Política

assine e leia

Corpo fechado

Entre os bolsonaristas, radicais ou moderados, o ex-presidente ainda é o “Mito”, revela estudo inédito. O que explica tamanha resiliência aos escândalos?

Corpo fechado
Corpo fechado
Imagem: Marcos Corrêa/PR
Apoie Siga-nos no

Ele é acusado de se apropriar indevidamente de joias milionárias presenteadas pela monarquia saudita, as quais deveriam ser incorporadas ao patrimônio do Estado. Responde a vários outros inquéritos por disseminar fake news, acusação que ele mesmo chegou a admitir, e por estimular a fracassada tentativa de golpe em 8 de janeiro deste ano, quando seus radicais seguidores devastaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. Responde, ainda, por inúmeros ataques ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas, motivo pelo qual tornou-se inelegível por oito anos, e pela atuação desastrosa na pandemia de ­Covid-19, que resultou na morte de mais de 700 mil brasileiros. Mesmo com esse histórico, Jair Bolsonaro foi ovacionado pelo público que prestigiou a Festa de Peão de Barretos, um dos maiores eventos do agro no País, no fim de agosto. Por onde passa, o ex-presidente continua sendo chamado de “Mito”. Conserva um importante capital político e parece ter o “corpo fechado” contra a avalanche de denúncias que o atingem.

A resiliência política do ex-capitão é atestada por uma recente pesquisa encomendada pela CNN Brasil ao instituto AtlasIntel. De acordo com a sondagem, divulgada no fim de agosto, Bolsonaro detém 40% das intenções de voto para presidente, caso a eleição fosse realizada agora e ele pudesse ser escolhido. Nesse mesmo levantamento, Lula figura na preferência de 48,1% do eleitorado. A chamada “terceira via” praticamente não existe: Simone Tebet, do MDB, pontua 2,1%, e Ciro Gomes, do PDT, 1,7%. A popularidade quase inabalada de Bolsonaro e a fidelidade demonstrada por seus apoiadores chama atenção entre os especialistas, que buscam entender tal fenômeno. Uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e divulgada com exclusividade por CartaCapital, mostra que o núcleo bolsonarista não soltou e nem dá sinais de que vai soltar a mão do ex-presidente. Desenvolvida pelo Monitor da Extrema Direita da Uerj, a pesquisa vem analisando o que pensam os eleitores de Bolsonaro em relação aos principais acontecimentos do País, a grande maioria deles negativos para o ex-capitão, seus familiares e assessores mais próximos.

Nenhuma denúncia tem validade para os seguidores do ex-capitão, atesta o Monitor da Extrema Direita da Uerj

Todos os participantes da pesquisa votaram em Bolsonaro em 2022, mas foram divididos em dois grupos: um formado por apoiadores da invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro, denominados de “convictos” ou “radicais”, e outro por aqueles que condenaram tal ato, os “moderados”. O estudo teve início em abril, segue sem previsão para ser concluído e acontece em grupos focais formados pelos pesquisadores no ­WhatsApp. Semanalmente, são lançados questionamentos sobre temas do momento para que os bolsonaristas comentem. Com sutis diferenças, tanto os convictos quanto os moderados seguem apoiando o ex-presidente, fazem duras críticas ao Judiciário, a Lula e ao PT, e se alimentam de informações falsas. Basicamente, o que distingue as duas facções é que os radicais negam qualquer envolvimento de Bolsonaro nos crimes e têm como único meio de informação a indústria de fake news bolsonarista, enquanto os moderados ponderam a possibilidade de envolvimento do ex-capitão, estão abertos a outros canais informativos, como a mídia tradicional, e chegam a demonstrar alguma confiança nas instituições. O ódio a Lula e ao PT une os dois grupos.

