Política

‘Comunavírus’: entenda as teses que fazem a cabeça de Ernesto Araújo

O depoimento de ex-chanceler à CPI da Covid toca em diversas teses defendidas por aliados e figuras de alto escalão do governo Bolsonaro

O chanceler Ernesto Araújo. Foto: Evaristo Sá/AFP Araújo, vamos acabar com tudo isso aí, talkey? (Foto: Evaristo Sá/AFP)
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“Comunavírus”, “comunismo global”, “posição anti-China”, “vírus ideológico” e até o teórico marxista Slavoj Žižek . Os nomes evocados pelo ex-chanceler Ernesto Araújo durante a CPI da Covid, nesta terça-feira, marcam não só sua trajetória no governo, mas também os ideais defendidos pela chamada “ala ideológica” presente no Planalto.

Na sessão, Araújo negou que tenha protagonizado animosidades com as autoridades chinesas no Brasil, o que gerou reações incrédulas. O ex-ministro também afirmou que o Itamaraty não foi subserviente aos EUA durante sua gestão e viu o relator da CPI, Renan Calheiros, fazer referência ao texto “Trump e o Ocidente”, em que Araújo indica o ex-presidente americano como um possível salvador da “cultura ocidental”.

A passagem de Araújo pelo posto mais alto do Itamaraty foi marcada por atritos com o governo chinês e proximidade com líderes conservadores no Leste Europeu, além de um perene apoio a Trump que culminou no isolamento do Brasil na comunidade internacional.

O Ocidente, que o ex-chanceler liga a um “espírito” e ao Deus cristão, é descrito como ameaçado.

Acusado pela falta de esforços para obtenção de vacinas junto a outros países e via iniciativas como o consórcio Covax Facility, ele renunciou ao cargo no fim de março. Alegou, no entanto, que sua saída foi motivada pelo leilão do 5G no Brasil, para o qual se posicionou contra a participação da China, e que culminou na sua “fritura”.

A retórica anti-China de Araújo entre os ideais defendidos pelos chamados ocidentalistas – que advogam por uma “civilização ocidental” que julgam ameaçada, caso do ex-chanceler.

As teorias defendidas por esses grupos (e florescidas na internet) se ligam a uma grande rejeição da modernidade; à promoção de um passado glorioso e mítico ligado a heróis e à religião; a valorização de um antigo simbolismo presente no latim e nas monarquias, além da busca por uma “essência ocidental” que pode desaguar em supremacismo e xenofobia.

CartaCapital explica alguns desses conceitos.

Globalismo e “comunavírus”

Em abril de 2020, Araújo escreveu em um blog pessoal o texto “Chegou o comunavírus”, no qual analisa e ataca a obra Vírus, de Žižek. Segundo ele, o livro do teórico esloveno “entrega sem disfarce o jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado”.

A teoria do globalismo, entende que os estados, junto de ONGs, empresas, fundos de investimento, grupos armados, bancos, centros de pesquisa e outros atores de grande influência são responsáveis por guiar as sociedades de forma supranacional e com foco em interesses maiores que não respeitam limites fronteiriços. Esses interesses estariam ligados a “agendas” escamoteadas pela globalização.

Frequentemente, a corrente globalista vê um esforço coordenado de atores internacionais, preocupados em impor mudanças sociais que levem à construção de uma sociedade global e indiferenciada culturalmente.

Não raro, esse pensamento encara o comunismo como o projeto globalista por excelência. O governo chinês costuma ser apontado como um forte agente globalista, o que faria principalmente pela sua influência tecnológica, por meio do 5G e de plataformas de controle e identificação da população.

 

Indivíduos isolados, como o bilionário George Soros, também podem ser constantemente acusados de promover uma agenda globalista – no caso dele, a acusação é de que promoveria valores progressistas e desejaria destruir noções tradicionalistas ao financiar projetos e implementar centros de estudo pró-direitos humanos no mundo inteiro.

