Política

Disputa pela CNBB tem guinada conservadora e combate a fake news

Entenda a guerra interna na Igreja Católica do Brasil, que escolherá novos comandantes em maio

Foto: Mazur
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Depois de muitos anos em disputa silenciosa, os campos conservador e progressista da Igreja Católica voltarão a se enfrentar na 57ª Assembleia-Geral da Conferência Nacional dos Bispos no Brasil, que vai acontecer em maio. Não são apenas questões espirituais em jogo. Também está em curso uma disputa pelo poder e que une organizações laicas e religiosas. Tudo bem material.

E são as reviravoltas políticas dentro e fora dos muros eclesiais que tornam esse conclave na CNBB tão importante.

Do ponto de vista político (afinal, a igreja romana é uma instituição milenar e está baseada em crenças e princípios rígidos que devem ser resguardados), a ala conservadora defende uma atuação interna, clericalista, baseada nas normas e centralizada na liturgia e na caridade. Já o campo reformista quer uma igreja que atue extramuros, crítica à desigualdade social e que lute efetivamente contra a pobreza, por meio das comunidades eclesiais de base e de organismos como a Comissão Pastoral da Terra, o Cáritas e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A CNBB foi fundada em 1952. Na mesma época, a cúria romana convocava o Concílio Vaticano II, que promoveu uma renovação espiritual inédita depois de duas guerras mundiais, do surgimento do nazifascismo e de décadas de diálogo com o pensamento de esquerda.

Essa mudança foi especialmente importante na América Latina, pois despertou em vários sacerdotes o desejo de atuar em favor dos pobres. Um deles era Dom Hélder Câmara, fundador da CNBB. O bispo se tornaria o grande defensor do enfrentamento do chamado “pecado estrutural”. Há uma frase atribuída a ele que resume essa ideia: “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão; se falo das causas da fome, me chamam de comunista”.

Aqui e no mundo, esse movimento perdeu força a partir dos anos 80. Ao longo do pontificado de João Paulo II, a cúria romana monitorou e afastou de funções importantes sacerdotes alinhados à teologia da libertação. Esse movimento persistiu com seu sucessor Joseph Ratzinger, o Bento XVI. Foi Ratzinger, então cardeal, que puniu entre outros o teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos formuladores da teoria.

A CNBB também se distanciou desse passado e, a partir de 2001, passou a ter um perfil mais discreto, atuando como um “sindicato” dos bispos. Nessa época, foi aprovado um estatuto que concentrou poder nos bispos e deu menos autonomia às entidades ligadas à conferência.

A guinada conservadora pós-Bolsonaro

Na visão de especialistas, a vitória de Jair Bolsonaro favorece uma guinada conservadora dentro da CNBB. Mas isso não significa um alinhamento automático, apenas nas pautas de interesse de certas alas da igreja romana. É o caso dos temas morais, como o aborto, a homoafetividade e a concepção de família.

“Em questões de ordem dogmática ou pastoral, como a redução da maioridade penal, a violência policial e a redução das políticas de combate à pobreza, as divergências vão continuar, avalia Iraneidson Santos Costa, pós-doutor pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, professor da UFBA e especialista em história da Igreja Católica e dos movimentos sociais. 

O conclave vai eleger o novo presidente, dois vices-presidente e um secretário-geral, além de representantes de várias organismos e pastorais ligadas à entidade. Teoricamente, todos os bispos são candidatos. Calcula-se que a CNBB tenha hoje pouco menos de um terço de “francisquistas” convictos e dois terços de moderados.

Ainda não há favoritos à vista, mas um generalizado temor de que a chefia vá para as mãos da corrente menos alinhada ao Papa. O núcleo duro conservador estaria unido em torno de uma chapa encabeçada por dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro que visitou Jair Bolsonaro durante as eleições. O bispo-auxiliar Dom Joel Portella estaria na secretaria-geral e Dom Darci José Nicioli, arcebispo de Diamantina, na vice-presidência.

O passe de Orani, no entanto, desvalorizou desde que ele foi citado por Sérgio Cabral como “interessado” em esquemas de propina envolvendo uma fundação católica que administra hospitais.

Uma outra combinação bastante comentada — e mais bem vista pelos setores pastorais da entidade — seria integrada pelo bispo gaúcho Jaime Spengler, tido como moderado e fiel ao Papa, e por Dom Joaquim Giovanni Mol, reitor da PUC-MG e cuja atuação é reconhecidamente progressista.