O apoio ou a repulsa aos atos golpistas de 8 de janeiro é o que distingue os dois grupos focais – Imagem: Joédson Alves/ABR

“Os convictos raramente manifestam qualquer crítica a Bolsonaro, é teflon total. Tudo que é negativo em relação ao ex-presidente eles apresentam prontamente uma narrativa, muitas delas baseadas em informações falsas. Ou tentam empurrar a responsabilidade, falam que é culpa do PT, de Lula, que há uma perseguição, um complô da esquerda com o Supremo Tribunal Federal para destruir Bolsonaro. Já os moderados mostram abertura para algumas críticas, ainda que demonstrem alto grau de antipetismo”, resume o cientista político João Feres Júnior, diretor científico da pesquisa e professor da Uerj, que divide a coordenação do estudo com Carolina de Paula. “É inegável que Bolsonaro é um cara carismático, por mais que ele suscite sentimentos de extrema repulsa, nojo inclusive, para muitas pessoas. Mas tem gente que se seduz por aquela figura grotesca, simplória. Não dá para negar que ele tem esse tipo de comunicação afetiva, pode-se dizer assim, com muita gente”, acrescenta.

A dissonância cognitiva afasta os bolsonaristas de qualquer debate lógico, constata psiquiatra

Em abril, entre os dias 20 e 26, por exemplo, os pesquisadores queriam saber dos bolsonaristas sobre a ­possibilidade de envolvimento de Bolsonaro no 8 de Janeiro e o que achavam da insurreição. Os dois grupos, em sua maioria, condenaram os atos de vandalismo, defenderam a punição dos envolvidos e afirmaram acreditar na inocência do ex-presidente. Alguns poucos moderados afirmaram que o ex-mandatário foi omisso, o que pode ter estimulado os ataques golpistas, e cobraram uma investigação para apurar a participação dele. “Não havia o que ser estimulado, uma vez que esses atos foram armados justamente para incriminá-lo. O tempo todo ele se manteve longe de holofotes, justamente por ter percebido a armação e não se prejudicar. Essas pessoas fizeram toda aquela quebradeira para agravar e sujar a imagem do presidente. Ele é inocente, é um homem de bem!”, opinou uma contadora baiana, de 39 anos, do grupo dos convictos. “Acredito que ele esteve envolvido na situação, mas não de forma direta. Agiu ali camuflado”, ponderou uma técnica de enfermagem do Amapá, de 34 anos.

Para os apoiadores do ex-presidente, o hacker Walter Delgatti Neto sempre esteve a serviço do PT – Imagem: Lula Marques/ABR

Na última semana de junho, quando os pesquisadores abordaram os dois grupos sobre a arrecadação de dinheiro via Pix para Bolsonaro, os radicais externaram total apoio, enquanto os moderados ficaram reticentes. “Eu apoio e até já fiz um Pix com um valor simbólico. Acredito que todos os patriotas que puderem ajudar, deveriam. Independentemente do valor, o importante, na minha opinião, é apoiar Bolsonaro”, defendeu um jovem aprendiz convicto de São Paulo, de 18 anos. “Isso é uma grande palhaçada. O salário que ele ganhou dá para pagar e ainda sobra. Nunca vou contribuir para tal palhaçada”, disparou um moderado gerente de 54 anos, morador do Pará. Nessa campanha, Bolsonaro arrecadou 17 milhões de reais (confira outros depoimentos dos bolsonaristas pesquisados à pág. 16).

Vítima da ira bolsonarista em Dourados, cidade do interior de Mato Grosso do Sul, depois de se posicionar nas eleições presidenciais do ano passado, o psiquiatra Fabiano Horimoto resolveu estudar o comportamento dos apoiadores de Bolsonaro, resultando no livro O Dia da Infâmia e a Dissonância Cognitiva: Um Retrato do Ódio Através da Psicologia, lançado há pouco mais de um mês. Segundo o médico, os bolsonaristas mais radicais vivem em um mundo paralelo, fechado a qualquer tipo de reflexão. “Eles foram capturados através de um mecanismo psicológico chamado dissonância cognitiva, com essa midiosfera extremista, com narrativas que foram criadas antes mesmo de 2018 e que empoderaram esse grupo político, levando Bolsonaro à Presidência. Essa parcela capturada não é composta de pessoas que têm uma doença mental, um distúrbio psiquiátrico, mas são pessoas dissonantes, que não habitam o mundo real”, explica.

