Política

Cavalo de Troia: Como a extrema-direita se apropriou da ‘liberdade’ para crescer e lucrar

Estudo mostra que os anúncios nas redes são majoritariamente impulsionados por expoentes desse campo, a exemplo de Paulo Guedes

Cavalo de Troia: Como a extrema-direita se apropriou da ‘liberdade’ para crescer e lucrar
Cavalo de Troia: Como a extrema-direita se apropriou da ‘liberdade’ para crescer e lucrar
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Foto: Evaristo Sá/AFP
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A extrema-direita brasileira desponta na liderança do investimento em redes sociais, uma estratégia desenvolvida na medida para moldar a opinião pública — ainda que à base de desinformação.

A conclusão aparece em um relatório divulgado nesta terça-feira 26 pelo Projeto Brief. O estudo Quem paga a banda elencou os principais anunciantes na Meta, responsável por Instagram e Facebook, e avaliou as estratégias utilizadas para fidelizar o público.

De 1º de janeiro a 30 de junho deste ano, os dez maiores anunciantes gastaram 5,1 milhões de reais em anúncios, dos quais 73% (3,7 milhões) correspondem a aportes de representanes da extrema-direita.

Em termos de volume de investimentos, encabeçam a lista, nesta ordem:

  • Brasil Paralelo, agência de conteúdo conservador, com investimento de 1,6 milhão de reais;
  • Revista Oeste, portal de notícias bolsonarista, com 923 mil reais;
  • Paulo Guedes, ex-ministro de Jair Bolsonaro (PL), com 624 mil reais; e
  • Victor Doné, influenciador, com 470 mil reais.

Do quinto ao décimo lugares do ranking, aparecem Greenpeace Brasil (356mil), GloboNews (330 mil), ICL Notícias (248 mil), Meio (237 mil), Oxfam Brasil (222 mil) e Brasil Paralelo Select (151 mil) — este é um canal de streaming da agência.

O estudo considerou apenas os anúncios realizados por organizações sociais, portais de notícias, empresas de mídia, produtores de conteúdo e campanhas de interesse público. Não levou em conta, portanto, partidos, políticos, ações comerciais de marcas, arrecadações de ONGs e perfis assistencialistas.

Liberdade: o cavalo de Troia da extrema-direita

Os investidores da extrema-direita souberam explorar seu conceito difuso de “liberdade”, com frequência manipulando os limites constitucionais para forjar versões em torno da liberdade de expressão e da liberdade econômica e política.

“A bandeira da liberdade de expressão aparece com força, com anúncios que exploram a ideia de que ‘a verdade está sendo calada’, apresentando jornalistas independentes, influenciadores e plataformas alternativas como as únicas vozes dispostas a enfrentar a censura”, argumentam os pesquisadores.

Consequências como lives derrubadas, perfis suspensos e conteúdos removidos viram munição para reforçar a alegação de perseguição.

Sob o mote da “liberdade de expressão”, expoentes da extrema-direita ampliam seu escopo de negócios, transformando sua cantilena em produto. O estudo aferiu que a Brasil Paralelo, por exemplo, aposta na formatação de cursos, séries e documentários sob o mote de que “informação independente” tem de ser financiada por quem acredita nela, enquanto a Revista Oeste foca na “liberdade de imprensa” contra a Rede Globo.

A “liberdade econômica”, por sua vez, é vendida como prosperidade financeira, com base em alegações de que seria necessário desregulamentar — ou seja, diminuir a atuação do Estado — para ter sucesso ou independência.

O estudo indica que um dos maiores investidores nesse campo foi Paulo Guedes, que reapareceu como uma espécie de coach. Seus anúncios prometem “liberdade econômica” em forma de cursos pagos, ensinando supostas fórmulas para prosperar. O discurso de desregulação do mercado ganha um pacote personalizado, com o selo de quem já comandou a economia do País.