As interpretações aqui podem levar, inclusive, a uma visão racista, em que reivindicar a diferença entre os povos enquanto missão sagrada não raramente se torna xenofobia e violência contra minorias. Órgãos supranacionais como a ONU e a OMS são vistos com desconfiança.

Valorização da cultura ocidental

Em “Trump e o Ocidente”, artigo que escreveu em 2017 para a Cadernos de política exterior, publicação semestral ligada ao Itamaraty, Araújo diz que o ex-presidente americano representa uma retomada dos valores tradicionais do Ocidente em uma época que se acostumou a identificar a promoção dessas ideias com o racismo, a xenofobia e o neofascismo. Em tom de aviso e lamento, o ex-ministro afirma que o Ocidente “está perdendo” e que na contramão de tudo o que passou a ser “politicamente correto”.

São comuns paralelos com o Império Romano – fartamente utilizados pelo fascismo na Itália – e com as Cruzadas

O Ocidente, que o ex-chanceler liga a um “espírito” e ao Deus cristão, é descrito como ameaçado. O poderio econômica e militar já alcançado pelo Ocidente, não seria suficiente para preservá-lo no que seria sua “essência comum”, baseada no nacionalismo, na religião e na família – noções que teriam sido mutiladas pela Modernidade. Seria preciso defender o Ocidente, a todo custo, do iminente desaparecimento de sua tradição como forma de mantê-lo firme contra um suposto cerceamento de seu legado histórico, promovido pelo esquecimento da tradição e o globalismo.

Donald Trump Donald Trump. (Foto: Brendan Smialowski / AFP)

Rejeição à Modernidade

O Iluminismo e a Revolução Francesa são marcas definidoras da chamada Modernidade. A elevação do pensamento racional em detrimento da fé e o secularismo são pilares das repúblicas democráticas fundadas nos séculos seguintes e continuam a vigorar até hoje. O pensamento conservador, por sua vez, vê nesse momento histórico o começo da decadência ocidental, afastada desde então de sua “essência” nacionalista, cristã e fortemente baseada na tradição.

Essa rejeição ao passado, com todos seus símbolos e heróis, e o crescente individualismo estariam, sob essa tese, enfraquecendo a tradição das nações ocidentais e faria que sua influência histórica fosse menosprezada ou esquecida.

Símbolos e batalhas do passado

Na busca por reconquistar o “espírito do Ocidente” e retomar “valores” da civilização ocidental, o culto de símbolos, heróis e acontecimentos históricos são constantemente trazidos à tona. A identificação com um passado glorioso, beligerante e cristão faria as nações ocidentais se libertarem da pasmaceira, processo que Araújo chama, em “Trump e o Ocidente”, de “autopercepção metafísica indispensável”.

Nessa seara, são comuns paralelos com o Império Romano – fartamente utilizados pelo fascismo na Itália – e com as Cruzadas, não raramente usadas num contexto de reconquista que anima discursos racistas ou intolerantes. Outro grande símbolo desse pensamento é a Batalha de Viena de 1683, quando forças cristãs interromperam a ofensiva otomana no Ocidente, “salvando a Europa da dominação islâmica”, segundo Araújo em seu artigo.

O culto de heróis está ainda associado a uma tradição romântica que infla o nacionalismo e aposta nesses ditos líderes carismáticos, do passado ou do presente, para personificar o “espírito” da nação.

Em termos parecidos, a Secretaria Especial de Comunicação lançou em setembro de 2020 a campanha “Um povo heroico”, em que o secretário especial da Cultura, Mário Frias, contempla bustos da família imperial brasileira e anuncia vídeos futuros que prezarão pela história de pessoas que “moldaram nossa História e nossa identidade, deixando legados eternos”.

Neomonarquismo

O legado histórico do período imperial brasileiro (1822-1889) é visto como capaz de unir os cidadãos e apontar para uma origem nobre do povo, em uma construção nostálgica que frequentemente romantiza o período, minimiza problemas graves da época e celebra membros da família imperial como líderes iluminados.

Não é incomum, por exemplo, que a abolição da escravatura no país seja associada a um gesto magnânimo de Princesa Isabel em socorro aos negros, e não a um conjunto de tensões sociais, entre elas a própria força dos escravizados.