Em vários momentos da pesquisa da Uerj, como na semana entre 18 e 24 de agosto (estavam em debate as acusações do hacker Walter Delgatti contra Bolsonaro e a confissão do ex-presidente de disseminar notícias falsas), os pesquisadores identificaram nas respostas o que eles chamam de priming, definido como “a influência de informações prévias, sedimentadas na mente de uma audiência, no julgamento que fazem de novas questões que lhes são colocadas”. A informação anterior a que se refere o estudo diz respeito à ideia fixa de que houve fraude nas eleições do ano passado e de que Lula foi beneficiado pelo STF, que anulou os processos contra o petista na Operação Lava Jato e permitiu que ele concorresse à Presidência.

“Primeiramente, temos a crença disseminada entre bolsonaristas, particularmente os convictos, mas não só, de que houve fraude eleitoral. A massiva campanha de ataque ao processo eleitoral promovida pelo bolsonarismo produziu esse efeito de inculcar informações falsas em seus seguidores, que agora as utilizam como ponto de partida para julgarem fatos novos. Outro exemplo de priming bem-sucedido é a percepção, demonstrada particularmente pelas respostas dos moderados a essa questão, de que Lula é um criminoso que foi injustamente liberado pelo STF para voltar à vida pública”, diz um trecho da pesquisa. Feres Jr. observa com preocupação a força da máquina de fake news da extrema-direita, a operar com facilidade, velocidade e eficiência. “É capaz de entregar informações de forma muito rápida. Acontece uma coisa agora, daqui a um minuto eles já estão sabendo qual é a resposta para apresentar na defesa de Bolsonaro”, diz o pesquisador.

Os bolsonaristas têm resposta pronta para qualquer situação, diz Feres Jr. Só o que confirma as suas crenças é aceito, acrescenta Horimoto – Imagem: Acervo pessoal e Pedro França/Ag. Senado

À influência das fake news na bolha bolsonarista Horimoto acrescenta uma análise psicológica que passa pelas crenças e valores preexistentes nessas ­pessoas. “As informações confluentes batem com as crenças que eles próprios têm, essas informações são agradáveis para o sistema límbico, então eles tendem a acreditar, mesmo que possam parecer bizarras ou conspiratórias. Na dissonância cognitiva, diante de informações divergentes, que vão contra nossas crenças, a primeira defesa é repudiá-las”, explica. “Essas pessoas estão irremediavelmente fora de qualquer debate lógico.”

A pesquisadora Geni Dornelles, autora do livro Tempo de Ira, classifica os bolsonaristas como fanáticos, antiéticos e alienados. “A alienação para a filosofia é alucinatória. Por isso, eles acreditam que aquele homem tem valor, embora tudo deponha contra.” Como exemplo da limitação reflexiva de grande parte dos apoiadores de Bolsonaro, nos dias que antecederam o 7 de Setembro, data utilizada nos quatro anos de governo Bolsonaro para a realização de atos antidemocráticos, a bolha bolsonarista lançou o movimento do “Fique em casa”, com postagens nas redes sociais atacando as Forças Armadas por não terem dado um golpe de Estado para impedir a posse de Lula. A campanha tinha o objetivo de convencer as pessoas a não prestigiarem o tradicional desfile cívico da Independência do Brasil, e ainda recorreu a um slogan utilizado na pandemia para não disseminar a Covid-19, o qual foi fortemente boicotado pelo então presidente.

Nos EUA, o desgaste de Joe Biden no poder contribui para inflar a popularidade de Donald Trump – Imagem: Gage Skidmore

O fenômeno Bolsonaro no Brasil assemelha-se, em grande medida, ao de ­Donald Trump nos EUA. Como o brasileiro, o líder norte-americano é acusado de vários crimes e, ainda assim, goza de alta popularidade e lidera as prévias do Partido Republicano para voltar a concorrer à Presidência da República nas eleições do ano que vem. No início de agosto, uma pesquisa divulgada pelo jornal The New York Times mostrou Trump e o atual presidente, o democrata Joe Biden, empatados na corrida presidencial, com 43% das intenções de voto. Para Luciana Santana, cientista política e professora da Universidade Federal de Alagoas, há semelhanças, mas há também diferenças entre a situação de Bolsonaro e Trump, considerando os problemas judiciais que ambos enfrentam e a alta popularidade deles.

