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Civilização vs. barbárie

A eleição deste ano não é mera disputa de esquerda e direita, alerta Boulos, o deputado mais votado de São Paulo

O líder dos sem-teto recebeu mais de 1 milhão de votos para a Câmara - Imagem: Leandro Paiva/Boulos 22
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Na adolescência, Guilherme Boulos tomou uma decisão que mudou o seu destino. Aos 16 anos, convenceu os pais, ambos infectologistas e professores da Faculdade de Medicina da USP, a deixá-lo abandonar o Colégio Equipe, um dos mais tradicionais de São Paulo, hoje com mensalidades superiores a 3 mil reais, para matricular-se em uma escola pública. Um mês depois, o jovem havia fundado um grêmio estudantil e liderado um motim contra a obrigatoriedade do uso de uniformes. Tirou cópias do Estatuto da Criança e do Adolescente, a proibir qualquer restrição à entrada dos estudantes, e dirigiu-se com os colegas até a Delegacia Regional de Ensino para protestar. Foi a primeira de muitas mobilizações vitoriosas.

Da escola pública, Boulos passou direto para o curso de Filosofia da USP. Depois fez especialização em Psicologia Clínica e mestrado em Psiquiatria. Na universidade, já lecionava em programas de alfabetização de jovens e adultos e estava com os pés fincados nos movimentos sociais. Ainda com 19 anos, saiu da casa dos pais, no abastado bairro de Pinheiros, para conviver com os sem-teto em um acampamento em Osasco.

Não era uma mera aventura. ­Boulos dedicou mais de 20 anos à luta por moradia popular. Foi na ocupação Chico Mendes, em Taboão da Serra, que ele conheceu a esposa, Natália Szermeta, em 2005. Recém-casados, chegaram a morar próximo do Córrego Pirajuçara, que costuma transbordar sob chuva intensa. Depois se mudaram para o bairro Campo Limpo, onde o casal ainda vive com as filhas Sofia e Laura, de 12 e 11 anos.

“Lula teve 6 milhões de votos a mais que Bolsonaro, justamente por ser contra a política econômica de Paulo Guedes”

Coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, conseguiu o feito de passar para o segundo turno das eleições da capital em 2020, com mais de 1 milhão de votos. Nas eleições deste ano, nova conquista. Tornou-se o deputado federal mais votado de São Paulo, com quase a mesma quantidade de sufrágios obtida na disputa pela prefeitura, fazendo Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente, comer poeira atrás dele.

Para Boulos, a expressiva votação revela o “desejo de mudança” manifestado pela população paulista. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o significado de sua vitória, sobre a importância de São Paulo no segundo turno da corrida presidencial e sobre as pautas que serão prioritárias em sua atuação parlamentar. “O meu foco será o combate à desigualdade”, explica. “É inaceitável que o terceiro maior produtor de alimentos do mundo tenha 33 milhões de cidadãos em situação de insegurança alimentar severa.”

CartaCapital: Qual é o significado de sua vitória, com 1 milhão de votos?

Guilherme Boulos: O povo de São Paulo enviou uma mensagem, manifestou desejo de mudança. Em 2018, o ­deputado mais votado no estado foi Eduardo Bolsonaro. Ter 1 milhão de votos, para alguém como eu, uma liderança dos sem-teto, que sofrem com estigmas, preconceitos, ataques e fake news, representa uma sinalização importante, e não sou o único da oposição que teve votação expressiva. Tivemos a eleição de duas mulheres indígenas, Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, da primeira mulher negra e transexual, Érika Hilton, do pastor Henrique Vieira, um religioso ligado às bandeiras progressistas no Rio de Janeiro. A Talíria Petrone também foi uma das mais votadas por lá. Da mesma forma que houve um voto conservador, também houve um voto pela renovação e pela diversidade no Congresso.

CC: As bancadas do PT e do PSOL aumentaram na Câmara, mas o crescimento mais expressivo foi do PL de Jair Bolsonaro. Quais serão os desafios do campo progressista nesse contexto?

GB: A maior prioridade é acabar com o “orçamento secreto”. Essas emendas de relator sequestram uma prerrogativa do Poder Executivo, sobre a definição de orçamento, e não possuem transparência. Esse modelo vicia ainda mais a governabilidade do Brasil e impede a capacidade do Poder Público de planejar as políticas públicas, porque existe um direcionamento de recursos para pequenas obras clientelistas. Tenho confiança na vitória de Lula no segundo turno e acredito que podemos acabar com essa aberração.

