Educação
Demanda urgente
Entidades cobram celeridade do governo Lula na elaboração da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância


Há mais de um ano, Janiele da Silva busca uma vaga na creche para a pequena Emanuele, de 2 anos. Até agora não conseguiu. Restou à moradora de Osasco, na região metropolitana de São Paulo, a alternativa de pagar uma escolinha particular para deixar a filha enquanto trabalha. Para isso, precisa desembolsar todo mês 700 reais, referente a um turno na escola, quantia que faz falta no orçamento familiar. “Dois meses atrás, fui lá novamente e pediram para continuar aguardando. Tive que pagar, mesmo sem poder. Se não for assim, não posso trabalhar, porque não tem ninguém para cuidar da minha filha”, lamenta Silva, que trabalha como babá. A realidade de Emanuele é a mesma de mais de 630 mil crianças que estão na fila de espera de creches públicas e de outras 78 mil que estão fora da pré-escola, metade delas por falta de vaga. Os dados constam no Levantamento Nacional: Retrato da Educação Infantil no Brasil, divulgado no fim de agosto.
O documento mostra que o Estado brasileiro viola a Constituição Federal de 1988, a destacar a educação na primeira infância como prioridade absoluta. “É dever do Estado priorizar a locação dos recursos e políticas públicas para alcançar esses sujeitos de direito. Além da Constituição, tem o Marco Legal da Primeira Infância, uma lei de 2016 que também aponta a educação infantil como um dos pilares para redução das desigualdades”, lembra Alessandra Gotti, coordenadora do Gaepe–Brasil, governança coordenada pelo Instituto Articule, entidade responsável pelo levantamento, realizado em parceria com o Ministério da Educação. Gotti ressalta a gravidade da falta de vagas nas creches e nas unidades da pré-escola e defende que, das crianças que estão na fila de espera, sejam priorizadas as que estão em situação de maior vulnerabilidade. “É preciso fazer uma reflexão nacional sobre a importância de priorizar quem mais precisa e criar condições para que os municípios possam expandir a rede de atendimento.”
Dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros, 44% têm fila de espera para uma vaga em creche e as regiões mais afetadas são Norte e Nordeste, historicamente mais pobres. Na faixa etária da pré-escola, o porcentual de cidades com crianças que não estão matriculadas é de 8%, sendo o maior déficit no Nordeste. “A gente precisa avançar o diagnóstico e entender o contexto de cada região, etapas necessárias para um planejamento e expansão das redes. Os municípios necessitam do apoio dos governos estaduais e federal para se ter um consenso nacional sobre a importância de priorizar nossas crianças”, dispara Gotti. No final de junho, o presidente Lula acatou a recomendação do Grupo de Trabalho Primeira Infância do Conselho de Desenvolvimento Econômico, Social e Sustentável, coordenado por Priscila Cruz, do Todos pela Educação, e assinou um decreto que cria a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância. A partir do ato, o governo federal tem 120 dias para instalar o grupo de trabalho que vai encaminhar a demanda, mas, até agora, não houve avanço algum.
Relatório aponta falta de vagas em creches para 630 mil crianças e na pré-escola para outras 78 mil
“A gente fez um estudo para olhar as políticas de todos os ministérios que, de alguma forma, tocam a primeira infância. São mais de 40 ações com intensidades diversas, tanto para as crianças quanto para as famílias. O salto que a gente precisaria dar, agora, é a integração dessas políticas para fazer com que elas cheguem, de fato, para cada uma das crianças brasileiras, especialmente naquelas que mais precisam. Essa integração é a chave porque se não tiver uma articulação essas políticas vão ficando no caminho”, ressalta Cruz. “O Brasil tem um governo progressista que olha para as questões sociais e a primeira infância é o berço da desigualdade. Temos uma legislação avançada, não faltam políticas públicas para essa parcela da população. Então, se a gente une esses elementos, o Brasil pode tornar-se uma referência para o mundo. É uma questão de maturidade civilizatória. Da mesma forma que o Bolsa Família virou uma referência global em distribuição de renda, a próxima geração de política de combate à desigualdade deveria ser investimento na primeira infância. Essa será a justiça social mais duradoura, vai perdurar por gerações.”
Beatriz Abuchaim, gerente de políticas públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, entidade que também participou do levantamento sobre as filas de espera em creches e pré-escolas, destaca o abismo social entre a criança que tem acesso a direitos ainda na primeira infância e as que não têm. “Uma educação infantil de qualidade tem o poder de promover um desenvolvimento integral e saudável da criança e a vaga na creche faz muita diferença na vida das famílias, possibilitando que a mulher estude e trabalhe, sabendo que o seu bebê está sendo cuidado, tem uma alimentação apropriada e está recebendo estímulos adequados para o desenvolvimento. Se a mãe que está numa situação de vulnerabilidade, não tem com quem deixar o filho pequeno, isso reforça ainda mais o lugar de exclusão social dessa família”, observa, acrescentando que cerca de 6% das crianças brasileiras também está fora da pré-escola. “São, em sua maioria, crianças pobres, cujas mães são mais jovens, têm menor escolaridade, estão desempregadas…”
Embora não seja de frequência obrigatória, a creche é um direito e o Poder Público tem a responsabilidade de ofertar vaga a todas as famílias que procurarem o serviço, conforme estabelecido pela Constituição Federal e decidido pelo Supremo Tribunal Federal em 2022. No caso da pré-escola, a frequência é obrigatória para crianças de 4 e 5 anos ou que tenham 6 anos completados após 31 de março. Nesse caso, o Poder Público é responsável por garantir o serviço e os pais são obrigados a matricular os filhos. •
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Demanda urgente’
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