Já a marca da “liberdade política” aparece em veículos da extrema-direita pela ideia de que a sociedade vive em “ameaça constante” e que o Estado, opressor, colocaria a democracia em risco. Os canais, portanto, vendem suas assinaturas ancorados na ideia de serem “independentes” e representarem um gesto de resistência.

Victor Doné: a estratégia conspiratória, com discurso emocional

Segundo o relatório, quem dominou o volume de anúncios no período monitorado é o influenciador Vitor Doné: sozinho, disparou em seis meses 16.087 anúncios na Meta, um volume 12 vezes maior que o da Brasil Paralelo e superior até ao investimento do próprio governo de São Paulo no período. Ao todo, foram 469 mil reais em anúncios pagos, contra 398 mil da gestão paulista.

Com pouco mais de 82 mil seguidores no Instagram e 5,8 mil no Facebook, o influencer aposta em um curso chamado “O Código de Deus”, um suposto segredo milenar que teria garantido poder e riqueza ao 1% mais rico da população.

Para os pesquisadores, ainda que seja desconhecido do grande público, Doné encaixa um discurso conspiratório mas profundamente emocional, que parte de uma sensação real: a frustração com um trabalho que consome a vida sem gerar prosperidade.

A tática não é expor as estruturas que sustentam essa realidade, mas levar o debate à lógica individual: não é o sistema que precisa mudar, é você quem tem de descobrir um segredo que os poderosos já conhecem.

Fragmentação progressista X coordenação conservadora

Em entrevista a CartaCapital, o coordenador-geral do Projeto Brief, Ricardo Borges Martins, destacou que a extrema-direita opera em um ecossistema de comunicação coordenado e emplaca diferentes pautas, sejam elas de economia, costumes, segurança ou meio ambiente, para fortalecer seu projeto político-ideológico.

Nos anúncios, avalia Martins, o objetivo é centrar esforços em poucas palavras — a exemplo de liberdade, família e fé — e formatar os discursos de modo a viabilizar uma versão única, criando uma conexão emocional com o público.

O campo democrático, por sua vez, opera em uma lógica de campanha, na qual diversos temas aparecem sem que necessariamente resultem em identificação prévia com o alvo. Para o pesquisador, a estratégia é problemática por pressupor um público já convencido, ao qual se direcionam chamados à mobilização como “assine a petição” e “baixe o relatório”, sem garantir “pertencimento”.

“O contraste com a direita conservadora é gritante. Eles sabem que, antes de mobilizar, é preciso criar pertencimento”, ressalta Martins.

O estudo também concluiu que a comunicação do campo progressista mira em críticas e denúncias, sem obrigatoriamente apresentar soluções ou caminhos alternativos. Os anúncios desse campo focam em apontar culpados — como bilionários, grandes empresas e políticos — sem destacar um horizonte de futuro, deixando no ar um sentimento de impotência.

A direita conservadora, por sua vez, opera sob outro prisma. Também escolhe inimigos — ONGs, artistas, universidades, governos estrangeiros —, mas, ao contrário dos progressistas, costura essas críticas em torno de uma promessa, preenchendo o vazio com mensagens que, mesmo superficiais, oferecem clareza: um futuro de ordem, segurança e liberdade.

Leia os destaques da entrevista com Ricardo Borges Martins:

CartaCapital: O que mais se destaca no estudo?

Ricardo Martins: Chama a atenção o grau de importância que o ecossistema conservador confere à comunicação. São bem coordenados do ponto de vista da estratégia de comunicação e conseguem se apropriar de qualquer agenda factual a seu favor.

Nesses últimos seis meses, a extrema-direita deu um jeito de vincular isso a um certo ideal de liberdade. É muito estratégico falar em liberdade, no momento em que os golpistas estão lá para ser julgados.

Muitos dos temas que surgem eles conseguem vincular, seja liberdade econômica, política, de expressão, indo além da lógica dos anúncios. Basta lembrar o vídeo feito pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) sobre o Pix.

