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Eleições 2022: O TSE depara-se com cascas de banana lançadas pelos militares

Os magistrados queriam proteger-se das ameaças golpistas, mas acabaram por superestimar o papel das Forças Armadas

Eleições 2022: O TSE depara-se com cascas de banana lançadas pelos militares
Eleições 2022: O TSE depara-se com cascas de banana lançadas pelos militares
Fachin e Moraes estarão à frente do processo eleitoral - Imagem: Antonio Augusto/TSE
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Jair Bolsonaro tem 1 milhão de seguidores no Telegram, rival do WhatsApp. Na rede social de origem russa, ele deita e rola numa reconhecida competência sua: mentir. Uma arma para a guerra (suja) de sua futura campanha à reeleição. Mas essa farra está com os dias contados. Após o Carnaval, o Telegram sofrerá um cerco. De um lado, os deputados votarão um projeto destinado a botar um mínimo de ordem na terra sem lei das chamadas plataformas digitais, com dispositivos para enquadrar a empresa. De outro, o Tribunal Superior Eleitoral e, possivelmente, o Supremo Tribunal Federal terão de se pronunciar em ações que questionam o modus operandi da firma, a começar pelo fato de ela não ter ninguém com plenos poderes no Brasil, só uns advogados que a defendem em casos de propriedade intelectual.

Achar uma solução para coibir a desinformação espalhada via Telegram é uma das missões do novo presidente da Corte eleitoral, Edson Fachin. Sua posse na terça-feira 22 não contou com Bolsonaro, que nem precisou do aplicativo de mensagens para mentir. Em um ofício ao TSE, o ex-capitão disse que não poderia comparecer por ter “compromissos pre-estabelecidos”. O último item de sua agenda naquele dia foi das 17 às 17h30, e o evento da Corte estava marcado para as 19 horas. Na véspera, Fachin havia se reunido com o embaixador alemão, Heiko Toms, para conversar sobre a experiência daquele país na lida com o Telegram. Invenção de dois irmãos russos, a rede social tem uma mesma prática onde quer que atue. Nada de escritório local. Sede só em ­Dubai. No início do ano, a Alemanha conseguiu forçar a empresa a cooperar e parar de disseminar teorias conspiratórias sobre Covid-19 e neonazismo, por exemplo, graças à ameaça de multas pesadas.

O Congresso e a Justiça preparam um cerco ao Telegram, plataforma na qual Bolsonaro dissemina fake news sem controle

Os partidos de oposição pedem formalmente ao TSE para proibir o ­Telegram e qualquer rede social desprovida de representante no País. “O WhatsApp tem empresa no Brasil, podemos responsabilizar politicamente e juridicamente o autor da fake news (nessa rede social). Mas nós temos uma empresa que não está sob a jurisdição brasileira, o Telegram, hoje um depósito de fake news. E o presidente é o maior emissor, o maior produtor de fake news no Brasil”, diz o deputado Paulo ­Teixeira, do PT. Os petistas também deverão cobrar do Supremo uma posição.

O antecessor de Fachin no comando do TSE, Luís Roberto Barroso, é a favor de banir o Telegram durante a campanha. Ele selou, em 15 de fevereiro, um acordo com plataformas (WhatsApp, YouTube, Twitter, Facebook etc.), com o objetivo de coibir mentiras e desinformação, pacto firmado também nas eleições municipais de 2020. O Telegram ficou de fora antes e agora por inexistir alguém que responda por ele no Brasil. Barroso havia enviado, em dezembro, uma correspondência para a sede em Dubai, a fim de negociar a inclusão da rede social no acordo, mas em vão. Dois números para ilustrar o perigo à vista: o WhatsApp permite grupos de envio de mensagens com até 256 destinatários e o Telegram, com até 200 mil.

Braga Netto não esconde as aspirações golpistas – Imagem: Fernando Frazão/ABR

No TSE, acredita-se que será mais fácil tomar providências contra a firma com uma Lei das Fake News. O projeto passou no Senado em 2020 e dormita na Câmara. A votação pelos deputados deve ocorrer logo após o Carnaval. O texto exige que uma rede social tenha representação no Brasil e autoriza multa de até 10% da receita, na hipótese de a Justiça entender que cabe punição. A proposta original, do senador Alessandro ­Vieira, do Cidadania, permitia suspender e até banir uma rede social, mas esses dispositivos foram derrubados no Senado. O relator na Câmara, Orlando Silva, do PCdoB, quer ressuscitá-los. Com tal arcabouço legal, seria possível agir contra o Telegram em duas direções: conter a disseminação maciça e paga de mentiras e permitir o direito de resposta aos atingidos. A propósito: o TSE acaba de destacar três juízes para cuidar de direito de resposta na futura campanha.

O Telegram é apenas um dos desafios de Fachin no tribunal. O juiz tem de administrar também uma espécie de sabotagem das Forças Armadas ao esforço para dissipar dúvidas sobre as urnas eletrônicas. E adivinhe, leitor, quem é o beneficiá­rio da trapaça fardada? O ex-capitão, claro. Não cabe ingenuidade: com mais de 6 mil milicos na máquina pública, o de Bolsonaro é um governo militar, em que pese o esforço de alguns coturnos em cargos vistosos para convencer a nação de que governo é uma coisa, quartel é outra. No dia em que Fachin assumiu o TSE, o presidente da República empossou o novo diretor-geral de Itaipu, o almirante Anatalício Risden Júnior, e louvou o ditador Emílio Médici (1969-1974), o mais violento do regime militar inaugurado pelo golpe de 1964. Golpe que o atual ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e seu antecessor, Fernando Azevedo e Silva, ambos generais da reserva, consideram um marco da democracia, digno de celebração.

