagens pelo canal do delegado e que o vídeo teria sido editado para ocultar o momento em que eles entregaram as notas fiscais das peças apreendidas. Os dois também teriam sido algemados sem necessidade.

A lei de abuso de autoridade prevê como crime ‘constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência’, submetê-lo a ‘situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei’ e ainda ‘divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado’.

O relator do caso no STF será o ministro André Mendonça.

A reportagem procurou o deputado Delegado Da Cunha, mas não obteve retorno até a publicação.

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