“Vou propor o modelo das Cozinhas Solidárias do MTST como política pública”, diz o novo deputado – Imagem: Cozinhas Solidárias do MTST

CC: Por falar nisso, qual será o peso de São Paulo nessa disputa?

GB: Se analisarmos o mapa eleitoral, e eu tive a oportunidade de fazer isso logo após as eleições, Lula e Fernando Haddad tiveram votações expressivas na capital e na Região Metropolitana de São Paulo. A fragilidade está no interior do estado. Precisamos intensificar o diálogo com a população dessas cidades. Existe um setor bolsonarista muito forte no interior, é verdade, mas essa turma já votou no capitão e votará de novo no segundo turno. Há muitos paulistas, contudo, que rejeitam Bolsonaro, não aceitam os ataques dele à democracia, não toleram a maneira como ele lidou com a pandemia. Temos o desafio de nos conectar com esse público, para que Haddad e Lula possam triunfar no maior colégio eleitoral do País.

CC: Como estão as articulações em busca do eleitorado do PSDB? Existe alguma negociação com o diretório paulista do partido?

GB: Não participo dessas negociações, mas imagino que a campanha do Haddad esteja fazendo essa ponte, buscando estabelecer algum diálogo. Independentemente do posicionamento de Rodrigo Garcia, que já manifestou apoio a Tarcísio Freitas e Bolsonaro, esse eleitorado tem vontade própria. A despeito das tentativas de reeditar o “­Bolso­Doria”, não acredito que os eleitores de Garcia vão seguir esse caminho. A rejeição a Bolsonaro no estado é significativa. Precisamos dialogar e mostrar para a população paulista o que está em jogo nesta eleição. Não se trata de uma disputa “esquerda versus direita”. O confronto é entre civilização e barbárie.

“Não é porque eu me tornei deputado que vou me desviar de uma luta de 20 anos”

CC: Mas como convencer o eleitorado conservador? Lula deve sacrificar algumas pautas progressistas?

GB: A ampliação é em torno da pauta democrática. Não estou entre aqueles que defendem mais acenos para a Faria Lima, para o mercado financeiro. Tem gente que acha que Lula deve manter a política econômica de Paulo Guedes. Não dá, né? Ele teve 6 milhões de votos a mais que o Bolsonaro no primeiro turno, justamente por ser contra essa agenda. Defendemos uma política de combate à fome, de geração de emprego e renda, de retomada do investimento público, de retomada do crescimento. São temas cruciais no plano de governo do Lula, não dá para abrir mão.

CC: Além do fim do “orçamento secreto”, quais pautas serão prioritárias em sua atuação na Câmara?

GB: O meu foco será o combate à desigualdade. Isso passa, inicialmente, pelo combate à fome. É inaceitável que o terceiro maior produtor de alimentos do mundo tenha 33 milhões de cidadãos em situação de insegurança alimentar severa. Colocamos comida na mesa da China, da Europa, dos EUA, mas por aqui o povo está na fila do osso. Precisamos de uma política emergencial de combate à fome e vou defender isso no Congresso, propondo o modelo das Cozinhas Solidárias do MTST como política pública. Já conversei com Fernando Haddad e com Lula para fazermos aqui, em São Paulo, e em nível nacional também. E, claro, defenderei a adoção de um plano para ampliar a oferta de moradia popular, a pauta que me move há 20 anos. Repare o tanto de gente vivendo nas ­ruas das grandes cidades. Olha o tanto de gente morando em áreas de risco. Quero ajudar a construir um novo programa de habitação para o País.

CC: Ao atuar no Congresso, não teme se afastar dos movimentos sociais?

GB: Gosto muito de uma frase do Frei Beto: “A nossa cabeça pensa onde o nosso pé pisa”. Não é porque eu me tornei deputado que vou me desviar de uma luta de 20 anos. Ao contrário, quero levar essa luta para o Congresso. Isso significa manter o pulso do movimento social, com os pés nas ruas, para fazer a agenda popular entrar, de fato, na pauta do governo.

CC: É possível recuperar os programas sociais e melhorar os serviços públicos sem alterar a emenda do Teto de Gastos?

GB: Precisamos ser muito coerentes. Se é preciso investir mais recursos no SUS, na Educação, na Ciência e Tecnologia, nas políticas sociais, isso é incompatível com o Teto de Gastos. Essa regra não tem paralelo em lugar nenhum do mundo. Ela engessa o Estado na sua capacidade de investimento. Responsabilidade fiscal não pode significar irresponsabilidade social. E o Teto de Gastos é isso. Vamos travar uma batalha tremenda e acredito que, com Lula, conseguiremos revogar essa emenda no Congresso. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Civilização vs. barbárie “

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