Política
Crime não é opinião
A investida de Moraes e da PF contra empresários bolsonaristas conspiradores tenta impedir a prática de delitos potenciais


Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal, não dormiu de 6 para 7 de setembro do ano passado. A Corte seria o alvo de manifestações de rua de Jair Bolsonaro e seus seguidores no Dia da Independência e fora surpreendida com a chegada de fanáticos apoiadores do capitão a Brasília na véspera. A tensão dominava o STF. Corria a informação de que radicais tentariam invadi-lo. Mais: um caminhão entraria no prédio para implodi-lo. A cidade estava cheia de caminhoneiros, categoria fortemente bolsonarizada. Alguns até festejariam, mais tarde, o triunfo de suas ilusões. “Estamos sabendo agora que o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, resolveu agir e, a partir de agora, o Brasil está em estado de sítio”, dizia um, às lágrimas, como se vê no YouTube. “Conseguimos o estado de sítio. Vamos tirar os vagabundos de lá, conseguimos tirar os 11 (ministros do Supremo)”, afirmava outro, eufórico.
A Procuradoria-Geral da República (quem diria…) havia farejado perigo e, três semanas antes do protesto, pedira ao Supremo para abrir um inquérito, até hoje sigiloso e em curso, o 4.879. Queria esmiuçar a preparação do ato. O ministro Alexandre de Moraes autorizou. Segundo ele, a PGR tinha apresentado indícios de que as manifestações eram “impulsionadas, largamente, por pessoas jurídicas”. Um relatório posterior do delegado da Polícia Federal William Tito Schuman Marinho identificaria na manifestação a presença de 14 caminhões em nome de um empresário, Marlon Bonilha. Trata-se do dono de uma fábrica de peças e capacetes para motos, a Pro Tork, do Paraná. Em 26 de junho, menos de três meses antes do protesto, Bonilha estivera no gabinete presidencial com Bolsonaro. É próximo do catarinense Luciano Hang, das Lojas Havan, outro fã do capitão. Será que a PF achará alguma conversa comprometedora dos dois no celular de Hang?
O “véio da Havan” é um dos oito empresários que a polícia mirou em uma batida, realizada há duas semanas, que tinha um objetivo similar àquele das averiguações prévias ao 7 de Setembro do ano passado: impedir crimes apoiados e financiados por endinheirados bolsonaristas. Delitos que não se limitariam ao Dia da Independência de agora. Estarão no ar até a eleição. Diante de certas conversas dessa turma no WhatsApp, reveladas em 16 de agosto pelo jornal Metrópoles, o delegado da PF Fábio Alvarez Shor entendeu que o pessoal parece “arquitetar uma ruptura” institucional e que era necessário adotar medidas de “dissuasão”. Moraes, que deu sinal verde à batida, concordou, conforme se observa em sua decisão, tornada pública em 29 de agosto, dez dias após ter sido assinada. “Não há dúvidas de que as condutas dos investigados indicam possibilidade de atentados contra a Democracia e o Estado de Direito.” Daí, prosseguiu, ser “imprescindível” agir.
Nas mensagens de WhatsApp no grupo “Empresários & Política”, Moraes detectou um modus operandi similar ao identificado em dois inquéritos sob seus cuidados no Supremo, ambos em andamento. Um diz respeito às milícias digitais, de número 4.781, outro versa sobre uma quadrilha de carne e osso sabotadora da democracia, o 4.874. Hang, por exemplo, é alvo de um deles. O juiz aponta “grande capacidade socioeconômica do grupo investigado, a revelar o potencial de financiamento de atividades digitais ilícitas e incitação à prática de atos antidemocráticos”. Eis por que era não só “imprescindível” tomar providências, mas fazê-lo com mão pesada. “O poder de alcance das manifestações ilícitas fica absolutamente potencializado considerada a condição financeira dos empresários”, os quais “possuem vultosas quantias de dinheiro” e “comandam empresas de grande porte”, anotou Moraes. Um cenário que “exige uma reação absolutamente proporcional do Estado”.
