Justiça

Da inação ao cinismo: governo federal admite paralisia proposital dos processos de reforma agrária

O Incra afirmou ao TRF da 3ª Região ter recebido ordem “explícita para a não realização de novas vistorias e paralisação” de processos

Longa espera. Cerca de 80 mil famílias aguardam à beira da estrada ou em áreas ocupadas para ter acesso à terra. Mas o governo joga contra, lamenta Stédile. (FOTO: André Borges/Agif/AFP e Andressa Anholete/AFP)
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Desde a campanha de 2018, Jair Bolsonaro elegeu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como um de seus inimigos prioritários. Nos palanques, prometia que, uma vez eleito, iria tratá-lo como uma “organização terrorista”. Uma vez instalado no Palácio do Planalto, o ex-capitão fez de tudo para sufocar a política de reforma agrária no País. Transferiu os processos de desapropriação e regularização fundiária para o Ministério da Agricultura, historicamente ligado aos grandes players do agronegócio. Para o cargo de secretário especial de Assuntos Fundiários, nomeou o pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista, entidade criada no início dos anos de 1980 exclusivamente para contrapor ao MST e defender a “preservação do direito de propriedade”. No Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, acomodou o economista Geraldo de Mello Filho, pecuarista e ex-superintendente da Confederação Nacional da Agricultura.

 

Daí por diante, o que restou foram os capítulos da tragédia anunciada. “Os governos Temer e Bolsonaro não só paralisaram os processos, como adotaram políticas públicas contra a reforma agrária. As famílias assentadas nos últimos anos são resquícios de decretos do governo de Dilma Rousseff ou substituições de famílias que saíram de assentamentos já existentes”, afirma o economista João Pedro Stédile, da direção nacional do MST. Em 2011, conforme documento encaminhado pelo Incra ao Supremo Tribunal Federal, o orçamento para aquisição de terras destinadas à reforma agrária era de 1,6 bilhão de reais. Passados dez anos, o montante não passa de 12,2 milhões, menos de 1% do valor original. Os retrocessos se estendem aos povos indígenas e comunidades quilombolas. “Eles vivem em territórios localizados em fronteiras agrícolas, o que interessa ao agronegócio para expandir suas áreas”, observa Stédile.­ O orçamento para o reconhecimento e indenização de territórios quilombolas era de 48 milhões de reais em 2013. Para este ano, foram reservados míseros 330 mil. Bolsonaro cumpriu ainda outra promessa de campanha: desde que assumiu, nenhuma terra indígena foi identificada, declarada ou homologada.

O Incra afirmou ao TRF da 3ª Região ter recebido ordem “explícita para a não realização de novas vistorias e paralisação dos processos em curso”

O descaso com a reforma agrária ficou explícito em um ofício encaminhado pelo Incra ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em resposta a um pedido do defensor público Raphael Santoro para que o órgão retomasse a análise de um processo que se arrasta há anos em Monteiro Lobato, no interior paulista. No comunicado, o Incra informa que, “com o início do novo governo, declaradamente desvinculado das pautas sociais, e com início da gestão de ex-oficiais das Forças Armadas Brasileiras, tivemos restrições severas em nosso ordenamento e determinação explícita para não realização de novas vistorias e paralisação dos processos em curso”. Na avaliação do desembargador federal, Hélio Nogueira, “a justificativa dada pela autarquia lamentavelmente falta com a seriedade esperada no tratamento das questões públicas”.

Solidariedade. No Paraná, os assentados do MST produziram e distribuíram alimentos para famílias em situação de pobreza. (FOTO: Wellington Lennon)

Em resposta a CartaCapital, a assessoria de comunicação do Incra confirmou que o “ofício foi expedido pela regional de São Paulo, em resposta a processo em trâmite na 4ª Vara Cível da Justiça Federal”. Acrescenta, porém, que “a política de reforma agrária é prioridade do atual governo”, mas o processo é “longo e complexo”. A afirmação desafia a lógica. Como pode ser uma prioridade se o próprio órgão reconhece, nesta mesma nota, que nos últimos dois anos “não ocorreram desapropriações” e que os processos estão “sobrestados” por “insuficiência orçamentária”?

O pernambucano Alexandre Conceição, da direção nacional do MST, estima que mais de 80 mil famílias vivem em acampamentos à beira de estrada ou em áreas ocupadas, mas não regularizadas. “São mulheres, homens, jovens, crianças e idosos expostos a toda sorte de dificuldades e que precisam de nossa atenção.” Com a pandemia, a situação se tornou ainda pior. Desde o ano passado, o MST, na companhia de outros movimentos sociais, reivindica a aprovação de uma lei que garanta auxílio emergencial aos camponeses. Ao cabo, o Congresso Nacional aprovou a Lei Assis de Carvalho para socorrer agricultores familiares, mas Bolsonaro vetou o texto integralmente. “Não recebemos apoio algum do governo”, lamenta Conceição. Neste ano, a proposta foi reeditada, aprovada pela Câmara dos Deputados e aguarda a votação no Senado. Ninguém sabe, porém, se ela será barrada em uma nova canetada do capitão-presidente.

Uma das iniciativas previstas na lei vetada por Bolsonaro era obrigar a União a adquirir alimentos da agricultura familiar e doar às famílias em situação de pobreza. Os camponeses reivindicam, ainda, o acesso ao auxílio emergencial, a renegociação de dívidas tributárias, a criação de uma linha de crédito para incrementar a produção agrícola e o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar, destinado à aquisição de alimentos para as escolas públicas. “Hoje, as grandes empresas do agronegócio pagam juros menores que os cobrados de agricultores familiares”, protesta Conceição. O governo federal se recusa, porém, a participar das negociações com os movimentos campesinos. “Nosso diálogo tem sido exclusivamente com o Congresso e o Poder Judiciário, notadamente o STF, para brecar os retrocessos dos quais somos vítimas.”

Enquanto a nova Lei Assis de Carvalho não é editada, uma campanha de solidariedade, coordenada pelo MST, se encarrega de distribuir alimentos aos desempregados e famílias em situação de pobreza. No Paraná, os sem-terra partilharam mais de 710 toneladas de alimentos orgânicos, sem agrotóxicos, desde o início da pandemia. Os alimentos são destinados a bairros periféricos, em situação de vulnerabilidade social, ocupações urbanas, hospitais públicos e Santas Casas, lares de idosos, associações de moradores e catadores de materiais recicláveis, abrigos, pessoas em situação de rua, quilombolas e comunidades indígenas.

Nos últimos dez anos, o orçamento para a reforma agrária passou de 1,6 bilhão de reais para 12,2 milhões, menos de 1% do valor de 2011

As mais de 120 iniciativas de doação com alimentos partiram de 60 acampamentos e 130 assentamentos, e contam com a colaboração de comunidades tradicionais, unidades de produção da agricultura familiar, cooperativas e sindicatos de trabalhadores rurais. As contribuições chegaram a 80 municípios paranaenses, de todas as regiões do estado. Além disso, mais de 65 mil marmitas foram produzidas e distribuídas gratuitamente para pessoas em situação de rua, trabalhadores de aplicativos e moradores de bairros da periferia de Curitiba e Região Metropolitana.

Mesmo com a mobilização prejudicada pela pandemia, o movimento não esmorece. O governo acredita que o fim das desapropriações enfraquece os sem-terra, mas na prática ocorre o oposto, observa Stédile. Quanto menos soluções apresentam, mais os problemas se avolumam e a pressão social só aumenta. “Nós vamos resistir. Nós estamos resistindo.”

Publicado na edição nº 1167 de CartaCapital, em 22 de julho de 2021.

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