Política

Depois de manguezais, que outras “boiadas” Salles quer passar?

Organizações já estão cientes de que o Ministério passa um pente fino nos processos de criação de unidades de conservação

Depois de manguezais, que outras “boiadas” Salles quer passar?
Depois de manguezais, que outras “boiadas” Salles quer passar?
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Foto: Lula Marques
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Quatro meses depois de dizer que a pandemia de coronavírus era uma oportunidade para o governo “passar a boiada” de desregulamentações ambientais, a determinação do ministro do Meio Ambiente nesse sentido parece intacta. A última “boiada” que Ricardo Salles tentou passar foi o fim da resolução que estabelecia manguezais e restingas como áreas de preservação permanente.

 

A medida, decidida em uma reunião às pressas do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente) na última segunda-feira 28, acabou suspensa pela Justiça um dia depois. O ministro alegava que esses ecossistemas já estavam protegidos por outros mecanismos, como o Código Florestal.

“É fato que o Código Florestal fala de manguezal, entretanto, tem muitos problemas em relação a conceitos, sobre o que de fato é um manguezal e quais são os ecossistemas associados a ele. A resolução do Conama é muito mais restritiva”, explica a pesquisadora Rafaela Camargo Maia, que estuda os manguezais há mais de 20 anos e ensina gestão ambiental no Instituto Federal do Ceará. “E não tem nada especificamente sobre restingas. Restingas já estão totalmente ameaçadas e, sem a resolução, poderão estar com a ocupação permitida.”

Patrimônio ambiental brasileiro

Do Amapá a Santa Catarina, cerca de 90% da costa brasileira tem manguezais, que desempenham diversas funções como regulação do clima, local de reprodução e refúgio de diversas espécies e filtro biológico. Também são importantes para a subsistência de milhares de famílias, graças ao cultivo de ostras, caranguejos e  camarões.

A resolução do Conama estabelece que todo o manguezal deve ser protegido, incluindo uma área anterior, chamada apicum, essencial para o equilíbrio químico do ecossistema. Ao derrubar o instrumento, o ministério deixa caminho livre para projetos imobiliários ou o avanço da agricultura.

“Ocupando o apicum, muitas vezes em conformidade com a lei, o balanço químico de marés, de sal, não é feito adequadamente e a área de manguezal adjacente saliniza e morre. A quem interessa a gente permitir que essas áreas sejam ocupadas?”, frisa Maia. “Nas restingas, são grandes empreendimentos turísticos e imobiliários que querem se instalar próximo à praia.”

Futuras “boiadas”

A medida é representativa do projeto anunciado por Ricardo Salles naquela reunião em maio. Desde o começo da pandemia, tentou acabar com a Lei da Mata Atlântica, levou ao Congresso a chamada MP (Medida Provisória) da Grilagem e diminuiu a exigência de documentação para exportação de madeira nativa da Amazônia, entre outras medidas.

As organizações ambientalistas tentam antecipar as próximas “boiadas” que vêm pela frente. A curto prazo, por exemplo, se espera que o mesmo Conama flexibilize as metas de redução de emissões da indústria automobilística no Brasil. O governo também estuda meios de atenuar os compromissos assumidos no Acordo de Paris sobre o Clima, a chamada Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). Brasília poderia impor condicionantes econômicas para cumprir a sua parte.

“Eles vão tentar fragilizar o processo de licenciamento ambiental no Brasil. O que aconteceu no Conama é uma parte. Vão tentar mexer no Código Florestal – a base mais atrasada do agronegócio quer isso há muito tempo. Vão querer redefinir os limites da Amazônia, que hoje é só a Amazônia Legal, mas eles podem querer transformá-la em apenas bioma, retirar alguns Estados, como Maranhão, Mato Grosso e Tocantins”, destaca Márcio Astrini, diretor-executivo do Observatório do Clima.

As organizações já estão cientes de que o Ministério passa um pente fino nos processos de criação de unidades de conservação – e eventuais brechas podem ser usadas para contestar a validade jurídica delas.

“A primeira maneira de barrar é pelo Congresso, onde você evita que mudanças que você jamais vai conseguir reverter sejam realizadas. Se você acaba com unidades de conservação no Congresso, você nunca mais as refaz”, sublinha o diretor-execuvito do OC. “Essa é uma parte da estratégia. A outra, que é passar a boiada infralegal, é parar no Judiciário. Já entramos com três processos e temos mais dois que podemos iniciar logo, além de uns 10 que estamos estudando abrir.”

Cálculo político de Bolsonaro

Outro temor é o de que recursos originalmente previstos para a pasta ambiental, como os do Programa Floresta Mais e o Fundo Clima, possam acabar desvirtuados para atender interesses políticos do governo de Jair Bolsonaro, em meio às eleições municipais. Astrini avalia que o desmonte da política ambiental no Brasil responde ao objetivo do presidente de agradar a sua base eleitoral, de olho na reeleição em 2022.

“No cálculo político e eleitoral de Bolsonaro, é muito importante que a agenda antiambiental sofra um processo de desregulamentação. Os grandes apoiadores e formadores de opinião da região amazônica, grandes empresários, uma parcela atrasada agronegócio e uma boa parte da bancada ruralista no Congresso apoiam essa agenda do Bolsonaro”, relembra Astrini.

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