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Copo meio cheio

O porcentual de crianças e adolescentes com privação de renda despenca, mas a negação de direitos como educação e proteção persiste

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Imagem: Miguel Schincariol/AFP
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Em um passado não muito distante, o Brasil figurava entre os países com maiores índices de mortalidade infantil, cerca de 50 óbitos a cada mil nascimentos. Era também um período em que crianças em situação de vulnerabilidade e adolescentes infratores eram tratados como criminosos, sendo encaminhados a orfanatos ou à antiga Febem, onde dividiam pequenos espaços com mais de 200 jovens na mesma condição. Essa realidade começou a mudar com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 35 anos no domingo 13 e teve impacto significativo nos indicadores sociais. Atualmente, o índice de mortalidade infantil caiu para 12 mortes por mil nascimentos, e o número de menores internados despencou de em torno de 22 mil para menos de 12 mil. Somente no Estado de São Paulo, esse número caiu de 10 mil para 6 mil nos últimos dez anos, a evidenciar que as políticas públicas implementadas a partir do ECA ressignificaram o atendimento à população infantojuvenil, contribuindo para a redução da incidência de delitos e maior ressocialização desse público. A partir do ECA, houve um reordenamento institucional significativo. Os antigos orfanatos foram extintos e substituídos por casas-lares, com serviços de acolhimento que atendem até 20 crianças e adolescentes, todos assistidos por equipes multidisciplinares. As antigas Febens foram transformadas em centros de ressocialização, voltados ao acolhimento de jovens em conflito com a lei. “No passado, mal se diferenciava uma criança em situação de abandono – seja por orfandade, seja por viver nas ruas ou por envolvimento com drogas – de um adolescente infrator. Todos eram tratados da mesma forma e encaminhados indiscriminadamente para esses locais nada apropriados”, explica Ariel de Castro Alves, da Comissão Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente da OAB. Ele ressalta que a legislação específica para o público infantojuvenil representa um marco na construção de políticas voltadas a essa população.

“O ECA, assim como a própria Constituição de 1988, passou a enxergar a criança e o adolescente como prioridade absoluta. Antes, a política social era vista como um favor, uma caridade das elites, não como uma obrigação do Estado. Foi a partir desse novo marco legal que começaram a ser implantados, no Brasil, programas específicos voltados para esse público”, explica Liliana Chopitea, chefe de Políticas Sociais do Unicef no Brasil. Ela acrescenta que os efeitos positivos do ECA se refletem diretamente nos índices de pobreza da população infantojuvenil.

Há 75 anos atuando no País, o Unicef acompanha de perto a evolução das políticas públicas direcionadas a crianças e adolescentes. Dados da terceira edição do relatório Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017 a 2023), publicado este ano pela entidade, revelam que a taxa de pobreza entre essa população caiu de 62,5%, em 2017, para 55,9%, em 2023 – redução impulsionada, principalmente, pelas melhorias nas dimensões de renda e de acesso à informação.

Fonte: Relatório Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017 a 2023), do Unicef.

Segundo Chopitea, a melhora na dimensão econômica deve-se, principalmente, a políticas públicas como o Bolsa Família, que pode ter contribuído para tirar ao menos 4 milhões de crianças e adolescentes da privação de renda – número cinco vezes maior que o registrado em 2019. Em 2017, 25,4% dos brasileiros com menos de 18 anos viviam nessa condição. Em 2023, esse porcentual caiu para 19,1%.

Já na área da educação, os avanços foram mínimos, com o progresso fortemente impactado pela pandemia de Covid–19. Em 2017, 8,6% dessa população não tinha acesso a esse direito. Hoje, a taxa de privação caiu para apenas 7,8%. O relatório também aponta que, em 2023, cerca de 30% das crianças entre 7 e 8 anos não estavam alfabetizadas – mais que o dobro do índice registrado em 2019, que era de 14%.

Outro desafio persistente é o trabalho infantil. O Brasil assumiu perante a ONU o compromisso de erradicá-lo até o fim de 2025. No entanto, essa modalidade perversa de exploração ainda atinge 3,4% das crianças no ­País, porcentual praticamente igual ao de 2017, quando o índice era de 3,5%.

“A pobreza precisa ser analisada sob uma perspectiva multidimensional”, diz chefe de Políticas Sociais do Unicef

“É fundamental melhorar a renda das famílias, mas isso, por si só, não é suficiente para garantir direitos e coibir privações no acesso às políticas públicas. A pobreza precisa ser analisada sob uma perspectiva multidimensional”, ressalta Chopitea.

O problema fica ainda mais grave quando se observam recortes raciais e geográficos. “Entre meninas e meninos brancos, 45% viviam em situação de pobreza multidimensional em 2023, enquanto entre os negros esse porcentual era de 63%. Crianças e adolescentes das zonas rurais também enfrentam muito mais privações”, observa. “É essencial que as políticas públicas tenham esse olhar voltado à redução das desigualdades, com maiores investimentos direcionados aos grupos que mais necessitam.”

Para Marina Poniwas, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, apesar da mudança de paradigma proporcionada pela implantação do ECA, o País ainda precisa investir mais nessa população. “A infância e a adolescência continuam sendo as primeiras a sofrer com cortes orçamentários e com políticas que privilegiam interesses econômicos em detrimento da vida e do futuro das crianças”, diz, destacando também a violência como um dos principais desafios a ser enfrentados. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 115.384 indivíduos de 0 a 17 anos sofreram algum tipo de violência no ano de 2023. “O Brasil ainda não conseguiu consolidar uma rede de proteção articulada e capilarizada, o que faz com que muitas denúncias de violência não resultem em proteção efetiva. Além disso, os Conselhos Tutelares, em muitos lugares, operam com recursos mínimos e sob forte pressão política.” •

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Copo meio cheio’

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