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Debate viciado

Os parlamentares estão prestes a consagrar na Constituição o maior defeito da atual Lei de Drogas

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Racismo. Pobres e negros vão para a cadeia mesmo quando são flagrados com porções ínfimas de narcóticos – Imagem: Arquivo/CNJ e Stacie DaPonte
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Em 2019, um vendedor ambulante de frutas em Aracaju foi preso em flagrante com 22,9 gramas de maconha. A quantidade equivalente a um bombom foi suficiente para o jovem negro, à época com 24 anos, permanecer encarcerado por três anos, acusado de tráfico de drogas. Passado esse período, um ministro do Superior Tribunal de Justiça analisou uma apelação da defesa e decidiu alterar a tipificação penal. Em vez de enquadrá-lo por tráfico, crime previsto no artigo 33 da Lei de Drogas, com pena de cinco a 15 anos de reclusão, entendeu que o réu incorreu apenas no crime de posse de entorpecente para consumo pessoal, previsto no artigo 28 e punido com medidas alternativas à prisão, como advertência, prestação de serviços à comunidade e obrigatoriedade de comparecer a um curso educativo.

Casos como esse, lamentavelmente, são corriqueiros, dizem numerosos especialistas consultados por ­CartaCapital. Pessoas detidas com a mesma quantidade de drogas podem ter destinos radicalmente distintos, a depender da avaliação subjetiva de delegados, promotores e juízes. Por uma dessas incríveis coincidências que se repetem à exaustão em um país marcado por mais de três séculos de escravidão, pessoas negras, pobres e periféricas costumam ser processadas por tráfico mesmo quando flagradas com porções ínfimas de narcóticos. Já cidadãos brancos, que vivem em bairros abastados ou de classe média, quase sempre são considerados consumidores. Quando o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento sobre a descriminalização da posse de maconha para consumo pessoal, esperava-se que a Corte não apenas extinguisse as penas impostas a quem fazia uso da erva, mas também criasse um critério objetivo para distinguir traficantes de usuários. A reação conservadora no Congresso pode, porém, colocar tudo a perder.

Sem critérios para distinguir usuários de traficantes, a tendência é agravar o encarceramento em massa no País

Apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a PEC das Drogas foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e começou a ser debatida no plenário da Casa Legislativa na terça-feira 19. Na contramão do que está em discussão na Suprema Corte, a proposta criminaliza a posse de entorpecentes em qualquer quantidade. O texto acrescenta que deve ser “observada a distinção entre o traficante e o usuário pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”. Na prática, a mudança em relação à atual legislação é mínima. Quem for considerado traficante continuará sendo preso, o consumidor permanecerá sujeito a sanções em liberdade. A diferenciação entre um e outro segue sob a avaliação subjetiva das autoridades. Mas, ao incluir tal dispositivo na redação da Constituição Federal, os senadores só reforçam a atuação discricionária dos agentes da lei.

“O Senado está vendendo esse projeto para a população como uma solução para o combate ao narcotráfico, mas não é isso que vai acontecer. A PEC limita-se a reiterar que o porte de entorpecentes para consumo pessoal é crime”, observa Fabiano Contarato, um dos quatro senadores que votaram contra o retrocesso na CCJ. Na prática, acrescenta o parlamentar, a mudança tende a inflar ainda mais as penitenciárias do Brasil, que possui a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA e China. Dos 832 mil presos no fim de 2022, mais de dois terços (68%) eram negros, atesta o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho do ano passado. “Ao pautar o debate dessa forma, o Senado perdeu a oportunidade de discutir o assunto de forma responsável, estabelecendo critérios de natureza objetiva para distinguir traficantes de usuários.”

Cortina de fumaça. A PEC é inócua no combate ao narcotráfico, apenas criminaliza os usuários de drogas – Imagem: Jonas Pereira/Ag. Senado

Delegado da Polícia Civil do Espírito Santo por 27 anos, Contarato diz não ter dúvida de que a falta desses critérios claros de diferenciação contribui para o encarceramento em massa da população negra e também “é fruto do racismo estrutural existente no Brasil”. Caso a PEC seja aprovada pelo Congresso, o senador petista não descarta a possibilidade de a emenda ser declarada inconstitucional pelo STF, por alterar um artigo da Carta Magna que trata de direitos e garantias fundamentais dos ­indivíduos. “E isso não seria ‘ativismo do Supremo’, como muitos gostam de dizer, porque esse controle de constitucionalidade passa pelo Poder Judiciário.”