CC: O sucesso dessa estratégia resulta do volume de recursos e anúncios nas redes?

RM: Não é só uma questão de dinheiro investido em anúncio pago. Este pequeno universo do anúncio pago é revelador do restante, da disputa macro. No orgânico, também vemos a extrema-direita, de maneira geral, mais forte que o campo progressista.

Podemos perceber maior sintonia entre a capacidade da extrema-direita de produzir comunicação alinhada ao que os algoritmos trabalham para fazer, que é deixar você mais tempo na frente da tela. Eles entenderam muito bem a regra e se valem dela.

CC: Qual a diferença essencial da comunicação da extrema-direita para a do campo progressista?

RM: A extrema-direita opera em um ecossistema que tem centralidade na comunicação, na disputa pela opinião pública. Eles entenderam que sendo protagonista nessa disputa é possível vencer as eleições, ocupar instituições, ter poder. Do lado progressista ainda há muitas iniciativas que não são essencialmente de comunicação. Há muitas organizações que trabalham em defesa de certas agendas, e isso é mais do que legítimo e necessário, mas elas não têm a comunicação como o core de sua atuação.

Quando analisamos os investimentos feitos por organizações do campo progressista, percebemos que são muito mais destinados a campanhas, sejam elas de incidência para aprovar ou barrar determinado projeto de lei ou para arrecadação de fundos.

A maneira como o campo democrático usa as estratégias de anúncios pagos é muito pontual, ao passo que o campo conservador tem isso no seu centro de atuação. Eles têm como missão disputar mentes e corações, aproximar as pessoas de seus valores.

CC: O estudo destaca que a pauta da catástrofe climática também serve de palco para a extrema-direita. De que forma?

RM: Eles buscam emplacar algumas narrativas. A primeira é que o Estado não importa, que os governos são incapazes de ajudar as pessoas no momento que elas precisam. A segunda é que milionários e bilionários devem existir, uma vez que seus recursos ajudam a salvar vidas. A terceira é que não existe igualdade de gênero, que na hora de colocar a mão na massa é sempre a força masculina, outra mentira deslavada.

Apareceu na tragédia do Rio Grande do Sul a narrativa de que armar a população é importante, diante dos casos de saques e roubos em alguns comércios locais. As catástrofes climáticas são mais um exemplo de como a extrema-direita se apropria do clamor público para defender as suas bandeira anticoletivistas, justamente porque apostam em respostas individuais para problemas estruturais.

A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul serviu de palco às narrativas da extrema-direita, afirma pesquisador. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

CC: O que fica de recomendações para o campo progressista na comunicação?

RM: Acreditamos que o campo progressista precisa insistir em fazer disputa de opinião pública no dia a dia, não apenas por campanha. Recentemente, vimos o campo progressista produzindo muito conteúdo em defesa da taxação de super ricos, denunciando a má vontade do Congresso para aprovar um novo Imposto de Renda. Mas esses momentos são relativamente raros.

A primeira recomendação é: precisa ser no dia a dia, ter insistência, regra que a extrema-direita já entendeu muito bem.

A segunda recomendação é sobre essa capacidade de coordenação de esforços. A extrema-direita é mais alinhada, sobretudo na sua capacidade de tratar de certos temas e fazer com que eles ajudem a alçar as suas agendas, casos do Pix, do INSS, do ministro Alexandre de Moraes — eles falam em liberdade, ou seja, conseguem aglutinar o campo e coordenar mensagens em torno de certos ideais.

Aqui, vejo uma crise no campo progressista: conseguir reerguer esses ideais, criar utopias coletivas, sonhos que valem a pena.

É necessário encantar as pessoas e aproximá-las dos valores progressistas e democráticos por meio dessas agendas. Vejo bons sinais, mas ainda há um caminho para chegarmos ao nível de maturidade, de coesão e coordenação que o campo conservador tem.

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