OS ENVOLVIDOS PARECEM “ARQUITETAR UMA RUPTURA INSTITUCIONAL”, AVALIA O DELEGADO FÁBIO ALVAREZ SHOR
Com aval do ministro, a PF interrogou, vasculhou endereços e apreendeu celulares de Hang, Afrânio Barreira Filho (Coco Bambu), Ivan Wrobel (W3 Engenharia), José Isaac Peres (Multiplan), José Koury (Barra World), Luiz André Tissot (Sierra), Marco Aurélio Raymundo “Morongo” (Mormaii) e Meyer Joseph Nigri (Tecnisa). Moraes também quebrou os sigilos bancário e comunicacional do octeto, bloqueou suas contas bancárias e tirou do ar seus perfis nas redes sociais. Quebrar o sigilo bancário e bloquear contas eram requisições não do delegado Shor, mas do senador Randolfe Rodrigues, um dos coordenadores da campanha de Lula.
A disposição dos empresários de não aceitar uma vitória do petista é o ponto de partida da canetada de Moraes. O governismo alardeia que o ministro inventou o “crime de opinião”. O deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do capitão, tuitou que “está criado o crime de conversar no zap”. Será? “Essas condutas, de elevado grau de periculosidade, se revelam não apenas como meros ‘crimes de opinião’”, diz a decisão de Moraes. “Os investigados, no contexto da organização criminosa sob análise, funcionam como líderes, incitando a prática de diversos crimes e influenciando diversas outras pessoas, ainda que não integrantes da organização, a praticarem delitos.” Nos inquéritos sobre as milícias digitais e sobre a quadrilha de carne e osso, as apurações identificaram até o momento a existência de empresários por trás. É a turma do “núcleo financeiro”.
“O 7 de Setembro está sendo programado para unir o povo e o Exército e ao mesmo tempo deixar claro de que lado o Exército está. Estratégia top e o palco será o Rio. A cidade ícone brasileira no exterior. Vai deixar muito claro”, escreveu Raymundo “Morongo”, às 17h23 de 31 de julho. Wrobel respondeu na hora: “Exatamente isso!” e “Quero ver se o STE (sic) tem coragem de fraudar as eleições após um desfile militar na Av. Atlântica com as tropas aplaudidas pelo público”. Às 17h55, Koury foi explícito: “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”. “Golpe foi soltar o presidiário”, anotou “Morongo” no minuto seguinte. Às 17h58, Barreira Filho anuiu com a visão de Koury. Duas horas depois, Tissot dizia que “o golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo. (Em) 2019 teríamos ganhado outros 10 anos a mais”.
Moraes preferiu agir com firmeza contra o abuso do poder econômico – Imagem: Carlos Moura/STF
O diálogo tem indícios de cinco crimes potenciais, todos citados no despacho de Moraes. “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” é descrito no artigo 359-L do Código Penal. Dá de 4 a 8 anos de cadeia. Foi inserido no Código no ano passado, por meio de uma lei, a 14.197, de autoria do deputado Paulo Teixeira, do PT, que substituiu a velha Lei de Segurança Nacional, uma herança da ditadura. A mesma legislação nova adicionou ao Código o artigo 359-M, que prevê prisão de 4 a 12 anos para quem “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ao pregar golpe, a turma empresarial também incita ao crime, e incitação é definida no artigo 286 do Código, com castigo de 3 a 6 meses de cana. Como os empresários parecem agir em bando, tem-se a suspeita do crime de organização criminosa, descrito no artigo 288 do código (pena: de 1 a 3 anos). E por aparentemente toparem tirar dinheiro do bolso para concretizar os intentos, haveria o ilícito de “promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa”, delineado no artigo 2º da Lei 12.850, a das quadrilhas. A punição aqui é detenção de 3 a 8 anos.