Além de consagrar na Constituição um dos maiores vícios da atual legislação de drogas, a PEC agrava o estigma social dos dependentes químicos, afastando-os de uma série de políticas públicas que poderiam reabilitá-los, observa a advogada Carolina Diniz, coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da ONG Conectas. “Por temor de enfrentar processos criminais e sofrer condenações, eles podem ficar ainda mais refratários a procurar assistência médica, programas de redução de danos e outros serviços”, alerta. “É uma má técnica legislativa, que tende a reforçar a abordagem repressiva das instituições de segurança pública, além de contribuir para a consolidação do racismo estrutural que nós já enfrentamos.”

Na avaliação de Janine Salles de Carvalho, secretária-executiva da Rede Justiça Criminal, o debate no Supremo busca aperfeiçoar a Lei de Drogas. “Ao pautar esse tema tão delicado, em ano eleitoral e a toque de caixa, o Legislativo parece empenhado em anular o mínimo de avanço proposto pelo STF e fazer a lei retroagir como era no período da ditadura, quando usuários e traficantes eram tratados da mesma forma, sem distinção alguma”, diz. A especialista ressalta ainda que, caso a proposta avance, o Brasil estará na contramão do movimento mundial de revisão da fracassada política de ­Guerra às Drogas. “Quando a nova Lei de Drogas foi aprovada, em 2006, vivíamos um contexto de reconhecimento da importância de tratar o usuário sob a perspectiva da saúde pública, e não criminal. Isso estava acontecendo em diversos paí­ses ao mesmo tempo, como ­Canadá e Uruguai. O Brasil seguiu essa onda”, ­observa, acrescentando que os legisladores só falharam em deixar a diferenciação de uns e outros sob a análise subjetiva dos agentes da lei. “Hoje, o contexto é muito diferente. A atual composição do ­Senado é extremamente conservadora, não reconhece a esfera terapêutica da lei.”

Aviso. Os senadores estão vendendo gato por lebre, alerta Fabiano Contarato – Imagem: Alessandro Dantas/PT no Senado

Embora a atual legislação aplique penas diferentes para usuários e traficantes, existe um “vazio” que dá margem para decisões arbitrárias, afirma Carvalho. “Muitas vezes, o policial responsável pela prisão em flagrante é quem decide a tipificação penal.” O relatório Suspeita Fundada na Cor, elaborado com base em uma pesquisa do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV, confirma a percepção da especialista. Segundo o estudo, que analisou 1.837 decisões de segunda instância em sete estados brasileiros, 69% das testemunhas em processos por tráfico de drogas são policiais.

A socióloga Nathalia Oliveira, cofundadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas vê a discussão no Senado como uma “queda de braço com o STF” desnecessária. “Claramente, os senadores estão jogando uma cortina de fumaça na pauta que realmente importa, que é o avanço da descriminalização da maconha.” O debate no STF começou há oito anos, e só foi retomado no ano passado pela ex-ministra Rosa Weber. Em 6 de março, ele voltou a ser suspenso, devido a um pedido de vista do ministro Dias Toffoli, que tem 90 dias para devolver o processo ao plenário da Corte. Entre as possibilidades aventadas pelos magistrados figura a ideia de considerar usuário quem portar até 60 gramas de maconha.

Para ser aprovada, uma Proposta de Emenda Constitucional precisa ter os votos favoráveis de três quintos dos parlamentares, em dois turnos de votação, nas duas Casas Legislativas. Ou seja, a redação ainda pode sofrer modificações nos plenários do Senado e da Câmara, antes de seguir para a sanção presidencial. Lula pode exercer o seu poder de veto, mas as organizações da sociedade civil envolvidas nesse debate temem que o líder petista não comprará briga com sua frágil base de apoio, também composta de grupos reacionários. “Nós, da Iniciativa Negra, em parceria com outras entidades e movimentos sociais, estamos fazendo um trabalho de corpo a corpo em Brasília, apelando para os senadores e deputados debaterem essa questão com responsabilidade e serenidade”, diz Oliveira. “Não há motivo para tanto açodamento. O ideal, em um tema complexo como esse, é ampliar o debate com a sociedade e decidir de forma mais democrática.” •

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Debate viciado’

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