“Se a gente pensar no envolvimento na Justiça e na simpatia e cristalização do voto conservador, acho que dá para fazer um paralelo. No entanto, são realidades bem distintas. Apesar das dificuldades, Lula está sendo bem-sucedido no seu governo, diferentemente de Biden, que tem muitas fragilidades. Se Biden tivesse a popularidade de Obama, Trump não estaria tão bem posicionado nas pesquisas. Não podemos desconsiderar o desgaste do Partido Democrata”, analisa Santana, acrescentando que Bolsonaro é um líder carismático e o maior catalisador da ideologia ultraconservadora no Brasil. “O que explica a manutenção de apoio a Bolsonaro é o antipetismo, o conservadorismo, a contrariedade às pautas voltadas para o social e identitárias. Se houvesse outro nome capaz de catalisar esse sentimento, possivelmente esse apoio migraria.”

O carisma de Bolsonaro também é ressaltado por Vera Chaia, cientista política e professora da PUC de São Paulo. Segundo a pesquisadora, o ex-presidente tem acertado na estratégia de ora silenciar em relação às denúncias, ora se fazer de vítima e ora manipular a bolha bolsonarista para atacar o governo Lula. “Ele continua participando de todas as atividades, dando o recado, está se portando como um político que não vai abandonar a luta. A postura do Bolsonaro é a de quem lidera um grupo político. Se a gente for pensar, dez anos atrás, Bolsonaro não era nada. Agora, tem uma estratégia de manutenção da sua própria imagem, e isso ele faz muito bem. O ex-presidente está sendo assessorado, não está falando aquilo que ele gostaria de falar, está sendo monitorado”, avalia Chaia. “Ele está apostando não numa reversão do processo (de inelegibilidade), mas em um futuro no qual possa ter alguma influência, inclusive para nomear pessoas em cargos-chave.”

Ao analisar o perfil psicológico de Bolsonaro, Fabiano Horimoto o compara a Hitler e Mussolini, e diz que não se deve subestimá-lo. “Ele não tem uma inteligência cognitiva alta, mas foi muito perspicaz, anos atrás, em capturar a linguagem do populista que se comunica diretamente com as massas, com uma retórica bastante contundente, mesmo que vazia de conteúdo. Parece até que Bolsonaro leu Freud e entendeu a psicologia das massas, porque ele capturou, em algum momento de sua trajetória política, esse personagem e o exerceu até o seu limite. Se ele tivesse uma inteligência cognitiva um pouquinho maior, talvez estivéssemos hoje num segundo governo bolsonarista, como ocorreu na Hungria de Viktor Orbán.”

Empresários e políticos ainda enxergam em bolsonaro uma opção para derrotar o PT

Para Feres Jr., a alta popularidade de Bolsonaro também tem a ver com os interesses das pessoas que estão por trás do ex-capitão. “Bolsonaro está sob fogo cerrado das instituições e, se isso não é suficiente para liquidar a popularidade dele, não é só porque há pessoas simpáticas a ele, que foram seduzidas por seu carisma, mas também porque elas veem vantagem nisso. Ele mostrou ter capacidade para ganhar uma Presidência da República, quase ganhou uma segunda vez. Tem um capital político que muita gente acha um desperdício nas mãos dele, mas que é negociado com outras lideranças. Tem uma série de políticos e pessoas do mercado que veem em Bolsonaro uma opção viá­vel para derrotar a centro-esquerda, o Lula, o PT. Bolsonaro é uma opção para essa gente, não é só para os ultrarreacionários, é para gente que tem interesse concreto de ser eleito, de levar vantagem nos negócios. Tem vários empresários interessados na desregulação radical do trabalho, então, entra um monte de gente nessa coisa e o Bolsonaro é essa promessa. Ele mostrou ser um desastre na administração pública, mas tem gente que não está nem aí para isto, desde que estejam atendendo a seus interesses.” •

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo