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A mídia agora faz de conta que não é com ela, mas foi parceira íntima do projeto político-ideológico da Lava Jato

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Taquigrafia. Um jornalismo laudatório atuou como assessoria de imprensa de Moro. Quem levantava dúvidas era excluído do circuito dos vazamentos – Imagem: Arquivo/Agência Câmara
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Mídia corporativa e Operação Lava Jato. Duas instâncias com muito poder de mobilização. Duas instâncias sem controle externo. Duas instâncias que se alinharam, tornaram-se parceiras íntimas e contribuíram para colocar a política no banco dos réus no Brasil em tempos recentes. Neste mês de março, quando a primeira fase da Operação Lava Jato completa dez anos, relembrar essa parceria e seu modus operandi é fundamental para entender não apenas um momento histórico-político, mas os desdobramentos para o caminho democrático do País.

Como salientou o ministro Gilmar Mendes, em entrevista à BBC Brasil, “a Operação Lava Jato apoiou a eleição de Jair Bolsonaro, tentou interferir no resultado eleitoral e agiu para perturbar o País”. Essas ações, que não apenas perturbaram a nação, mas desestruturaram as instituições, não foram simples e não foram méritos apenas de Sergio Moro, o ex-juiz que se tornou ministro de Jair Bolsonaro, de Deltan Dallagnol e dos demais procuradores envolvidos. Essas ações que se desenrolaram a cada nova operação, quase 80 ao longo do tempo, foram fruto de um trabalho em parceria afinada com a mídia corporativa, que desde o começo da Lava Jato, em 2014, garantiu a espetacularização e a construção simbólica necessárias para transformá-la num monstro sem controle, a perseguir opositores, destruir ­reputações e condenar inocentes.

O modus operandi dessa parceria envolveu vários aspectos, mas há dois que quero especialmente destacar: 1. O timing na deflagração das ações: em momentos relevantes e decisivos da cena política nacional, houve vazamentos calculados para a imprensa, em especial para o Jornal Nacional. 2. A encenação da notícia sobre as operações: grande dramaticidade para mostrar delações, conduções coercitivas e ações da PF, elevando os procuradores envolvidos à categoria de heróis.

De forma acrítica, os meios de comunicação fecharam os olhos para os esbirros da República de Curitiba

Dois exemplos ilustram esses aspectos, assim como o poder mobilizador da parceria mídia-Lava Jato para a opinião pública, com forte interferência nos rumos políticos do País. São eles:

A indicação de Lula como ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, em 16 de março de 2016

Era um contexto conturbado para a presidente Dilma Rousseff e Lula, como chefe da Casa Civil, representava uma oportunidade de reação perante a crise. No dia do anúncio, o então juiz Sergio Moro liberou gravações de diálogos do ex-presidente, investigado pela Lava Jato, com a sucessora. O JN teve acesso exclusivo às gravações, e a edição da noite garantiu o espetáculo, com 33 minutos ao todo e muito destaque aos trechos dos diálogos, encenados pelos dois apresentadores do Jornal.

O dia 1° de outubro de 2018, vésperas do primeiro turno da eleição presidencial

O ambiente estava bastante polarizado, com as pesquisas a apontar uma aproximação entre os dois candidatos, Jair Bolsonaro (PL) e Fernando Haddad (PT), e um grande número de indecisos. Não havia mais horário eleitoral, e o mesmo Moro liberou a delação do ex-ministro Antonio Palocci. O Brasil, às vésperas do primeiro turno das eleições, assistiu a William Bonner anunciar que “o ex-ministro Antonio Palocci disse, em delação, que o ex-presidente Lula sabia da corrupção na Petrobras”. Para ilustrar e garantir a carga dramática, a clássica imagem de fundo vermelho com um duto de esgoto enferrujado por onde escorria dinheiro apareceu animada na edição, alterando-se à medida que o apresentador dava a informação.

Vale ainda relembrar o 18 de março de 2015, quando o ainda desconhecido Sergio Moro recebeu o prêmio de “Personalidade do Ano” do jornal O Globo, por conta do trabalho na Operação Lava Jato. Moro, um juiz de primeira instância da 13ª Vara de Curitiba, recebeu a estatueta das mãos do vice-presidente do Grupo Globo, João Roberto Marinho, e do diretor de redação de O Globo, Ascânio Seleme. A Lava Jato ganhava fôlego e muita exposição. Em 21 de junho de 2016, o jornalista global Vladimir Netto, responsável pela cobertura do escândalo no Jornal Nacional, lançou um livro sobre os “bastidores” da operação. O primeiro evento de lançamento aconteceu em Curitiba. A reportagem de O Globo informava que o jornalista “não esconde sua admiração pelo juiz Sergio Moro e pelos procuradores e policiais federais que estão na linha de frente da investigação”. A promoção do livro e essas declarações eram, no mínimo, in­congruentes com o trabalho jornalístico.

Ao longo do tempo, até o fim melancólico em 2021, a cor vermelha passou a ser um gatilho de ódio após horas e horas de exposição diária no noticiário da imagem num fundo vermelho com um duto enferrujado de petróleo por onde escorria dinheiro.

Por fim, a parceria entre a Lava Jato e mídia produziu resultados expressivos e muito nefastos:

1. Promoveu um redesenho simbólico do conceito de corrupção, que passou a ter cor e a ser prerrogativa de alguns grupos.

2. Impôs uma linguagem totalitária encapsulada na polarização Nós (cidadãos de bem) vs. Eles (defensores da corrupção).

3. Instituiu julgamentos midiáticos sem dar qualquer espaço ao contraditório e à contestação das ações.

4. Construiu heróis do Judiciário acima do bem e do mal e que não podiam ser contestados.

5. Criou e projetou inimigos públicos a ser combatidos.

6. Transformou investigações importantes em encenações midiáticas.

7. Promoveu uma onda de denuncismo e punitivismo.

Esse conjunto de ações, resultado de uma indecente parceria, contribuiu para a criminalização da política, o que nos legou Jair Bolsonaro como presidente da República e uma perniciosa desestruturação do funcionamento institucional do Brasil. •


*Pesquisadora Associada do CLE/Unicamp e uma das criadoras do Observatório da Desinformação.

Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.

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