Política

De fake news a Black Mirror? Especialistas criticam PL contra desinformação

Para advogados e entidades, Lei das Fake News restringe liberdades individuais e pode dar margem a censura e violação de privacidade

Por serem disparadas por robôs, as fake news se difundem muito mais rápido do que as verdadeiras notícias e, na sequência, atingem um público maior
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A chegada de uma doença desconhecida, altamente contagiosa que mantém boa parte da população confinada sob ordens do governo criou a tempestade perfeita para mentiras e teorias da conspiração. A Organização Mundial da Saúde até usou um termo para explicar esse turbilhão: infodemia, uma superabundância de informações (algumas corretas, outras não) que dificulta a busca por fontes sérias e orientações confiáveis. E é diante desses temores que Congresso brasileiro tem apresentado propostas de combate à desinformação nas redes sociais. 

O Senado deve votar em breve o PL2630/2020, apelidado de Lei das Fake News, que regula responsabilidade e transparência na internet. Mas não bastam boas intenções. Embora a crise do coronavírus torne a questão das fake news bem menos ambígua, o projeto seguirá por muitos anos adiante quando a pandemia passar. Na visão de especialistas em governança digital, o texto restringe liberdades individuais e pode dar margem à censura e à violação de privacidade. 

A proposta original é do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e dos deputados Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES). Mas o relator do projeto, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), apresentou um substitutivo ainda mais duro. Com mais de 50 artigos, o novo texto ganhou o apelido de “PL Black Mirror”, referência à série que projeta um futuro digital sombrio. “A lei tenta resolver todos os problemas, mas cria outros dez vezes piores. Sequer debatemos em detalhes cada redação, votar isso é um descalabro”, critica Francisco Brito Cruz, doutor em direito pela USP e diretor do InternetLab. Organizações de governança digital, a Agência Brasileira de Jornalismo Investigativo e agências de checagem pediram mais tempo para analisar o assunto. Diante das críticas, Vieira pediu a retirada da pauta, mas reiterou a “urgência” da votação. O presidente Davi Alcolumbre acatou.

O trecho mais emblemático estabelece um sistema de pontuação que deve acompanhar as postagens dos usuários. Esse score leva em conta coisas como: manifestações dos demais usuários, o histórico de conteúdos publicados e reclamações. Também impõe a exigência de RG e CPF para a criação de perfis nas redes sociais. Não é garantia contra fraudes. Brito cita o caso do filho do apresentador William Bonner, cujos dados foram utilizados para receber a renda básica emergencial de 600 reais. “Não traz segurança nenhuma, apenas trata usuários como criminosos em potencial.”

Mesmo o projeto inicial não estava maduro para ser votado. “Os esforços contra as fake news são louváveis, mas esse PL vem cheio de problemas, não houve debate”, avalia Giovanna Michelato, advogada e membro do capítulo brasileiro da Internet Society, organização criada em 1992 que definiu os padrões de governança da rede. As discussões sobre o Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, começaram cinco anos antes, em 2019, e tiveram ampla participação de especialistas. “Antes do marco, era muito fácil os provedores derrubarem conteúdo sem maiores justificativas”, explica. O ponto chave, segundo ela, é a responsabilização dos intermediários, divididos em dois grupos: os provedores de conexão (por exemplo, empresas de telecomunicação) e de aplicação (plataformas pelas quais o usuário navega na internet, como o Google, sites e as redes sociais). 

O marco definiu que os sites e redes sociais não responsáveis pelas ações de terceiros – isto é, sobre o que um usuário publica em suas plataformas, embora possam definir regras contra certos tipos de comportamento online (ex.: disseminação de pornografia e violação a direitos autorais). Fora deste escopo, o conteúdo só sai do ar a partir de decisão judicial. Pelo novo projeto, bastaria entrar na justiça. A partir daí, as plataformas teriam até dois dias para tirar o conteúdo do ar caso não queiram assumir a responsabilidade por aquela publicação. Um mecanismo muito poderoso, que daria margem a uma chuva de processos por parte de políticos e outras figurões. Além disso, o texto traz inúmeras hipóteses que podem levar ao bloqueio dos provedores e plataformas.

A punição ao usuários também é alvo de questionamento. Conforme estabelece o artigo 47, quem “compartilhar ou replicar” o conteúdo “após comprovada a inadequação”, estará sujeito a pena de três a seis anos e multa.Poderiam ser presas, portanto, pessoas que não necessariamente sabiam que o conteúdo que compartilharam era falso. No caso das mensagens privadas, como as do WhatsApp, a questão é ainda mais grave. “Esse tipo de conversa é criptografada de ponta a ponta, não tem como o Facebook dizer que é falso. Além disso, o artigo 5º da Constituição garante o sigilo das comunicações”, pontua Michelato.

Sem delimitar o que é “desinformação” ou “conteúdo manipulado”, a lei enquadra esses termos em organização criminosa e lavagem de dinheiro, abrindo enorme espaço de criminalização de ativistas, movimentos sociais e jornalistas. O fenômeno da desinformação é complexo e muito anterior à invenção da internet. É preciso cautela.

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