Política
Efeito Moro
Os esbirros da Lava Jato pautam o debate no STF sobre a adoção do juiz de garantias


Na quarta-feira 9, o Supremo Tribunal Federal retomou a votação a respeito da constitucionalidade do juiz de garantias. O mecanismo é adotado em praticamente toda a América Latina, exceto em Cuba e no Brasil, e também é prática comum na Europa. Aprovada em 2019 pelo Congresso, a lei estava engavetada no STF depois de o relator, Luiz Fux, pedir vistas para analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade da Associação Brasileira de Magistrados Brasileiros. O tema voltou à pauta a pedido da ministra Rosa Weber, presidente da Corte e prestes a se aposentar.
O juiz de garantias, dizem inúmeros especialistas, representaria um avanço no sistema jurídico brasileiro por proporcionar mais segurança ao cidadão, e, portanto, contribuir para a consolidação do Estado de Direito. A discussão ganhou amplitude depois dos esbirros da Operação Lava Jato e da atuação parcial e criminosa do então magistrado Sergio Moro, em conluio com o Ministério Público. O tema é, no entanto, controverso no meio jurídico. Fux, que manteve o assunto longe do plenário do STF enquanto pôde, deu voto contrário à adoção do mecanismo. A retomada da ação marcará a estreia oficial do ministro Cristiano Zanin. Espera-se que o novo integrante da Corte, por ter presenciado e sofrido com a parcialidade de Moro quando exercia a função de advogado de Lula, vote a favor do juiz de garantias. Em 2021, Zanin publicou um artigo em parceria com Graziella Ambrosio no qual defende o mecanismo baseado em argumentos psicanalíticos. O texto cita o fenômeno conhecido como “visão do túnel”, tendência produzida por “certos vieses cognitivos”. Ou seja, o juiz que coletou provas e trabalhou na fase de investigação do processo não deveria ser o mesmo a dar a sentença, por conta do risco de estar “contaminado” com a hipótese da acusação.
O juiz de garantias, conforme a lei, atuaria na primeira fase da persecução criminal, chamada de administrativa, relacionada ao inquérito policial. Nessa etapa são coletadas as provas, evidências, indícios e elementos fáticos, além da convocação de testemunhas. Cabe ao magistrado determinar a prisão temporária ou preventiva, a quebra de sigilo telefônico e eventuais buscas e apreensões. Na sequência, o Ministério Público decide se apresenta ou arquiva a denúncia. A partir desse ponto, inicia-se, se for o caso, a segunda fase e entra em cena o juiz de conhecimento, responsável por julgar o processo sem estar contaminado pelo trabalho anterior. Hoje, o mesmo magistrado que atua na primeira fase julga. Para o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, o juiz de garantias “impediria ou dificultaria o surgimento de ‘Sergios Moros’ da vida”. A demora em retomar a votação, diz Kakay, foi um “desrespeito absoluto do ministro Fux ao Congresso e causou um enorme prejuízo ao Judiciário”. “O juiz de garantias é, seguramente, o maior avanço do processo penal brasileiro dos últimos tempos”, acrescenta.
O sistema judicial brasileiro, diz Gisele Cittadino, é “herança da ditadura”
Titular da 1ª Vara Criminal de Nova Friburgo, Simone Nacif concorda que a lei é um avanço. Integrante da Associação Juízas e Juízes para a Democracia, a magistrada acredita que o juiz de garantias aprimora o sistema acusatório. “Ao ser depurada, a própria função judiciária se aperfeiçoa, se fortalece e confere mais legitimidade social às decisões.” Segundo ela, o sistema acusatório é uma conquista civilizatória, por se opor ao “sistema inquisitório”. “Herança lá da Santa Inquisição, introduzido no Brasil pelas Ordenações Filipinas, o processo inquisitório é aquele em que o juiz concentra a função de acusar e julgar e, muitas vezes, executar a própria sentença. O juiz de garantias vem para deixar claro que quem acusa não pode dar a sentença.” Ao ser dividido entre dois magistrados, acredita Nacif, o sistema ganha condições de produzir “provas mais saudáveis”.
Em 2023, o Brasil atingiu um novo recorde na população carcerária. O total de presos passa de 830 mil. Desses, 68,2% são negros e 43% têm entre 18 e 29 anos. Professora de Direito da PUC do Rio de Janeiro, Gisele Cittadino não titubeia ao afirmar que os dados seriam outros se o cidadão tivesse as garantias individuais asseguradas durante o processo. “Hoje, o réu, se pobre, negro e periférico, precisa provar que é inocente porque não existe presunção de inocência. Sem dúvida nenhuma, se existissem juízes de garantias, não teríamos chegado a essa população carcerária absurda.”
A professora, também integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, explica que, no País, diversos tribunais regionais implementaram arranjos parecidos ao juiz de garantias para separar as partes do processo. “Isso não é novidade, acontece em São Paulo e em mais seis outros estados, então existem exemplos funcionando muito bem, e há muito tempo poderiam ser usados para avançar.” Cittadino compara: na América Latina, o modelo é adotado há anos, pois a maioria dos países reformulou seus sistemas jurídicos após o fim das ditaduras dos anos 1960 a 1980. O Brasil é exceção. “Este nosso modelo, apesar de muito se discutir, é herança da ditadura.”
Um dos argumentos do ministro Fux ao votar contra a lei é de que o País não teria recursos para implementá-la. Balela, afirma Cittadino. “O juiz foi contratado para trabalhar, mas não por duas, três horas por dia. É para executar o trabalho dele, se vai ter mais atribuições, paciência, faz parte.” A professora acrescenta: “O sistema judiciário brasileiro nada em dinheiro”. Fux alegou ainda que em muitas comarcas existe apenas um juiz, o que dificultaria a implementação da legislação. “Nada impede que o magistrado de uma comarca dê a sentença do processo de outra comarca, e vice-versa”, ressalta Cittadino. “Nossos municípios são todos muito próximos uns dos outros e mais de 50% dos processos estão digitalizados. Não seria nenhuma dificuldade dividir o trabalho entre o juiz de garantias e o de conhecimento.” •
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Efeito Moro’
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