O que significam as conversas dos empresários? São só sentimentos íntimos confessados de forma reservada com quem pensa igual? Ou há planos concretos de ação? É o que o delegado Shor quer esclarecer, a partir da análise dos celulares e dos sigilos comunicacional e bancário do octeto. “Como é sabido, mensagens de apoio a atos violentos, ruptura do Estado Democrático de Direito, ataques ou ameaças contra pessoas politicamente expostas têm um grande potencial de propagação entre os apoiadores mais radicais da ideologia dita conservadora, principalmente considerando o ingrediente do poder econômico e político que envolvem as pessoas integrantes do grupo”, destacou ele, ao pedir providências ao Supremo.
Exagero? Numa mensagem de 17 de maio, “Morongo” escreveu: “Se for vencedor o lado que defendemos, o sangue das vítimas se tornam (sic) sangue de heróis”. Recorde-se que “radicais da ideologia dita conservadora” fizeram correr sangue nos Estados Unidos, em razão da derrota de Donald Trump e da diplomação de Joe Biden. Cinco morreram na invasão do Congresso norte-americano, o Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Na antevéspera, Eduardo Bolsonaro tinha estado na Casa Branca, a convite da filha de Trump. A insurreição tem sido dissecada por um comitê parlamentar, disposto a examinar as conexões internacionais da extrema-direita trumpista, inclusive com o Brasil. No mês passado, a Justiça dos EUA fixou a pena do primeiro condenado pela rebelião. Guy Reffitt pegou 7 anos de prisão. Portava uma arma e ameaçou uma deputada durante a insurreição.
Aqui, o Tribunal Superior Eleitoral acaba de proibir que eleitores armados fiquem a menos de 100 metros dos locais de votação tanto no dia da eleição quanto nas 48 horas anteriores e nas 24 horas seguintes. A medida foi aprovada por unanimidade pelo plenário, a partir de uma consulta formulada pelo deputado Alencar Santana, do PT, líder da oposição na Câmara. O petista tinha dúvidas sobre a postura de Bolsonaro no 7 de Setembro de agora, marco dos 200 anos de Independência brasileira. Para ele, se o presidente amansar, frustrará apoiadores extremistas. Se radicalizar, afugentará eleitores moderados. Se dependesse do dito “Centrão”, o capitão não participaria de nada. Foi o que disse em conversas reservadas o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Bolsonaro deverá ir ao desfile militar oficial em Brasília pela manhã e a uma exibição das Forças Armadas à tarde em Copacabana, no Rio. Na capital federal, há outdoors com o dizer “É agora ou nunca”, a respeito do 7 de Setembro.
Santana e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, pediram ao Supremo a prisão em flagrante ou preventiva de quatro empresários, após a revelação das mensagens golpistas: Hang, Barrreira Filho, Wrobel e “Morongo”. E, também, a de um juiz do Trabalho (sim, pasmem, havia um no grupo), Marlos Melek. O magistrado tem suas digitais na reforma trabalhista aprovada há cinco anos no governo Temer, na mira de uma revisão, caso Lula seja eleito. “Alguém aqui no grupo deu uma ótima ideia, mas temos que ver se não é proibido. Dar um bônus em dinheiro ou um prêmio legal pra todos os funcionários das nossas empresas”, escreveu Koury, em 31 de maio, aos colegas de WhatsApp. “Acho que seria compra de votos… complicado”, respondeu “Morongo”. Dois meses depois, Koury contaria aos interlocutores que havia encomendado “milhares de bandeirinhas para distribuir para os lojistas e clientes do Barra World Shopping a partir de setembro”.
Bolsonaro e aliados falam em liberdade de expressão. Hang, de camisa verde, desponta em outras investigações sobre o financiamento da desinformação e de atos que flertam com o golpismo – Imagem: Redes sociais e Renato Pizzutto/Band
São mensagens didáticas sobre o lema “siga o dinheiro” adotado por Moraes no encalço dos empresários. Foram as primeiras pistas em sua decisão a respeito da “possibilidade de atentados contra a Democracia e o Estado de Direito”. Segundo o delegado Shor, elas demonstram “a nítida intenção de ação de cooptação de pessoas em razão do poder econômico do mencionado grupo, bem como utilizando da posição hierárquica junto a funcionários para angariar votos ao candidato apoiado pelos empresários”. Compra de votos é abuso de poder econômico, pelo artigo 299 do Código Eleitoral. O adquirente pode pegar até 4 anos de prisão. Se quem pagou foi o próprio candidato, este pode ser cassado e ficar inelegível por oito anos. Se foi um terceiro (um empresário, por exemplo), ainda assim o candidato pode sofrer cassação, segundo o ex-juiz Márlon Reis, especialista em legislação eleitoral e candidato a deputado pelo PSB de Tocantins. Reis lembra que o TSE já cassou mandato por compra terceirizada de votos, em 2009: o então senador Expedito Júnior, de Rondônia.