Outra preocupação é o futuro das entidades pastorais ligadas à CNBB. Caso uma chapa mais conservadora ganhasse hegemonia dentro da conferência, são grandes as chances de atividades pastorais serem paralisadas — os conservadores valorizam mais a caridade. “Seria péssimo. Nos restaria resistir dentro das pastorais ligadas a outros organismos”, disse uma liderança ouvida sob anonimato.

Mais uma vez, os moderados serão os fiéis da balança. Historicamente, esse bispos acabam apoiando os progressistas. Apesar dos temores, a esperança de um alinhamento mais moderado ainda é grande. E há quem pense que os descaminhos do governo Bolsonaro não deixem outra escolha à CNBB. Como dizia Dom Hélder Câmara, a “dona realidade” contribui muito para a profecia dentro da Igreja.

Francisco em xeque

O futuro da CNBB também é importantes para a continuidade do papado de Francisco. Afinal, estamos falando da maior Conferência Episcopal do mundo: são 480 bispos em todo o país, dos quais 307 formam o corpo ativo da CNBB. O País também lidera em número de fiéis, com 123 milhões de brasileiros identificados como católicos.

O jesuíta Francisco foi formado pela teologia do povo, uma vertente similar à Teologia da Libertação. Desde o início do papado, ele tem atuado para reaproximar a Igreja Católica dos mais pobres e vulneráveis, defendendo o chamado “Catolicismo do Século XXI”. Não é exagero dizer que é o grande estadista do nosso tempo e que, por isso, é visto com olhos atentos pela direita populista no mundo todo.

Na semana passada, o Guardian resgatou uma reunião na qual Steve Bannon teria aconselhado o ministro italiano Matteo Salvini a atacar Francisco, especialmente na questão da imigração. No Brasil, a realização do Sínodo da Amazônia causou arrepios nos generais que controlam a Abin. A Conferência não faz oposição frontal ao governo de Jair Bolsonaro, mas bispos-membros já se manifestaram publicamente contra a reforma da Previdência, a possível exploração de minério em terras indígenas e a violência policial. 

Pessoas ligadas à conferência avaliam que uma eventual vitória do campo conservador na CNBB poderia evitar que houvesse no Brasil um movimento parecido com o da Igreja Católica no Chile, que tem 158 membros investigados por pedofilia. O Papa Francisco tem procurado encarar o assunto de frente, numa postura diferente à dos papados anteriores, que buscavam proteger a igreja como instituição.

Como parte desse movimento de tolerância zero, Francisco realizou, em fevereiro, a primeira expulsão de um cardeal na história da Igreja devido a abusos sexuais — o americano Theodore McCarrick, arcebispo de Washington. Também aceitou a renúncia de cinco bispos chilenos, quatro deles acusados de encobrir abuso sexual de sacerdotes.

Em outubro passado, o Vaticano anunciou que o Brasil é um dos que vai sediar um projeto-piloto para acolher e dar voz às vítimas de pedofilia na igreja. A iniciativa está em andamento e está sob a responsabilidade da CNBB. Leigos que acompanham o processo acreditam, no entanto, que críticas internas e externas terminem por minguar o projeto.

Nas redes sociais, a ascensão do conservadorismo católico

Como ocorreu na política tradicional brasileira, as redes sociais se converteram em arena. Embora sempre tenha existido e atuado nos bastidores, é fato que a ala mais linha-dura da igreja nunca esteve tão à vontade sob os holofotes — ou melhor, os likes, shares e views. Duas figuras de sucesso nas redes sociais são vistas como propulsoras desse movimento : Olavo de Carvalho, o filósofo convertido em ideólogo do governo, e o Padre Paulo Ricardo, um sacerdote do Mato Grosso que teve um vídeo pró-armas compartilhado por Jair Bolsonaro.

No início do mês, o bispo auxiliar Dom José Francisco Falcão, do Ordinariado Militar do Brasil, foi processado por Caetano Veloso depois de dizer — durante uma missa pelo aniversário do golpe militar — que gostaria de dar veneno de rato ao “imbecil” que “nos anos 1970 cantou que é proibido proibir”.

Uma busca simples pelo termo CNBB no YouTube leva a várias “denúncias” que acusam a entidade de implantar o comunismo ou de levar o diabo para dentro da igreja. A boataria é tão intensa que, na semana passada, a CNBB inaugurou uma agência de checagens para desmentir boatos e fake news que pululam nas redes sociais. A mais recente é de que a instituição mudaria o missal romano para incluir termos ditos marxistas.

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