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Contra determinação do TCU, União e Rondônia dão guarida a grileiros

Em vez de acatar as recomendações do Tribunal, Brasília e o governo estadual assinaram um acordo para ampliar o poder das oligarquias rurais

Contra determinação do TCU, União e Rondônia dão guarida a grileiros
Contra determinação do TCU, União e Rondônia dão guarida a grileiros
Costas quentes. De funcionários públicos a políticos, o estado montou uma rede de proteção para os ladrões de terras. Foto: NEIL PALMER/CIFOR/CIAT
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Nos últimos dois anos, sob o governo Bolsonaro, a ocupação irregular de terras públicas na Amazônia deu um salto de 56%, segundo dados do Instituto Socioambiental. O caso mais emblemático é Rondônia, onde 33% da área doada pelo programa Terra Legal foi, ironicamente, tomada de forma irregular, conforme auditoria do Tribunal de Contas da União. Trata-se de um pedaço de chão equivalente a 21 mil hectares e avaliado em cerca de 1 bilhão de reais.

Mas, em vez de acatar as recomendações do TCU e combater as ilegalidades, Brasília e o governo estadual, comandado pelo Coronel Marcos Rocha, assinaram um acordo para, segundo ambientalistas, ampliar o poder das oligarquias rurais. O objetivo do convênio é acelerar o processo de regularização fundiária e expedir 10.584 títulos de posse.

“Em decorrência do convênio, o governo de Rondônia contratou 35 funcionários, sem concurso público, e os cedeu ao Incra. Eles emitem pareceres jurídicos como se fossem procuradores federais ou advogados da União”, aponta o procurador Raphael Bevilaqua, que acionou o instituto federal e o governo estadual para suspender o repasse de terras a particulares até que todas as irregularidades sejam sanadas. Em nota, a superintendência regional do Incra em Rondônia esclarece que os “funcionários disponibilizados pelo governo estadual para apoiar o Instituto nas ações de titulação em assentamentos e glebas da União, conforme o Acordo de Cooperação Técnica vigente, não emitem pareceres jurídicos”. A superintendência afirmou que os técnicos tem conhecimentos na área agrária e não jurídica.

O Ministério Público Federal avalia que a contratação de funcionários diretamente pelo poder local tende a acelerar a regularização fundiária em áreas de crimes ambientais e invasões de terras indígenas e quilombolas. O convênio, dizem os procuradores, coloca em risco o Programa Nacional de Reforma Agrária e perpetua conflitos históricos. A cadeia de ilegalidades no caso de Rondônia atinge quase todos os espaços de poder: de servidores indicados por políticos e empresários com interesses em terras às bancadas parlamentares em Porto Velho e Brasília. A ação alerta para a postura do estado nesse sentido. “Há uma deliberada ação governamental visando a acelerada regularização fundiária sem obediência às normativas legais e sem observância às determinações do TCU”, descreve o texto do Ministério Público, que cita um Projeto de Lei apresentado pelo próprio governador.

O PL 080 previa a redução de 219 mil hectares da Reserva Extrativista Jaci-Paraná e do Parque Estadual de Guajará-Mirim e atendia a interesses de pecuaristas da região. No texto do projeto, Rocha admite a existência de 120 mil cabeças de gado na reserva Jaci-Paraná sem licenciamento ambiental ou autorização para supressão de mata nativa. Chega a ser inacreditável o tom do projeto, que, de acordo com especialistas, legaliza a grilagem. “Rocha não é pecuarista, mas está comprometido com o programa de Bolsonaro e seu eleitorado, que aqui em Rondônia é formado por esses pecuaristas e empresários”, descreve uma fonte local.

Um terço da área doada pelo programa Terra Legal é ocupado de forma irregular

A relatoria da proposta na Assembleia Legislativa de Rondônia ficou a cargo do deputado emedebista Jean Oliveira, alvo da Operação Feldberg, que apura esquemas de rachadinhas e nomeação de assessores fantasmas. Durante a operação foram interceptados áudios do deputado com um pecuarista acusado de tentar grilar 64 mil hectares de terra em Guajará-Mirim. Na conversa, os interlocutores aventam até o assassinato de um procurador responsável por emitir pareceres e que não avalizava os crimes.

O projeto foi aprovado na Assembleia, onde 11 dos 25 deputados são pecuaristas ou foram financiados por criadores de gado, segundo um cruzamento de dados rea­lizado pelo site Repórter Brasil. Depois de sancionada pelo governador, a lei acabou derrubada pelo Tribunal de Justiça de Rondônia por ser inconstitucional. Em Brasília, dois projetos para liberar a grilagem têm apoio maciço da bancada de Rondônia ligada ao agronegócio. Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Regularização Fundiária, Júlio ­Mosquini, do MDB, incluiu no chamado PL da Grilagem a proposta de anistiar invasores.

Segundo apurou esta revista, o programa Titula Brasil, lançado neste ano pelo governo federal, foi inspirado no convênio com Rondônia que se tornou alvo do Ministério Público. Criticado por camponeses, ambientalistas e deputados que se opõem ao avanço dos ruralistas, o programa terceiriza aos municípios as atribuições de regularização fundiária de glebas da União, na mesma linha do acordo assinado com o Coronel Rocha. Para a execução do Titula Brasil, as prefeituras vão indicar técnicos que comporão núcleos de regularização fundiária responsáveis por checar os dados. Parlamentares também afirmam que o programa contribui para o desmonte do Incra, que reduziu em 90% o orçamento para a melhora dos assentamentos rurais. Enquanto isso, Bolsonaro e aliados insistem na criminalização de povos originários, trabalhadores sem-terra e quilombolas, enquanto estimulam a posse de armas. O resultado é o maior aumento da violência no campo em 35 anos: 2.054 ocorrências em 2020, segundo a Comissão Pastoral da Terra.

Em nota, a superintendência regional do Incra informou que, desde julho, uma equipe de servidores analisa os processos referentes ao acórdão do TCU e que foi apresentado o Plano de Trabalho local, incluindo uma planilha com os 1.242 processos que apresentaram indícios de irregularidades. Quanto às denúncias de grilagem e ilegalidades no âmbito do convênio, a superintendência alega que “os processos de regularização fundiária para titulação tramitam atualmente na Plataforma de Governança Territorial (PGT) e Sistema de Gestão Fundiária (Sigef Titulação), de modo que há cruzamento de dados com outros órgãos governamentais para a verificação da regularidade para a titulação e o atendimento dos requisitos”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1187 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE DEZEMBRO DE 2021.

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