“Se a monarquia voltasse, seria um alívio”, diz o representante da família imperial (Foto: Divulgação)

A afirmação já foi feita pelo presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que defendeu a comemoração do 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea, no lugar do 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares e Dia da Consciência Negra.

Enquanto grande parte dos adeptos da revalorização da herança imperial brasileira acreditam que, apesar da influência positiva, a monarquia tem um papel apenas cultural e histórico, há extremistas que pregam a volta do sistema de governo no país atual, com os descendentes vivos da família Orleans e Bragança. Com mais frequência, o neomonarquismo está associado a atitudes ultraconservadoras e tem adeptos em parlamentares nesse lado do espectro político, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), e não é raro encontrar bandeiras da Casa Imperial do Brasil em manifestações que pedem intervenção militar.

O ex-chanceler Araújo já participou de lives ao lado da mesma bandeira e faz parte da articulação que tenta transformar o Museu Nacional, vítima de incêndio em 2018, em um centro histórico dedicado à família imperial, que morou no palácio durante o século XIX. A ideia, levada discretamente dentro do Ministério da Educação e do Iphan, é vista como absurda e combatida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, detentora do prédio por direito.

Foco no latim

O Império Romano também está presente para os ocidentalistas no interesse pelo latim. O conhecimento da língua não só retoma um passado glorioso, como também se liga à Igreja Católica e a uma série de referências literárias e filosóficas clássicas. Embora hoje seja considerada língua morta, A história do latim e sua expansão está intrinsecamente ligada à história da expansão de Roma e do cristianismo pela Europa, além de sua influência em idiomas e culturas cristãs de hoje em dia.

O latim também é usado em diversas manifestações xenófobas e supremacistas, como na expressão “Deus vult!” (“Deus quer!”) – numa referência à Primeira Cruzada, quando essa teria sido a resposta dada pelo povo ao Papa Urbano II em 1095, no anúncio do conflito. A expressão foi usada em uma rede social pelo atual assessor especial para assuntos internacionais do governo, Filipe Martins, quando o presidente Jair Bolsonaro foi eleito. A expressão “Vini, vidi, vici” (“vim, vi, venci”) atribuída a Júlio César também pode ser usada em contextos conflituosos por extremistas que pregam a supremacia racial.

Araújo também causou mal-estar ao usar a expressão “senatus populsque romanus” (“senado e o povo de Roma”) durante a mesma sessão no Congresso no fim de março. A frase, abreviada normalmente para SPQR, aponta para a aliança entre o governo e o povo do Império Romano e foi cooptada por movimentos neonazistas, que veem na expressão um símbolo de força e distinção racial.

Supremacia branca?

Em audiência do dia 24 de março no Senado sobre a atuação do Itamaraty na obtenção de vacinas, Martins foi visto fazendo um gesto enquanto o presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), discursava. Apesar de Martins afirmar que apenas “ajeitava a lapela”, o símbolo feito com o indicador e polegar em formato de rosca, além de médio, anelar e mindinho estendidos, é reconhecidamente usado por supremacistas brancos.

O gesto é identificado com as letras “W” e “P”, que no código extremista significa “white power” (“poder branco”). Martins também ostenta em seu perfil do Twitter o verso “do not go gentle into that good night”, frase lírica usada pelo atirador que matou 50 pessoas na Nova Zelândia, em 2019, para abrir seu manifesto supremacista.

As teorias que promovem a retomada de uma “origem” ou “essência” de um povo não raramente podem assumir formas xenófobas e fascistas disfarçadas de defesa cultural. Essas noções extremistas pregam que há em curso uma lenta substituição da cultura europeia e cristã no Ocidente por cidadãos islâmicos vindos nas ondas migratórias e recebidos por governos considerados criminosos

Conceitos que animaram o nazismo anteriormente, como a fraqueza da miscigenação e a pureza de uma linhagem escolhida também compõem as noções básicas do movimento.

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