Política
Caneta maldita
Especialistas propõem a Lula a anulação de centenas de decisões nocivas da gestão Bolsonaro


O povo vai te mandar pra casa e farei um decreto para acabar com seu sigilo de cem anos. Todo mundo vai saber o que esse homem tanto esconde”, ameaçou Lula três dias antes do primeiro turno das eleições, no tumultuado debate da TV Globo, em que um padre de festa junina roubou a cena. Repetida à exaustão durante a campanha, a promessa cumpria o duplo objetivo de deixar os bolsonaristas na defensiva e ouriçar a militância petista. Pudera. O atual ocupante do Palácio do Planalto guardou sob segredo de Estado ao menos 65 documentos de espantosa abrangência. Vetou o acesso às visitas recebidas dos pastores lobistas acusados de cobrar propina para liberar verbas do Ministério da Educação, bloqueou as informações sobre as investigações contra Flávio Bolsonaro pelo escândalo da “rachadinha” e censurou até mesmo a sua carteira de vacinação.
A anulação dos decretos de sigilo continua sendo ansiosamente aguardada por eleitores de Lula, mas representa uma ínfima parte do “revogaço” necessário para reparar (ou atenuar) os estragos causados por Bolsonaro e sua trupe nos últimos quatro anos, mostra um alentado levantamento feito por cinco pesquisadores e analisado por 21 especialistas desde março deste ano. Encomendado pelas fundações Lauro Campos e Marielle Franco, ligada ao PSOL, e Rosa Luxemburgo, vinculada ao partido alemão Die Linke (“A Esquerda”, em tradução livre), o estudo devassou 20 mil documentos, entre decretos, instruções normativas, atos infralegais e portarias. Coordenado pelo cientista político Josué Medeiros, professor da UFRJ e coordenador do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira, o mapeamento dos retrocessos visa orientar o governo eleito sobre as mudanças mais urgentes no arcabouço legal. A primeira versão, com 192 páginas, foi entregue à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, responsável pela articulação política da equipe de transição.
Dos 20 mil documentos analisados, 17 mil eram portarias do governo. “Notamos que a grande maioria delas dizia respeito à nomeação de servidores para cargos comissionados. Por isso, optamos por realizar uma pesquisa por amostragem nesse material”, explica Medeiros, antes de enfatizar que todos os demais documentos, cerca de 3 mil no total, foram “verificados um a um”. Após a triagem, advogados, economistas, cientistas políticos e outros especialistas se debruçaram sobre o material para avaliar a dimensão do legado destrutivo de Bolsonaro e propor a anulação de tudo aquilo que representa uma ameaça para a sociedade e para o meio ambiente. Não por acaso, o estudo recebeu o sugestivo título de Revogaço.
Os pesquisadores observam que, além de estimular o ódio e ameaçar a coesão social, o bolsonarismo apoderou-se das instituições, “aparelhando-as para seus interesses particulares e destruindo o arcabouço e os procedimentos institucionais construídos desde 1988 por vários caminhos”. Solapar a democracia, acrescentam os autores, sempre fez parte do projeto de poder de Bolsonaro, e ele lançou mão de diversos métodos para atingir esse objetivo. Um deles consiste em uma profunda e constante operação de corte orçamentário para asfixiar as estruturas do Estado responsáveis pela promoção dos direitos sociais. A Portaria 8893, de 6 de outubro de 2022, para citar um exemplo, bloqueou 1,2 bilhão de reais do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, um dos principais instrumentos de fomento à pesquisa científica e tecnológica no Brasil. De 2010 a 2021, o contingenciamento de recursos do FNDCT ultrapassou a cifra de 35 bilhões, segundo um estudo da Unifesp. Metade desse montante, 17,7 bilhões, deixou de ser repassada nos três primeiros anos de Bolsonaro.
Os prejuízos ao patrimônio público e ao meio ambiente são gigantescos, aponta pesquisa
Não é tudo. Mais recentemente, Bolsonaro cortou 95% dos recursos para moradia popular em 2023 e reduziu em 97,5% as verbas destinadas a novas creches, prevendo míseros 2,5 milhões de reais para essa finalidade. “Pelo segundo ano seguido, não há previsão orçamentária para o monitoramento de queimadas nas florestas”, emenda o estudo. “Bolsonaro não destinou nem um centavo para saber onde a floresta pega fogo.”
O Revogaço recomenda, ainda, a anulação das decisões que dilapidam o patrimônio público, por meio de um radical projeto de privatizações. O Plano Nacional de Desestatização de Bolsonaro baseia-se em 16 decretos. “Destaca-se a inclusão de empresas que compõem o sistema de comunicação e dados do Estado brasileiro, setor estratégico cujo sentido público é decisivo para a democracia. Falamos aqui dos Correios, da Empresa Brasileira de Comunicação, do Serpro e da Dataprev. Além disso, Bolsonaro propõe privatizar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em plena explosão inflacionária dos preços das comidas e no meio de uma crise de insegurança alimentar que afeta 33 milhões de pessoas”, alerta o estudo. Da mesma forma, os especialistas rechaçam a ideia de entregar à iniciativa privada 23 unidades de conservação ambiental. “Seria a consolidação do processo de destruição dos biomas.”
O meio ambiente é, por sinal, uma das principais vítimas dos ataques bolsonaristas no campo institucional, com a desarticulação das políticas públicas. Faz parte desse pacote, por exemplo, o Decreto 10.966, de 2022, que permite a “mineração artesanal” (eufemismo de garimpo ilegal), o Decreto 11.080, também de 2022, que relaxa as multas contra infratores ambientais, o Decreto 10.833, de 2021, que liberou o uso de diversos agrotóxicos banidos na Europa, e o Decreto 10.166, de 2019, a alterar as regras de ocupação da terra.
Os pesquisadores também chamam atenção para a ofensiva ideológica contra a esquerda e as minorias, acompanhada de um discurso de legitimação da violência e do autoritarismo. Uma das iniciativas destacadas nessa seara é a tentativa de legalizar o homeschooling, proibido pelo STF em 2018. Atualmente, o projeto de lei que autoriza a educação domiciliar no Brasil foi aprovado na Câmara dos Deputados e está parado no Senado. “Apoiamos o compromisso do presidente Lula de engavetar essa proposta.” O estudo também identifica como retrocesso a implantação do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, com a meta de criar 216 unidades desse tipo durante o governo Bolsonaro. Esse modelo, alertam os autores, “possibilita aos militares interferir em todas as dimensões do processo pedagógico, desde censurar o conteúdo curricular até controlar as formas de sociabilidade da juventude”. A pesquisa mapeou, ainda, ao menos 30 decretos e portarias que facilitaram a posse e a compra de armas de fogo e munições, para o deleite do crime organizado.
“Importante destacar que o trabalho ainda não terminou. Até 31 de dezembro, seguiremos monitorando todas as decisões do governo Bolsonaro e, a partir do próximo ano, vamos acompanhar e dar suporte ao ‘revogaço’”, diz Medeiros. A íntegra do estudo está disponível para download gratuito no site das fundações Lauro Campos e Marielle Franco. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Caneta maldita “
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