Reis é o advogado de uma ação judicial movida recentemente contra o ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet, que chamou de “neguinho” o britânico Lewis Hamilton. A ação pede uma indenização por racismo contra Piquet de 10 milhões de reais, quantia que seria revertida para o movimento negro. Em 24 de agosto, o ex-piloto doou 501 mil reais à campanha de Bolsonaro. Significa que ele teve ao menos 5 milhões de renda no ano passado, diz Reis, o que justifica o valor da indenização. A doação de empresas a campanhas políticas está proibida desde 2016, mas os empresários, como pessoas físicas, podem fazê-las. Diante da investida da PF e de Moraes contra os conspiradores, o comitê de Bolsonaro teme que a torneira seque. “Conheço empresários com medo de se posicionarem nessas eleições”, tuitou o senador Flávio, um dos filhos do capitão.
HANG É APONTADO NOS INQUÉRITOS COMO UM ASSÍDUO FINANCIADOR DO BOLSONARISMO
O fator dinheiro tende a ter um peso maior para a campanha de Bolsonaro neste ano do que em 2018. Até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 1°, o presidente havia declarado à Justiça Eleitoral ter recebido 12,4 milhões de reais em doações, das quais 10 milhões saíram do fundo eleitoral do partido dele, o PL. A legenda tem 290 milhões do fundo, menos do que o PT (500 milhões). Ao fim da última campanha, Bolsonaro tinha informado ter obtido apenas 4,3 milhões em donativos. Mas houve ajuda por fora. Na CPI das Fake News, o empreiteiro Meyer Nigri foi citado em depoimento do deputado Alexandre Frota como alguém que teria pago para disseminar no Facebook conteúdo a favor do capitão. Hang foi multado pela Justiça Eleitoral em 10 mil reais, por ter patrocinado a mesma prática. Os dois foram mencionados por Bolsonaro como gente de suas relações, logo após a batida policial contra o octeto conspirador.
O “véio da Havan” é um dos que mais chamam atenção nas investigações da PF nos inquéritos das milícias digitais e da quadrilha de carne e osso. Dono de bilhões, ele desponta como um mecenas do bolsonarismo. Na apuração sobre as milícias digitais, foi mencionado como alguém que levou dinheiro para os EUA em um avião para dar a Olavo de Carvalho, o falecido “guru” do clã presidencial. Quem contou a história à PF, em julho de 2020, foi o deputado gaúcho Nereu Crispim, do PSD. O parlamentar diz tê-la ouvida de Camile Pacheco, advogada da filha de Carvalho. O que ajuda a entender, segundo Crispim, por que Hang apareceu nas redes sociais disposto a ajudar o “guru”, quando este pediu publicamente doações para pagar uma condenação judicial.
Randolfe Rodrigues pediu a quebra de sigilo bancário dos envolvidos. E foi atendido – Imagem: Pedro França/Ag.Senado
A informação sobre o depoimento de Crispim consta de um documento de 121 páginas elaborado por um juiz auxiliar de Moraes no Supremo, Airton Vieira. A papelada faz uma espécie de resumo de quatro inquéritos conduzidos pelo ministro, dois dos quais sob sigilo. E deixa claro que muitos fatos se entrelaçam, inclusive a conspiração dos oito empresários anti-Lula.
Crimes de opinião? Só na “opinião” de Jair e cia. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Crime não é opinião”
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