Portella participou de mais uma presepada de Bolsonaro. O general de pijamas Azevedo e Silva declinou do convite do TSE que havia aceitado – Imagem: EPEx e Marcelo Camargo/ABR

O mineiro Braga Netto, de 65 anos, é candidatíssimo a ser vice na chapa de Bolsonaro, de quem foi contemporâneo na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, na década de 1970. Coube a ele escolher quem o Exército botaria em uma Comissão de Transparência das Eleições criada em setembro pelo TSE. Ao abrir espaço para um milico no grupo de 12 integrantes, a Corte queria que os quartéis fossem fiadores da lisura da eleição, antídoto contra o que Bolsonaro martela a respeito de fraudes nas urnas. O indicado de Braga Netto foi o general Heber Garcia Portella, chefe da área de Defesa Cibernética, repartição do Exército. Em dezembro, Portella enviara ao TSE 80 perguntas técnicas. Em 11 de fevereiro, em vídeo na web, Bolsonaro disse que as perguntas levantavam “dezenas de vulnerabilidades” nas urnas e que a Corte eleitoral não as respondera no prazo.

Quando da criação da comissão, estava acertado que tudo seria sigiloso, até haver um relatório final. Não é difícil imaginar o que aconteceu. A informação sobre o questionário saiu de Portella para Braga Netto, e deste para o chefe. O TSE resolveu, então, divulgar tudo, perguntas e respostas, a fim de mostrar que não havia vulnerabilidade. “Nós contamos com uma colaboração de boa-fé (das Forças Armadas) e a gente presume que vá ser uma colaboração de boa-fé, e não um exercício de inteligência para colher informações e nos atacarem”, declarou Barroso em 17 de fevereiro. “Estou presumindo que as Forças Armadas estão aqui para ajudar a democracia brasileira e não para municiar um presidente que quer atacá-la.”

Os ministros do TSE queriam proteger-se das ameaças golpistas, mas acabaram por superestimar o papel das Forças Armadas

Presunção ingênua. “As Forças Armadas em vários momentos do governo Bolsonaro fizeram ameaças golpistas explícitas”, afirma o professor de Filosofia Vladimir Safatle. Um exemplo tem o próprio Braga Netto em cena. Em julho de 2021, o Estadão noticiou que o general tinha feito chegar um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira: se não fosse aprovada uma lei do voto impresso, não haveria eleição em 2022. Era o que Bolsonaro repetia. Na época, os deputados debatiam a lei, enterrada em agosto. Braga Netto negou ter dado recados. Alguém acredita? Em 7 de julho, véspera do recado que nega, o ministro havia divulgado, com os chefes das três armas, uma nota pública ameaçadora contra a CPI da Covid, então a escarafunchar possíveis trambiques de militares com vacinas. “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano”, dizia a nota.

Um inquérito da Polícia Federal concluído em janeiro expôs o despudor presidencial no uso de dados reservados para tentar criar o fantasma da fraude eleitoral. A delegada Denisse Ribeiro incriminou Bolsonaro pela divulgação, em agosto de 2021, de um inquérito policial sigiloso que investiga um ataque hacker ao TSE em 2018. O ex-capitão não só o divulgou como distorceu seu teor, ao alegar que havia prova de que o TSE é vulnerável. Não havia, conforme depoimento do delegado do caso, Victor Campos, a Denisse. Felizmente para Bolsonaro, o procurador-geral da República é Augusto Aras. Este examinou o relatório da delegada e decidiu que não cabia processar o ex-capitão. Só Aras pode acusar na Justiça o presidente por crime comum. Outra boa notícia para o Pinóquio: a delegada Denisse, memória importante sobre as milícias digitais bolsonaristas, em razão dos inquéritos que comanda, saiu de licença-maternidade em 14 de fevereiro.

Este senhor dispensa comentários – Imagem: Fellipe Sampaio/STF

Em meio ao vazamento do questionário dirigido ao TSE, o general da reserva Azevedo e Silva, antecessor de Braga Netto no Ministério da Defesa, desistiu de ser diretor-geral da Corte. O cargo cuida, entre outras coisas, da Secretaria de Tecnologia da Informação, abastecida com 350 milhões de reais, do total de 2,4 bilhões que o tribunal tem neste ano. Azevedo e Silva fora nomeado em dezembro. Era outra tentativa da Corte de ter as Forças Armadas como fiadoras da eleição. Erro de premissa. “O general Azevedo foi um dos maiores responsáveis pela radicalização de um processo de politização das Forças Armadas e do militar em geral, quando, por exemplo, autorizou a nomeação de oficiais da ativa para cargos de natureza eminentemente política no atual governo”, afirma o coronel da reserva Marcelo Pimentel de Souza, autor de um ensaio sobre o “Partido Militar”.

Via auxiliares, Azevedo e Silva soprou na mídia que desistiu do cargo por razões particulares e de saúde. Não é difícil imaginar que tenha antevisto confusão no horizonte, dada a disposição de Bolsonaro para minar a confiança na eleição e do aparente apoio do atual ministro da Defesa de colocar os militares para respaldar a sabotagem. Nos Estados Unidos, os líderes do Estado-Maior condenaram publicamente a insurreição trumpista de janeiro de 2021 contra a formalização da vitória de Joe Biden no Congresso e rechaçaram as alegações de fraude lançadas por Donald Trump. Aqui no Brasil, nada parecido.

Fachin comandará o TSE até agosto, quando assumirá Alexandre de ­Moraes, atual vice-presidente da Corte. É ­Moraes quem estará no cargo na eleição propriamente dita, em outubro. É alguém que Bolsonaro já chamou de “canalha”. É alguém também que foi secretário por anos de Geraldo Alckmin no governo paulista. Alckmin, o favorito para ser vice na chapa de Lula. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O celular e o fuzil “

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